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Paulo Sacramento: "Não podemos aceitar as perdas civilizatórias em curso no Brasil"

por Roni Nunes, Quinta-feira, 16.05.19

Artigo originalmente postado em C7nema. 

 

 

 

O cineasta vê similaridades entre o que se passa no Brasil e a narrativa do seu filme, O Olho e a Faca. O filme está em Competição no FESTin e é exibido na próxima quinta-feira no Cinema City Alvalade (Av. Roma, 100). Em entrevista ao C7nema, falou sobre a complexidade das filmagens, as vicissitudes do seu protagonista e o dramático momento da política brasileira – afirmando que não se pode "...aceitar passivamente as perdas civilizatórias que estão em curso atualmente no Brasil".

 

Com um forte sentido de exploração do espaço, O Olho e a Facapromove um inédito "passeio" dramático por uma estação petrolífera. É onde se desencadeia o drama de um protagonista (vivido por Rodrigo Lombardi) que, depois de uma promoção, começa a ver os fios da sua vida "ideal" ruir. Estes afetam os seus laços de camaradagem no trabalho e os conflitos da vida doméstica quando está "em terra".

 

É a segunda longa-metragem de ficção do cineasta, cujo primeiro trabalho, Riocorrente, foi selecionada para o Festival de Roterdão, e O Homem da Grade de Ferro, documentário de 2003, venceu dois prémios no Festival de Tribeca.

 

Há momentos em O Olho e a Faca que sugerem um registo quase documental sobre uma estação petrolífera. De onde veio o interesse por esse cenário/ambiente?

 

Desde o início do projeto eu buscava um ambiente de grande impacto visual, que traduzisse o resultado positivo do esforço racional e pragmático do homem em seu trabalho. Encontrei na plataforma de petróleo um lugar ideal, que pude trabalhar como um microcosmo: um lugar ao mesmo tempo muito diferente e específico, mas onde transcorre um drama passível de ocorrer a qualquer homem comum. A plataforma é dessa maneira um pano de fundo luxuoso para a história de nosso personagem, mas que acrescenta ao filme camadas simbólicas e visuais de muita importância.

 

 

O filme regista alguns belos movimentos de câmera que envolvem uma circulação pela plataforma. Como foi a montagem visual destas cenas?

 

Filmar na plataforma foi um enorme desafio porque existem dezenas de regras de segurança que não podem ser quebradas sob nenhuma hipótese. A própria presença de uma equipe de filmagem em um ambiente desses, com a produção de petróleo em pleno funcionamento, é inusitada e quiça inédita. Eu sabia que pelas próprias limitações técnicas o tom dessa parte do filme seria diferente das filmagens realizadas em terra, mas não queria optar por algo óbvio como por exemplo uma câmera balançando nas mãos do operador. Ao contrário, decidi levar um Steadicam para lá que ficou todo o tempo conosco (obrigado ao grande operador Eric Catelan). Isso nos permitiu "deslizar" com a câmera livremente por toda a plataforma e passar a sensação ao espectador de fazer parte daquele cotidiano, sentindo a própria respiração da plataforma como algo normal e familiar.

 

Um dos temas que marcam o conflito no filme é o forte sentido de coletividade num grupo laboral – no caso específico o de uma plataforma petrolífera.

 

Sim, foi muito importante primeiro construir um grupo com forte laços de amizade e confiança entre si para depois romper esses laços e criar o sentimento de abandono e solidão do personagem principal. Tratava-se de ter um material sólido para desconstruir, e nesse sentido a relação de trabalho e interdependência dos petroleiros veio muito a calhar para nossa história.

 

O outro conflito envolve a personalidade do protagonista, que você vai mostrando como alguém que está sempre a adiar as decisões até que tudo começa a desmoronar...

 

Exato, trata-se de uma personagem que acredita que as coisas vão se resolver por si mesmas, que a estabilidade é o estado por excelência das coisas e que o equilíbrio se restabelece naturalmente com o tempo. Mas sua inoperância, ou melhor, sua incapacidade de agir leva-o cada vez mais a um beco sem saída. O filme narra a dificuldade dessa personagem de enxergar a derrocada de seu mundo ideal, derrocada que se dá a partir de uma notícia aparentemente boa: uma promoção em seu trabalho.

 

Já tem novos projetos?

 

O Olho e a Faca foi um projeto que demandou um esforço muito grande para ser realizado, sete anos. Nesse período o Brasil se transformou e a própria atividade cinematográfica hoje se vê em xeque frente a um futuro de pouco ou nenhum investimento estatal na esfera federal. É um momento de cautela e reflexão, de compreender nosso papel nesta nova ordem e de como reconstruir nossa trajetória. Vejo em meu país uma similaridade simbólica muito grande com a narrativa do próprio filme. Precisamos todos abrir nossos olhos, olhar e compreender o que se passa, e não apenas aceitar passivamente as perdas civilizatórias que estão em curso atualmente no Brasil.

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por Roni Nunes às 00:36

“Exploitation” à brasileira: ascensão e queda da Boca do Lixo

por Roni Nunes, Domingo, 09.09.18

Artigo originalmente postado em C7nema.

Roni Nunes & Hugo Gomes

 

Tiago Monteiro l Foto.: Sabrina D. Marques

 

O MOTELx decorre em Lisboa e o cinema brasileiro volta a estar em pauta: neste sábado Morto não Fala, destacado pelo festival como um dos grandes do evento, traz a estreia na direção de Dennison Ramalho, antigo colaborador do mítico Zé do Caixão.

 

O C7nema aproveita a ocasião para uma belíssima conversa com Tiago Monteiro, professor do curso de Produção Cultural do Instituto Federal do Rio de Janeiro, que esteve no festival no ano passado para uma “masterclass” que falava, justamente sobre a preservação da cultura popular e onde se sobressaía a história muito particular da “exploitation” à brasileira.

 

Esta manifestou-se através de uma indústria comercialmente bem-sucedida entre os anos 70 e o início da década de 80, que ficou associada à uma zona degradada do centro de São Paulo, onde circulavam pequenos criminosos e prostitutas, designada por Boca do Lixo. Essa produção, que atingia milhares de espectadores, foi sempre muito mal tratada pela intelectualidade brasileira e só nos últimos anos têm merecido uma reavaliação académica.

 

Em primeiro lugar, porque lhe interessou essa investigação sobre a Boca do Lixo?

 

É uma pergunta curiosa: a minha supervisora no pós-doutoramento, momento onde surgiu essa investigação a partir de uma tese sobre o horror no cinema brasileiro, dizia que se ela estivesse investigando ‘comédia romântica argentina’, por exemplo, ninguém faria a pergunta. As pessoas questionam que tipo de curiosidade leva a alguém a interessar-se por esse tipo de cinema.

 

A Mulher que Inventou o Amor (Jean Garret, 1979)

 

Eu nasci em 1982, numa época na qual o cinema brasileiro começava a atravessar período de crise, que o afasta do seu público e que lega para posteridade o estigma de cinema ruim, de baixa qualidade, que só tem sexo e calão. Tirando os filmes dos Trapalhões, ele não tinha circulação expressiva. Ao mesmo tempo esses filmes da Boca do Lixo, que eu não sabia o que era, passavam na televisão, mas sempre de madrugada, tinham uma aura clandestina. Eles tinham um apelo erótico e eram uma espécie de rito de passagem por serem proibidos pelos pais, eram filmes que eu não podia ver.

 

Depois, quando se estuda mais, uma pessoa começa a separar mais o discurso entre aquilo que o senso comum classifica como ruim e de baixa qualidade e aquilo que tem, logo à partida, um valor histórico apenas por ter sido feito e dizer algum coisa sobre o período no qual isso aconteceu. Aí eu comecei a desenvolver um interesse por esses temas que a historiografia tradicional queria varrer para debaixo do tapete.

 

Esse processo de silenciamento vai por vários lados, ou seja, não só as pessoas não têm conhecimento desse tipo de produção como não existem lançamentos em DVD ou qualquer tentativa de preservação da memória audiovisual dessa produção.

 

Mas não existe, em geral, preservação do cinema brasileiro dos anos 70 e 80 – mesmo no caso das produções da Embrafilme, por exemplo…

 

Sim, mas os da Embrafilme de alguma forma acabam sobreviver um pouco mais ao tempo e alguns chegam ao DVD por força de terem sido produzidos e distribuídos por uma entidade oficial. Era um órgão do governo forte no tempo da ditadura nos anos 70 que não só produzia como também distribuía filmes e supervisionava a exibição … São mais fáceis de se encontrar, não significando que estejam legitimados. O problema é que os produtores da Boca não faziam parte desse grupo da Embrafilme, antes pelo contrário.

 

A imprensa então nem sequer referia esses filmes?

 

A imprensa referia, mas era para falar mal, o que ainda piorava a situação. Havia uma espécie de preconceito. Alguns filmes são tecnicamente muito precários, eu não estou entrando no mérito da qualidade dos filmes. Mas havia um certo discurso, um senso comum, que deslegitimava esses filmes em função da origem e do público para os quais eram destinados.

 

Ou seja, os realizadores eram populares, não tinham formação intelectual, académica, começavam como técnicos e depois iam aprendendo até tornarem-se realizadores. Eles queriam fazer um cinema voltado para um público que vinha do mesmo lugar que eles: as classes populares.

 

Amor, Palavra Prostituta (Carlos Reichenbach, 1982)

 

Então, cada vez que saía um filme da Boca, a imprensa ‘caía em cima’, dizendo que eram grosseiros, mal acabados e atribuindo-lhes o rótulo de pornochanchada – que não se justificava. Tecnicamente, esse é um formato que era inspirado nas comédias eróticas italianas dos anos 60 e não eram “porno”, no máximo “softcore”. Muitos também não eram comédias e havia muitas propostas completamente diferenciadas, mas a repetição deste discurso terminou por levar que fossem invariavelmente rotulados de apelativos e de querer ganhar dinheiro a qualquer custo.

 

Essa é uma ideia bizarra, porque todas as indústrias, como a de Hollywood ou a italiana dos anos 60, querem “ganhar dinheiro a qualquer custo”…

 

Mas acho que em países que como o Brasil a nossa identidade audiovisual para o mundo se fundamentou no conceito de “cinema de autor”. Eu não gosto deste rótulo e desta separação por duas razões: em primeiro lugar fica parecendo que não é possível a perspetiva autoral na indústria e em segundo que cinema de autor ou de arte não tem pretensões comerciais, que não está inserido numa lógica de mercado. O que se tenta fazer hoje em dia é identificar na trajetória de alguns autores da Boca um olhar que pode ser chamado de autoral e que articula outras preocupações que vão além da mera pretensão comercial.

 

Esse rótulo de “pornochanchada” destruiu a ideia de se levar a sério a história do cinema brasileiro…

 

O nome pornochanchada surgiu num momento muito específico para nomear um tipo de comédia urbana erótica calcada na Itália. Eram filmes em episódios com histórias picantes, mas não eram pornográficos. Aliás, o primeiro filme de sexo explícito no Brasil só surge em 1983. Já o termo ‘chanchada’ vinha das comédias produzidas nos anos 40 pela Atlântida. A imprensa começa a recorrer a este termo para nomear todo e qualquer tipo de filme que tinha esse apelo mais popular, independente de ser cómico, o que frequentemente não eram.

O Escorpião Escarlate (Ivan Cardoso, 1990)

 

Há uma declaração do Cláudio Cunha, um realizador da Boca, muito ilustrativa a esse respeito. Ele contava que cada vez que ‘lançava um filme que era um drama vinha a crítica e chamava de ´pornodrama´. Aí eu fazia um filme que se passava no ambiente da ‘disco’ e chamavam de pornodiscoteca. Eu estava tão farto disto que decidi fazer mesmo um filme pornográfico’. Então ele fez Oh! Rebuceteio!(risos). Que, aliás, é ótimo, um filme muito engraçado, muito bem acabado, feito numa época em que as pessoas pensavam que o sexo explícito pudesse render algo mais em termos de arte. É o último filme dele, de 1984.

 

No final dos anos 70 os filmes ficam mais gráficos. No início dos anos 80 começam a aparecer filmes como Império dos Sentidos (Império da Paixão no Brasil) e Calígula e a censura estava no fim. Então o que estava reprimido começa a circular. Eles estreavam no Brasil quando medidas judiciais, quando um advogado dizia que aquilo era ‘arte’ e não se poderia proibir. Então quando se abriu a porta para o primeiro muitos vieram a seguir.

 

Mas aí os exibidores perceberam que estava dando dinheiro e já não queriam apenas “sugestão”, mas sexo explícito mesmo. Entre 1983 e 1984 há uma enxurrada deles. Mas assim como surge também rapidamente se esgota: passada a demanda reprimida, perde-se o interesse. E aí a Boca começa a entrar em crise, pois fica sem ter para onde ir uma vez que, depois de passar cinema pornográfico, você já não consegue voltar a exibir outro tipo de cinema.

 

Quando os “blockbusters” começam a tomar conta do mercado há produtores de baixo orçamento, como Roger Corman, que usaram outras alternativas, como o VHS. Na Boca não se pensou nisto?

 

Não, mas aí eu acho que isso tem a ver com o défice tecnológico do Brasil na época. O VHS entra no país alguns anos depois dos Estados Unidos. De qualquer foi uma série de fatores que dita o fim da Boca – entre as quais o facto do consumo de filmes pornográficos que persistiu ser de filmes americanos. Os exibidores concluíram que era mais barato comprar produtos prontos dos Estados Unidos.

 

Além disto a própria Embrafilme entra em crise – muito também em função de má gestão, de falta de cobrança de resultados aos produtores que recebiam dinheiro

 

Mais tarde os cinemas do centro das grandes cidades começam a fechar, surgem as ’salas multiplex’ e, no início dos anos 90, o presidente Fernando Collor de Mello põe a ‘pá de cal’ na produção audiovisual brasileira – que ficou sem existir durante alguns anos.

Material promocional de Excitação (Jean Garrett, 1976)

 

Esse processo nos anos 80 é mundial, todos os centros de produção entram em crise e Hollywood toma conta de tudo.

 

Carlos Reichenbach (*importante cineasta brasileiro), que também produziu na Boca, tinha uma perspetiva mais alargada sobre isso: ele defendia que o fim da Boca era uma estratégia das ‘majors’, porque os filmes brasileiros, por mais precários que eles fossem, atraíam o público. E muitas vezes ganhavam dos filmes americanos em termos de bilheteira.

 

Entre 1975 e 1982, por exemplo, é comum encontrar obras que levavam entre 3 e 5 milhões de espectadores às salas. Hoje em dia é muito raro um filme nacional atingir esses valores – a maioria dos bem-sucedidos fica em torno de 100 mil. Era uma quantidade de público muito expressiva.

 

Há um movimento académico, mais crítico, tentando resgatar essa produção no Brasil?

 

Acho que sim, está em sintonia com o que tem acontecido por aí. A própria questão de haver uma produção académica sobre terror já é relevante. Há pessoas que cresceram vendo esse tipo de filme que eventualmente chegaram à Academia, que é um lugar legitimado, e começam a olhar e a dizer: ‘mas por que eu tenho que só discutir o Glauber Rocha e o Manoel de Oliveira’? Esses filmes também existiram, eles têm sentido histórico – independente da questão da qualidade. Existe um esforço das novas gerações de investigadores de legitimar teoricamente essa produção.

 

O que eu acho que falta mais nesse momento é uma preocupação não só com o armazenar o espólio, como com investimento na restauração, possibilitando que ele circule e seja preservado. Os negativos vão se perder e se não houver um pensamento no sentido de digitalizar, produzir versões melhoradas, tudo o que vai restar são as cópias em muito mau estado que por vezes se encontram por aí. Não sou contra que se ganha dinheiro com isso, mas que se ganha corretamente e não simplesmente comercializando produtos sem qualidade alguma.

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por Roni Nunes às 19:00

MOTELx: “nós adoramos monstros, demónios e o mal”- Andy Nyman e Jeremy Dyson

por Roni Nunes, Sábado, 08.09.18

Artigo originalmente postado em C7nema. 

 

Ghost Stories, que será exibido no sábado (08/09) no âmbito da edição em curso do Motelx, recupera as narrativas episódicas do cinema inglês – na tradição dos “portmanteaus” de clássicos comoDead of Night e as histórias da Amicus dos anos 60.

 

Realizado por Andy Nyman e Jeremy Dyson a partir de uma peça de sucesso encenada por eles próprios, envereda pelas tradicionais histórias de fantasmas pelas quais as ilhas são pródigas desde o final do século XVIII e traz o “hobbit” Martin Freeman como um dos protagonistas.

 

O filme, eventualmente um dos mais fortes candidatos ao prémio do público do festival, gira em torno de uma investigação promovida por um especialista em desmitificar fenómenos paranormais (Andy Nyman) que tem pela frente três casos “insolúveis” para tentar resolver.

 

Nyman, que estará no cinema São Jorge para uma “masterclass” depois do filme, falou com o C7nema e esclareceu, entre outras coisas, questões cruciais como por que os ingleses gostam de “assustarem-se uns aos outros”...

 

Existe um aspeto tradicional nas histórias de fantasmas que também abordam no filme que relaciona os fantasmas com uma dimensão moral, uma expiação do passado.

 

Certamente. Um dos aspetos das histórias de fantasmas que nos fascinava é sua moralidade, que é profundamente judaico-cristã. Um dos erros frequentes que as pessoas que não gostam de histórias de terror cometem é pensarem que elas são guiadas pela subversão, por noções destrutivas. Na realidade a maior parte delas traz uma posição profundamente moral. Se você peca, você paga – e um preço bem alto.

 

 

Diferentes personagens no filme põe a questão de que o “cérebro vê o que ele quer”. Isso significa que vocês preferem uma abordagem psicológica em vez de uma sobrenatural?

 

Bom, isso é uma questão complexa. No caso dos personagens de Ghost Stories a rota é, de facto, uma abordagem psicológica. Mas outras histórias trazem diferentes versões. Nós adoramos a ideia de monstros, demónios e do mal. Vendo como eles enquadram o nosso trabalho é um forte impulso e nós queríamos explorá-lo. Monstros irreais num mundo real: é delicioso!

 

Em termos visuais vocês trazem elementos mais contemporâneos, como o uso de objetos inanimados e monstros como manifestações de terror. Como vocês conceberam essa parte?

 

Nós sabíamos que queríamos contar uma história clássica. Muitas das nossas influências vêm de daí. Nós estávamos mais interessados em criar um tipo de medo que vai aos poucos tomando conta e não deixa o espectador escapar. Neste sentido, deste o primeiro frame nós o informamos de que alguma coisa está profundamente errado!

 

O cinema inglês tem a tradição dos portmanteaus, conforme iniciada com Dead of Night e particularmente explorada pela Amicus. Esse tipo de estrutura estava presente na peça ou vocês escolheram especialmente para o filme?

 

A peça de Ghost Stories seguia uma estrutura similar – três histórias que eram contadas individualmente mas estavam inextricavelmente ligadas. Nós adoramos a herança britânica dos “portmanteaus” e “Dead of Night” é de longe o melhor e serviu de guia para nós. Ele funciona tão bem porque os protagonistas da história são muito fortes. A ligação entre as histórias não são apenas um artifício, ela tem um papel importante.

 

Os ingleses sempre adoraram e difundiram pelo mundo histórias de fantasmas. Por que você acha que isso acontece? 

 

É estranho, não? Essa nossa herança fantasmagórica… Talvez isso venha da história pagã do nosso país. Uma coisa que nós esquecemos no mundo globalizado dos nossos dias, onde estamos tão conectados, é que a Inglaterra é apenas uma pequena ilha, apartada de todo o mundo… e chove imenso! Claro que então nós gostamos de assustarmos uns aos outros!

 

Como foi a entrada de Martin Freeman no projeto?

 

Nós sabíamos que para o papel precisaríamos uma estrela com um perfil internacional, mas também teria de ser britânico e um ator com que fosse bom em drama e comédia. Martin foi o primeiro nome que nós pensamos. Eu tinha trabalhado com ele num filme chamado ‘The Eichiman Show’ e sabia o quão brilhante ele era. Nós enviamos o argumento ao seu agente e felizmente ele adorou e entrou no projeto. A sua performance é simplesmente incrível.

 

Vocês têm novos projetos?

 

Jeremy e eu estamos a trabalhar no nosso próximo argumento, que é muito excitante. Eu também filmei alguns projetos que serão lançados no próximo ano – como uma série da BBC com a Netflix chamadaWanderlust, com Toni Colette, e outra da Amazon, Hanna, e o novo da Renée Zellweger sobre a Judy Garland, Judy, e por fim, um papel num filme da Disney, Jungle Cruise. Têm sido uns tempos ocupados…

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por Roni Nunes às 17:21

Motelx: “Extirpar a sexualidade das mulheres sempre foi o alvo da caça às bruxas”, diz Lukas Feigelfeld

por Roni Nunes, Quarta-feira, 05.09.18

 

Artigo originalmente postado em C7nema.

Por Roni Nunes

 

Hagazussa – A Heathen's Curse é exibido na próxima quinta-feira no âmbito da Competição do Motelx e o C7nema conversou com o realizador austríaco Lukas Feigelfeld sobre este imponente registo passado nos Alpes, tendo como pano de fundo histórico um tempo em que bruxas eram queimadas e "goblins" assombravam as montanhas...

 

O filme conta a história de Albrun (Aleksandra Cwen na versão adulta), que vive num lugar remoto dos Alpes austríacos. Por alguma razão ela herda da mãe o "carimbo" de bruxa ("hagazussa" é uma palavra germânica antiga para designar a palavra) e é ostracizada pela comunidade próxima. Vivendo com seu bebé quase em completa solidão, inserida num vasto cenário magnificamente filmado por Feigelfeld, cuja formação inicial veio da fotografia, ela experimenta terrores reais ou imaginados enquanto sente lentamente o seu mundo mental ruir.

 

Hagazussa é a primeira longa-metragem do cineasta, que cresceu na região que retrata mas realizou seus estudos de cinema na Alemanha. Sua média-metragem Interferenz passava-se no mar, onde o tema da solidão já era uma das suas premissas essenciais. Este projeto, que teve uma montagem financeira tão difícil quanto as suas filmagens em meio as intempéries imprevisíveis das montanhas, chega a Portugal depois de um sólido trajeto no circuito dos festivais – começando por Sitges. Não há previsão de estreia por cá e, portanto... só no Motelx!

 

 

Sempre houve uma conexão implícita entre a sexualidade feminina e a bruxaria, algo que você também explorou no seu filme...

 

As mulheres acusadas de bruxaria na Idade Média eram principalmente crentes em religiões naturais ou no paganismo, tinham uma mente mais aberta, viviam mais apartadas da sociedade ou simplesmente não eram cristãs que se restringiam ao código moral da igreja católica. Naturalmente que as perseguições estavam conectadas com experiências de liberdade sexual e, no caso das mulheres, manifestações de qualquer tipo de sexualidade eram consideradas erradas, pervertidas ou próprias de bruxas. Extirpar a sexualidade das mulheres era um alvo primordial dos seus perseguidores nestes tempos.

 

Muitas vezes as mulheres eram acusadas de ter relações com o diabo e queimadas por isso. Essas acusações vinham muitas vezes de vizinhos que viam-nas tendo sexo com um "diabo invisível", o que significava, essencialmente, que estavam se masturbando. Então a história era distorcida e ela era queimada. Explorar esses temas e os elementos essenciais da caça às bruxas era muito importante para criar a personagem de Albrun.

 

Você gosta de explorar nos seus filmes temas como o da solidão. Por que esse assunto parece fasciná-lo?

 

Eu sou fascinado pela vida interior das pessoas. Há tanto por explorar. A solidão, especialmente em casos extremos, pode favorecer nos humanos o surgimento de características mentais muitas estranhas ou particulares.

 

No caso de Hagazussa, elas são importantes para o desenvolvimento da psicose da protagonista. A forma como ela é confrontado com o "mundo humano", a sociedade da aldeia, sua crueldade e falsidade, é crucial para fazer com que, de alguma forma, ela se torne a bruxa que todos dizem que ela é.

 

No meu novo projeto, ainda em fase de escrita, os personagens principais também vão viver algum tipo de solidão, embora desta vez minha ideia seja explorar o tema situando-os numa cidade grande e povoada.

 

 

Existe uma tradição literária, vinda de Ann Radcliffe e das irmãs Bronte, onde a mulher é o centro da história e os seus dilemas interiores estão interligados com o ambiente natural. No caso do cinema, Val Lewton e Jacques Tourneur exploravam essa conexão nos anos 40. Você teve alguma dessas referências em mente quando desenvolveu o projeto ou apenas pensou em artistas mais recentes?

 

Eu não fui necessária e diretamente inspirado por essas fontes, mas também não por artistas mais recentes. A inspiração para desenhar a personagem de Albrun veio mais do contexto histórico e místico do local ela se encontra.

 

Depois de perceber o quanto isso tudo esta interligado, não apenas a superstição e as tradições desta área dos Alpes, mas também a luta e o sofrimento das mulheres, eu tente encontrar um entendimento sobre como uma pessoa como ela deve ter sido – alguém com uma capacidade de cometer uma to horrível, mas sofrendo de paranoia psicótica num tempo em que se acreditava que fantasmas e "goblins" perambulavam pelas florestas à noite...

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por Roni Nunes às 21:17

Iris Bry: atriz revelação de "As Guardiãs" fala do lado feminino da Primeira Guerra Mundial

por Roni Nunes, Sexta-feira, 08.06.18

Artigo originalmente postado no Sapo.

Por Roni Nunes

 

Iris Bry: atriz revelação de
 

Cada vez mais revisões históricas apelam para análises de aspetos tradicionalmente negligenciados pelos manuais de História e pelas abordagems artísticas em geral.

 

O realizador francês Xavier Beauvois (o mesmo do aclamado "Dos Homens e dos Deuses") propôs-se, em "As Guardiãs", que chegou às salas portuguesas, uma abordagem sobre um dos conflitos mais sangrentos de sempre, a Primeira Guerra Mundial (então conhecida como a Grande Guerra), pelo prisma não de quem foi para a frente de batalha, mas de quem ficou para trás: idosos, crianças e, principalmente, mulheres, a quem cabia assegurar o sustento, as duras lidas no campo e, pior que tudo, aguardar tempos intermináveis por notícias – que podiam ser as piores possíveis.

 

Estreado no último Festival de Toronto e a chegar esta semana às salas potuguesas, trata-se de uma proposta dramática cadenciada e equilibrada, visualmente construída ao pormenor (a fotografia é de Caroline Champetier), sobre a dura realidade dos tempos de guerra em geral, das mulheres em particular.

 

Um dos pilares dramáticos é a jovem atriz Iris Bry, que faz uma estreia de relevo e contracena à altura com veteranas como Nathalie Baye sem nunca antes ter pisado num “set” de filmagem. A sua personagem, Francine, mais do que o trabalho braçal executado de forma estoica na quinta, trará também desestabilização familiar.

 

Em Lisboa para antestreia, Iris Bry conversou com o SAPO Mag.

 

"As Guardiãs" é um filme sobre mulheres fortes que não têm muito tempo para lamentar as suas perdas ou dar atenção aos seus desejos. A sua personagem é um exemplo deste comportamento estoico.

 

 

É também um filme de mulheres que assumem um novo papel na sociedade francesa enquanto os homens estavam fora. A sua personagem tem um papel forte, nomeadamente quando diz que o filho terá o seu nome.

 

Sim, é muito importante. Naquela época havia muitas “filhas-mães”, mulheres que se encontravam sozinhas porque os maridos morriam e muitas famílias que se encontravam órfãs de pai, irmão, etc. Por isso é importante que ela lhe queira dar o seu nome e isso é absolutamente novo, uma vez que, até então, as mulheres tentavam dar um batismo aos seus filhos de forma a que não carregassem um nome “problemático”. No caso do filme é absolutamente excecional uma mulher que não só educa o seu filho sozinha, mas que, ainda mais, quer dar-lhe o seu nome, com tudo o que isso implica em termos de condição social.

 

Foi o seu primeiro projeto. Como foi a sua entrada?

 

Isso tudo foi bastante grandioso, porque nunca tinha postos os pés num “plateau” de cinema. Não sabia o que era, não conhecia a hierarquia do mundo do cinema.  Não sabia dizer o que, numa rodagem, faz o assistente de câmara, o editor… Não tinha noção nenhuma e de repente encontro-me numa “set” com um grande realizador e uma equipa de altíssimo nível, que incluía Caroline Champetier e Anaïs Romand – uma das maiores especialistas francesas de figurinos de época. Foi grandioso e deixei-me levar pela experiência, queria deixar-me surpreender, descobrir. Nos primeiros dias tentei compreender como é que funcionava e é incrível para alguém habituado às cadeiras do cinema encontrar-se do outro lado e dizer ‘Ah, afinal é assim que funciona. Muito bem…’. Foi verdadeiramente novidade em estado puro.

Iris Bry em Lisboa

 

Como é que foi trabalhar com a Nathalie Baye?

 

Foi muito agradável, porque a Nathalie é alguém muito simples, calorosa e simpática. No início foi muito impressionante e depois, bastante depressa, tivemos algumas conversas entre cenas, um pouco fúteis da vida de todos os dias… É parvo de dizer, mas depois torna-se uma colega de trabalho, no sentido em que trabalhamos juntas pelo filme. Sim, é Nathalie Baye, mas partilhamos coisa tão estranhas – como quando apanhamos estrume as duas [risos]. Este tipo de ações no filme que fazem com que tenhamos uma ligação muito simples às coisas. Afinal, estávamos o tempo todo numa quinta de tamancos…

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por Roni Nunes às 23:44

Cannes sob o telescópio - Parte 3 - 20 filmes

por Roni Nunes, Domingo, 20.05.18

silencios.jpg

Continuação de um resumo sobre os filmes que têm passado no Festival de Cannes baseado em quem por lá anda. Foto acima: Los Silencios.

 

CANNES – DIA 3 (10/05)

 

Samouni Road: Documentário sobre um tema terrível, visto que continua a existir uma dolorosa continuidade: os massacres promovidos por Israel em Gaza em 2009, que vitimaram centenas de civis. O filme do italiano Stefano Savouna segue uma parte mais convencional, entre os dopimentos da família Samouni sobre uma tragédia que quer esquecer mas, obviamente, não consegue. Pelo meio usa outros recursos para mostrar a violência do ataque, voltando ao aspeto tradicional, mas já com outro significado, na parte final. Obra da Quinzena dos Realizadores.

  

Sauvaje: obra inserida no universo LGBT, contando a história de um jovem de 22 anos que se prostitui ao mesmo tempo que mantém uma paixão por outro homem que trabalha no mesmo ramo. Trabalho exibido no âmbito da Semana da Crítica, é o filme de estreia do francês Camille Vidal-Naquet e foi em geral bem recebido. David Rooney, do Hollywood Reporter, salientou que, apesar da crueza, o filme emana “um estranho romantismo”. A ideia central é que o protagonista mantém o seu sentimentalismo mesmo apesar da brutalidade inerente à sua atividade.

 

CANNES – DIA 4 (11/05)

 

Diamantino: Carloto Cotta vive um astro do futebol (semelhanças com Cristiano Ronaldo frequentemente ressaltadas) no entanto caído em desgraça e que tem refazer a sua vida. Tal procedimento ganha contornos delirantes. Segundo Paulo Portugal no Insider, trata-se de mais ou menos isto: “…cãezinhos felpudos que fazem partes do imaginário alucinado deste craque, mas pouco dotado de massa cinzenta, que vive num palacete na Madeira e desfruta no tempo livre e da sua vida centrada em si mesmo no seu iate. Isto até descobrir que existem pessoas com dificuldades, como os “refugiadozinhos” que colhe do mar e que acabam por mudar a sua vida”. Artigo completo em (http://www.insider.pt/2018/05/13/cannes-diamantino-e-o-delirio-surreal-que-marca-o-festival-e-afirma-gabriel/).

 

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Gabriel Abrantes e o norte-americano Daniel Schmidt corealização essa coprodução entre Portugal, Brasil e França, vencedora da Semana da Crítica. Recebeu elogios da Variety e do Hollywood Reporter e uma crítica bastante negativa do Caimán Cuadernos de Cine, que disse que o humor ingénuo do filme não ajuda uma obra sustentada por um amontoado de “sketches” que caberiam bem numa curta-metragem.

 

Shéhérazade: Obra francesa da Semana da Crítica, com uma “love story” no âmbito da violência juvenil em Marselha. A realização é de Jean-Bernard Marlin, que já ganhou um Urso de Ouro de Melhor Curta-Metragem em Berlim, em 2013. É um mergulho na dura vida do gueto, representada por atores não-profissionais que cuja vida não é muito diferente daquela que retratam – tendo como eixo principal a história verídica do protagonista que, depois de ter crescido pobre num bairro social, comete diversos delitos. Quando é solto de um reformatório para jovens ele não é aceito pela mãe e vai parar outra vez na vizinhança. E conhece a personagem-título. Agradou ao Cineuropa e ao Hollywood Reporter, dos poucos “sites” a escrever sobre o filme.

  

The Spy Gone North: Sessão Especial em Cannes de um filme sul-coreano repleto de cenas de ação, mas que, segundo a Variety (Maggie Lee), elas vêm inseridas num épico que mistura intrigas políticas complexas e um forte sentido de realismo social. Segundo ela, o sucesso progressivo no “box office” de Yoon Jong-bin não o fez esquecer de um tom de denúncia permanente contra a corrupção e adjacências. O filme narra a história de um espião, “black venus”, que nos anos 90 inflitra-se junto do governo da Coreia do Norte para descobrir os planos deste em termos de tecnologia para construir armas nucleares. Globalmente bem recebido.

  

Los Silencios (foto de abertura): segunda longa-metragem da realizadora brasileira Beatriz Seigner (que no primeiro seguiu três atrizes brasileiras a tentar a sorte em Bollywood), conta a história de uma família (uma mãe e dois filhos) a tentar estabelecer-se na Ilha da Fantasia, uma terra de ninguém entre Brasil, Colómbia e Peru. Exibido na Quinzena dos Realizadores, fala de refugiados (os colombianos são o segundo povo que mais emigra para o Brasil) e também de “fantasmas” – onde a cineasta, comparada ao tailandês Apichatpong Weerasethakul, aborda uma comunidade (existente) que trata os mortos desaparecidos como se ainda estivessem vivos.

 

O Cineuropa (Kaleem Aftab) destacou a “metáfora dos espíritos desta ilha onde as pessoas vivem em casas de madeira sobre água por meio de estacas e que os refugiados também vivem em terra de ninguém, entre os vivos e os mortos”. Ele também comparou o filme à obra de Lucrecia Martel, especialmente “O Pântano”. Já os Caimán Cuadernos de Cine (Juanma Ruiz) disse que o problema é o “filme tentar ser muitos filmes e não conseguir ser nenhum”.

 

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Ash Is Purest White (foto acima): 10ª longa-metragem de ficção de Jia Zhang-ke. Os últimos depois (“Quando as Montanhas se Afastam”, “China – um Toque de Pecado”) e “Still Life” estrearam em Portugal. Filme sobre a mulher de um gângster dividido em três partes, onde Zhanke volta a abordar o assunto favorito dele e dos cineastas chineses, as brutais transformações do país nos últimos anos.

 

Nunca deixa de haver um tom profundamente crítico e, neste caso, há um aspeto nem sempre abordado: a despeito das mudanças, o papel ditatorial e castrador do Estado persiste – conforme descrição de Carlos Heredero, do Caimán Cuadernos de Cine, “…sem que o país deixe de estar prisioneiro e vigiado permanentemente por um regime ditatorial, como se encontra igualmente a protagonista do relato na última imagem do filme, poderosa e devastadora metáfora de um país que, como criatura de Jia Zhang-ke, nunca termina de livrar-se de uma tutela castradora”. (crítica completa: https://www.caimanediciones.es/cannes-2018-en-tiempo-real-la-opinion-de-la-critica/)

 

CANNES – DIA 5 (12/05) 

 

Fahrenheit 451: bem lembra o crítico do Guardian (Gwilyn Mumford) que a “era-Trump” é propícia para a ressurreição de distopias – particularmente atrativas para os produtores (de televisão, neste caso) quando outras tornaram-se rentáveis – caso da adaptação da obra de Margaret Atwood “The Handmaiden Tales”. Rahim Bahrani, de “99 Casas” é o responsável por este projeto televisivo com Michael B. Jordan no protagonismo e Michael Shannon como lider sadístico do esquadrão totalitário – exibido em Sessão Especial em Cannes.

 

Baseado no livro homónimo de Ray Bradbury o enredo, já adaptado por François Truffaut nos anos 60, dá conta de uma sociedade futurística onde os livros eram proibidos. Mumford lembra a dificuldade da ideia de conjugar essa caracterísitca num mundo de informações altamente espalhadas pela internet – ainda que se esteja muito longe de nos vermos livres do totalitarismo. Na nova adaptação Bahrani propõe que todas as formas de comunicação escrita estão banidas – e esta só é possível por “emojis” controlados por uma unidade central. Não deixa de ser uma transformação sugestiva para a era dos Facebooks e Whatsapps…

 

The Load: obra do sérvio Ognjen Glavonic da Quinzena das Realizadores que tem um ponto de partida mais que sugestivo: o transporte de cadáveres em caminhões frigoríficos vindos do Kosovo para serem jogados numa vala comum nos arredores de Belgrado. A maior parte do filme é um “road movie” e acompanha o motorista do caminhão na sua viagem – que Carlos Heredero (Caimán Cuadernos de Cine) vê como uma “ressonante metáfora do peso trágico que deve suportar a consciência crítica do seu país”. Glavonic baseou-se num acontecimento verídico, ocorrido em 2001 (a descoberta das tais valas), que ele já havia abordade num registo documental dois anos antes (“Depth Two”).

 

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CANNES – DIA 6 (13/05)

 

Murder me Monster (foto acima): parece que Cronenberg encontrou Borowczyk no segundo filme de Alejandro Fadel (agumentista de Pablo Trapero e pela segunda vez em Cannes – “Los Salavajes” esteve na Semana da Crítica em 2013). A história passa-se num local remoto nos Andes e dois homens investigam assassinatos cometidos contra mulheres – onde as cabeças destas são arrancadas do corpo. Segundo o Cineuropa o humor com terror (a criatura é esplendorosamente abjeta) funciona lindamente nesta obra exibida no âmbito d'A Certain Regard.

 

De resto, a melhor descrição é de Carlos Heredero, para o Caimán Cuadernos de Cine: “O marido de uma das vítimas e, sobretudo, o peculiar e obcecado policia que conduz a investigação emergem como personagens tão obscuros como inquietantes de um filme de monstro (uma criatura cujo rosto tem forma de vagina dentada e cuja longa cauda conclui-se com formato de glande) que fala do medo do desconhecido e da angústica que isto provoca quando este terror convoca todos os fantasmas interiores”.

 

Mas no final da crítica ele não gostou, ao contrário de seu colega de equipa Ángel Quintana, que escreveu: “Não há intriga, apenas situações oníricas, muita chuva, obscuridade e muitíssima loucura e o monstro do título com forma de vagina dentada. Há inspiração, muitas dúvidas (…) mas uma clara vontade de busca. No final da história Bruno Dumont acaba cruzando-se com Carlos Reygadas e o coquetel não poderia ser mais surpreendente”.

 

As críticas completas podem ser lidas aqui: https://www.caimanediciones.es/cannes-2018-en-tiempo-real-la-opinion-de-la-critica/

  

CANNES – DIA 7 (14/05)

 

The House that Jack Built: o grande drama da expectativa em torno de um filme de Lars von Trier é que a obra nunca vem desacompanhada de uma desagradável perfume de autopromoção e sensacionalismo – que, a exemplo do que aconteceu em “Ninfomaníaca”, o cineasta parece ter tentado mitigar com a inclusão de citações culturais diversas, perspetivas insólitas e “filosofias” alternativas. E para “chocar”, depois do sexo (deserotisado, diga-se, no caso do primeiro) agora vem o “ultra-gore” – algo que funciona melhor nos festivais como elemento de choque do que nos eventos dedicados ao “cinema de terror”.

 

O filme foi comparado a “Henry, Retrato de um Assassino”, um brutal exercício de John McNaughton dos anos 80, onde o que chocava não era a violencia explícita, mas a crueza do relato e a falta de emoções do assassino. Matt Dillon encarna um “serial killer” que faz um “mea culpa” numa narrativa que segue os passos de “Ninfomaníaca”, com divisões em capítulos, “flashbacks” e um interlocutor. A crítica, claro, dividiu-se – onde o ego do realizador e a “chatice” do filme lideraram os argumentos de ataque. A de Owen Gleiberman, da Variety, define o que parece estar em causa: “está a meio caminho entre um bom filme subversivo e um truque”.

 

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The Harvester (foto acima): uma quinta nos confins de uma terra “afrikaner” na África do Sul não é lugar para os fracos. Um jovem de 15 anos, no entanto, parece ter a força, mas esbanja vulnerabilidade e beneficia de um retrato cru do cineasta de origem grega Etienne Kallos. O  crítico Boyd van Hoeij (Hollywood Reporter) considerou uma estreia brutal (ideia semelhante a da Variety), que construiu um filme que vai lentamente num crescendo até tornar-se numa sufocante versão do mito de Caim e Abel na paisagem remota onde o enfoque é em torno da crise da masculinidade. Exibido no âmbito d’A Certain Regard.

 

Asako I & II: Os críticos não se entenderam sobre a validade da proposta de Ryusuke Hamaguchi, numa obra aparentemente condenada a ser das menos lembradas da Seleção Oficial deste ano. Trata-se de uma “love story”, onde uma jovem tem um romance com um rapaz que desaparece da sua vida. Dois anos depois ela encontra outro parecido, mas com comportamentos diferentes. Houve quem achasse o formato “ultrapassado” e outros que salientaram que a história era baseada na “indefinição”, mas também salientou-se a leveza e a eficácia da história. O realizador deu nas vistas em Locarno em 2015 com “Happy Hour”, obra com cinco horas que despertou um grande “hype” na altura.

 

The State Against Mandela and the Others: no Centenário do nascimento de Nelson Mandela Cannes apresenta uma Sessão Especial a este documentário feito pelos franceses Nicolas Champeaux e Gilles Porte. A dupla mergulhou num complexo julgamento, o de Rivonia, nos anos de 1963 e 1964, onde o regime do “apartheid” veio a condenar Mandela e sete seguidores a prisão perpétua por “sabotagem”. A dupla usou descobertas recentes de ficheiros de áudio, que misturou com animações desenvolvidas pelo artista holandês Oerd van Cuijlenborg. O resultado, segundo o Hollywood Reporter (Stephen Dalton) é “very stylish”.

 

Little Tickels (foto abaixo): A Certain Regard também apresentou o francês “Little Tickels”, onde Andréa Bescond e Eric Metayer surgiram com uma adaptação da peça com a qual eles tiveram grande sucesso nos palcos franceses. O filme não foi muito bem recebido na sessão – a estas alturas aparentando isso ter acontecido porque a proposta cinematográfica do filme é alcançar um público alargado – o que eventualmente choca com os desejosos de surpresas estilísticas. A obra gira em torno de um caso brutal de pedofilia e abuso infantil, onde um homem amigo da família molesta durante anos uma menina, a partir dos seus oito anos de idade. Para fugir a este passado horrível ela migra para Paris e vai parar à uma companhia de dança, mas os seus fantasmas não a deixam fugir facilmente. Os vai-e-vens entre presente e passado também aborreceu os mal-humorados.

 

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CANNES – DIA 8 (15/05)

 

Solo: Star Wars Story. A incursão de Cannes no “pop” infanto-juvenil foi descrita assim por Ángel Quintana (Caimán Cuadernos de Cine): “Há um diferença essencial entre as lojas que vendem produtos de temporada e os “outlets”. Pode-se estabelecer esta diferença entre os capítulos originais de “Star Wars” das suas franquias (…) que vem determinadas pelo desejo de obter lucro a partir de personagens que abrem caminho a outras possíveis histórias (…). No entanto, os “outlets” que nos oferecem as sagas não são nenhuma mercadoria valiosa, mas sim produtos em saldo. “Solo” é bastante pior que “Rogue One” (…). O resto não é mais um compêndio de cenas de ação rodadas de forma vulgar e sem nenhuma inspiração”. (Crítica completa, curta e grossa em: https://www.caimanediciones.es/cannes-2018-en-tiempo-real-la-opinion-de-la-critica/)

 

Fugue: pela Semana da Crítica passou o segundo filme da polaca Agnieszka Smoczynska, que havia surpreendido o mundo em 2016 com um filme musical… com sereias (“Lure”). Aqui o investimento é num drama com um ponto de partida sugestivo: uma mulher ressurge do nada após dois anos e descobre-se que perdeu totalmente a memória. É enviada de volta para a casa da família, mas não reconhece ninguém. A protagonista é antipática, o que vai mudando na medida em que alguns momentos do passado vão retornando. Agradou críticos da Variety (Guy Lodge disse que, a partir daqui, distribuidores, vendedores e público seriam “espertos” em seguir a obra) e Diogo Lerer, do “blog” Micropsia.

 

Under the Silver Lake (foto abaixo): O “spider man” Andrew Garfield protagoniza o esperado filme com que David Robert Mitchell sucedeu seu muito consensual e consagrado “Vai Seguir-te”. Presente na Competição Oficial, ainda conseguiu agradar uma parte da crítica, mas desagradou bastante a outra parte. Conta a história de um jovem desocupado que, após o desaparecimento de uma mulher que nadava na piscina do seu edifício, arranja um motivo para viver e sai por Los Angeles afora à procura de respostas. No caminho coleta pistas que podem ser parte de uma enorme conspiração ou não ser coisa nenhuma – em obra que já foi comparada a “Mulholland Drive” (não propriamente sob uma luz positiva).

 

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Carmen & Lola: uma das propostas espanholas em Cannes – parte da Quinzena dos Realizadores. É a estreia da realizadora de Bilbao Arantxa Echevarría nas longas-metragens de ficção, que debruça-ss sobre um romance lésbico dentro de uma comunidade cigana dos arredores de Madrid. Como se poderia advinhar, o conflito é óbvio, uma vez que a homossexualidade é vista como uma doença ou uma forma de “possessão demoníaca” dentro de uma sociedade fortemente patriarcal. Em geral bem recebido – fez-se no entanto referência ao facto de prevalecer os talentos da cineasta para o documentário (utiliza também atores não-profissionais), as fragilidades da organização dramática do filme e um final de contos de fadas inconcebível com o seu tom de realismo social.

 

At War: Stephane Brizé aborda o tema da luta sindical e da ganância do capitalismo através de uma história onde uma grande empresa alemã em território francês decide fechar portas. Milhares de trabalhadores ficam no desemprego e começam a luta. O tema é comum a “Lei do Mercado”, seu antepenúltimo filme estreado em Portugal em 2015. O realizador adotou um estilo de câmera na mão e imagem granulada para dar um tom realista – embora alguns críticos tenham reclamado que esta técnica é incompatível com a forma com que o cineasta aborda a presença de um astro francês, Vincent Lindon – que tem de aparecer sempre como o líder. O final a “mártir” também irritou algumas almas pensantes. O filme da Competição Oficial não parece ter entusiasmado muito na Croisette em geral, embora veículos como Variety e Hollywood Reporter tenham dado uma avaliação positiva.

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por Roni Nunes às 21:12

Cannes sob o telescópio - Parte 2 - 10 filmes

por Roni Nunes, Domingo, 20.05.18

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Continuação de um resumo sobre os filmes que têm passado no Festival de Cannes baseado em quem por lá anda. Foto acima: "Happy as Lazzaro".

 

CANNES - DIA 3 (10/05)

 

Petra: Na Quinzena dos Realizadores Jaime Rosalez volta a Cannes depois do seu penúltimo filme, “Hermosa Juventud”, ter um granho um prémio n’A Certain Regard em 2014. O filme conta a história de uma jovem artista atormentada pela figura maquiavélica do pai – num enredo que envolve segredos e mentiras familiares. Segundo a AFP o filme empurra a história para “além do suportável os limites da crueldade da humilhação”, com o realizador a justificar-se dizendo que isso é “tipicamente espanhol”. Ainda segundo ele: "Procurei um híbrido entre o cinema clássico - com atores conhecidos e elementos de suspense - e o moderno, que me fascina, com intérpretes não profissionais e utilizando a câmara e a música de forma não convencional.

 

CANNES - DIA 5 (12/05)

 

3 Faces: uma atriz popular no Irão procura pela pista de uma jovem que lhe pede socorro por telemóvel. O realizador Jafar Panahi acompanha-a e eles vão dar ao Noroeste do país, próximo à uma comunidade junto à fronteira da Turquia – que serve, entre outros tópicos, para o cineasta comentar o extrema machismo do seu país. É a nona longa-metragem de Panahi, vencedor do Urso de Ouro em Berlim em 2015 com “Taxi” e agora a dividir o prémio de melhor argumento com Alice Rohrwacher. É o seu quarto filme feito sobre o “ban” do governo iraniano – que o proíbe de deixar o país e de… fazer filmes. Curiosamente e a despeito do prestígio do cineasta no exterior, ele continua a fazer produções ilegais sem sofrer novos processos.

 

Segundo Paulo Portugal, no Insider, “a misoginia iraniana é vista pelo olhar de três gerações” e escreve isto: “Mesmo a cumprir uma pena de prisão domiciliária, por acusação de propaganda anti-regime, Jafar Panahi faz um cinema que não precisa de mais meios para nos tocar de forma profunda e, ao mesmo tempo, auscultar o peso incomensurável da sociedade patriarcal iraniana. Nesse sentido, 3 Faces, ou em português 3 Rostos, é um filme porventura até mais feminino e que significa mais do que o movimento #MeeToo”.

O texto completo: (https://www.insider.pt/2018/05/15/cannes-3-faces-de-jafar-panahi-a-misoginia-iraniana-vista-pelo-olhar-de-tres-geracoes-de-mulheres/)

 

Mandy (foto abaixo): outro aportado de Sundance, neste caso das "sessões da Meia-Noite", na Quinzena dos Realizadores (e, espera-se, no próximo Motelx...). Sendo um filme de terror em geral bem-recebido, parece que é desta que Nicolas Cage acerta uma (os seus descalabros geraram uma série no Youtube chamada "Nicolas Cage Losing His Shit"...). Neste caso ele é um homem em vingança - contra um grupo de fanáticos religiosos que assassinou a sua esposa. Ao que tudo indica Panos Cosmatos deu rédea solta a Cage para o ator libertar a sua loucura enquanto, ele próprio, tratou de criar os seus excessos em imagens, eventualmente inspiradas em mestres do terror dos anos 70, para compor uma obra visualmente muito elogiada. Pan Cosmatos é filho de George Pan Cosmatos, realizador de "Rambo"... 

 

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Girl: Filme que valeu a Camera D'or ao belga Lucas Dhont, numa estreia amplamente elogiada. Ele decidiu contar a história de um adolescente com uma vida particularmente dramática - na medida em que tem que lidar com dois enormes desejos muitos difíceis de concretizar: ser uma mulher e uma bailarina de sucesso. Identidade e corpo misturam-se num filme que tem sido elogiado pelas opções narrativas pouco melodramáticas e ao mesmo tempo intensas. Presente na seção A Certain Regard.

 

To the End of the World: obra do francês Guillaume Nicloux cuja violência gráfica ajudou a dividir as perceções sobre a qualidade do filme. Ainda assim, críticos como Peter Bradshaw, do The Guardian, foram simpáticos; já Juanma Ruiz, do Caimán Cuadernos de Cine, criticou duramente a presença da obra no certame, terminando por qualificar o projeto como uma imitação pobre e sem alma de "Apocalipse Now". O filme, presente na Quinzena dos Realizadores, narra uma missão de vingança movida por soldados francesas na Indochina (hoje Vietnã) em 1945 e os seus dramas (com romance incluído) até foram comparados por Bradshaw a "Platoon".

 

Woman at War (foto abaixo): Benedikt Erlingson produziu uma das sensações escandinavas de 2013 e “Of Horses and Men” veio a ser o filme escolhido pela Islância para representá-la nos Oscars de Melhor Filme em Língua Estrangeira. Sobre uma ativista que tenta conciliar atividades de ativismo ilegal com a vida familiar. Jay Weissberg, da Variety, ficou encantado com o filme, perguntando se haverá “algo mais raro que um inteligente ‘feel good movie’ que sabe como abordar urgentes questões globais com assim como com um satisfatório sentido de justiça”?

 

Ainda segundo ele, embora mais “tradicional” que seu filme anterior em termos narrativos, disse ser impossível catalogar o filme, que gira entra a comédia, o musical, o drama social e o político. Por fim, aposta no filme com um dos “hot sellers” de Cannes. Ao que parece ainda as peripécias da ativista – que comete atos ilegais de sabotagem contra os grandes interesses – são comentados por músicos ao longo do filme – que inclusive rompem a quarta parede… Exibido na Semana da Crítica.

 

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CANNES - DIA 6 (13/05)

 

Happy as Lazzaro (foto de abertura): obra das mais promissoras, onde Alice Rohrwacher discute temas como a relação entre riqueza e exploração e levou o prémio de Melhor Argumento (junto a “3 Faces”, de Panahi). Consenso positivo do festival, conta a história de Lazzaro (“Lazzaro Felice”, no título original), um jovem otimista e ingénuo que desenvolve uma grande amizade com outro rapaz – que no entanto se perde na cidade e ele vai atrás dele. Manohla Dargis, no seu “o melhor e o pior de Cannes” considera o filme “adorável” e um dos melhores do festival. Rohrwacher abriu a Festa do Cinema Italiano com “As Maravilhas” em 2015 (e não esquecer da sensação “Corpo Celeste”, de 2011): é espectável que a façanha se repita para 2019…

 

Papa Francisco: Wim Wenders desaprendeu a fazer filmes de ficção decentes e é no documentário que ele tem se safado no século XXI (filmes sobre Pina Bausch ou Sebastião Salgado, por exemplo). Ao que parece aqui ele fez, pelo menos, um filme honesto sobre o seu “objeto”, o papa Francisco. Pouco provável que toque na questão realmente interessante sobre o papa (a virada do “marketing” da igreja com a saída do fóssil Bento XVI e o incrível rejuvenescimento da imagem que este papa efetivamente conseguiu) – até porque é uma coprodução com o Vaticano. Mas os críticos em geral levaram a sério o esforço de Wenders ao reunir uma longa entrevista com o papa onde ele fala de questões cruciais sobre o mundo atual (a venda de armas, por exemplo) e casos traumáticos (pedofilia na igreja) e polémicos, como a homossexualidade. Sessão Especial em Cannes.

 

Leave no Trace: onde terá andando Debra Granik, que aparece oito anos depois de ter posto Jennifer Lawrence no mapa com “Despojos do Inverno”...? O filme narra o que Juanma Ruiz, do espanhol Caimán Cuadernos de Cine, chama de “western” ao contrário: um pai (Ben Forster) e uma filha (Thomasin McKenzie – muito elogiada, quem sabe outra Lawrence?) tenta desparecer na floresta sem deixar rasto. Assim: “aqui não se trata da luta do homem para dominar a terra, mas sim para pertencer a ela, integrar-se e quase diluir-se na natureza”. Conclusão da crítica: “um filme pequeno, intimista, contido tanto em escala como em conteúdo, mas indubitabelmente sólido”. Exibido na Quinzena dos Realizadores, já tinha sido bem recebido em Sundance.

 

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Manto: n'A Certain Regard uma "biopic" de Saadat Hasan Manto, um escritor indiano, depois paquistanês, que tem sido objeto de variadas obras no seu país. Ele viveu ativamente no período após a independência da Índia, mas quando esta dividiu-se ele foi um dos muitos que partiu com a família para o novo país, de maioria muçulmana, o Paquistão. A viver no Lahore ele construiu um local a salvo da influência da ditadura e um campo de debates. Se muito se reclamou da falta de realizadoras em Cannes, o crítico do Caimán Cadernos de Cine, Carlos Heredero, reclamou enfaticamente do academicismo da narrativa, inserida na tradição da "biopic" ocidental mais tradicional, e de que, mais uma vez, o filme só estaria selecionado por ser uma de uma mulher - neste caso Nandita Das.

 

 

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por Roni Nunes às 00:26

Cannes sob o telescópio - Parte 1 - 20 filmes

por Roni Nunes, Sexta-feira, 18.05.18

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O início de um resumo sobre os filmes que têm passado no Festival de Cannes baseado em quem por lá anda. Foto acima: "Birds of Passage".

 

CANNES – DIA 1 (08/05)

 

Todos lo Saben: espécie de “thriller” a envolver o misterioso passado de uma família, com elenco de luxo (Javier Bardem, Penelope Cruz) e Asghar Farahdi, o iraniano responsável por uma das obras-primas do cinema recente, "A Separation". Abriu o Festival de Cannes e provocou reação mista entra os críticos.

 

CANNES – DIA 2 (09/05)

 

Yommeddine: segundo filme da Competição a surgir nos ecrás, mostra a surpreendente estreia na Competição de uma primeira obra – algo raro no Festival. Manohla Dargis argumentou que isto se deu mais pela questão árabe do que pelo filme que, no entanto, referiu com um “feel good movie” “tocante”. A. B. Shawky, de origem egípicia, foi ao Egito filmar um “road movie” sobre um leproso oriundo da colónia da cidade dedicada aos portadores da doença.

 

Summer (foto abaixo): Kirill Serebrennikov deu nas vistas ainda antes da exibição do seu filme, quando a sua equipa promoveu um protesto contra a sua prisão domiciliar por razões políticas na Rússia. Obra em geral elogiada, mergulha com nostalgia no universo do “rock” em Leningrado no início dos anos 80 – enquando fãs ferrenhos agarravam-se como podiam aos “standards” do “rock” ocidental – como Beatles, Doors, Velvet Underground, David Bowie – e, em cima do acontecimento, não negligenciando bandas “punks” como The Clash ou “new wave”, como Blondie. O enredo gira em torno de um triângulo amoroso.

 

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Donbass: Um dos filmes mais elogiados da A Certain Regard – e, ao que parece, um daqueles filmes com uma temática muito forte. Sergei Lonitzsa, que teve os seus dois últimos filmes exibidos na IndieLisboa. mergulha nas memórias recentes do ataque russo à região que dá nome ao filme. Peter Bradshaw, do The Guardian, chamou de “macabro ‘portmanteau’ social-realista”.

 

Segundo Fabrício Duque, no Vertentes do Cinema: “Em Donbass, uma região do leste da Ucrânia, ocorre uma guerra híbrida, envolvendo um conflito armado aberto ao lado de assassinatos e roubos em larga escala perpetrados por gangues separatistas. Lá, a guerra é chamada de paz, a propaganda é pronunciada como verdade e o ódio é declarado como amor. Uma jornada pela região desdobra uma cadeia de curiosas aventuras, em que o grotesco e o drama estão tão entrelaçados quanto a vida e a morte. Este não é um conto de uma região, um país ou um sistema político. É sobre um mundo perdido na pós-verdade e identidades falsas. É sobre todos e cada um de nós”. O artigo completo está em: http://vertentesdocinema.com/2018/05/09/critica-donbass/

 

Rafiki (foto abaixo): obra queniana da A Certain Regard que, ao que tudo indica, empolgou mais pelo tema e pelas consequências no seu país do que pela qualidade – em obra caracterizada como uma narrativa banal por alguns críticos. De qualquer forma, o esforço de Wanuri Kahiu serviu para mostrar, através de um romance entre duas mulheres, a enorme repressão contra os homossexuais no seu país – onde o preconceito tem base jurídica. O filme foi proibido no seu país e a cineasta  nem chegou a lamentar – dizendo que a sua própria família poderia ficar em risco se isso acontecesse. Pormenores da produção podem ser lidos no C7nema (http://www.c7nema.net/producao/item/48567-se-adicionares-uma-cena-de-violacao-nos-colocamos-o-dinheiro-as-queixas-da-realizadora-do-filme-lesbico-queniano-presente-em-cannes.html).

 

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Wildlife: estreado em Sundance o début na realização de Paul Dano abre também a Semana da Crítica com um drama familiar ambientado nos anos 50. O protagonismo cabe a Jake Gyllenhall e Carey Mulligan – um casal feliz que começa a desintegrar-se quando o primeiro é demitido e não consegue lidar com a crise do seu papel masculino de prover o sustento da família. O drama é observado pelo filho adolescente. A obra já tinha reunido consenso positivo quando da sua estreia em Sundance.

 

One Day: a antiga assistente de realização de Ildiko Enyedi, a realizadora húngara vencedora do Urso de Ouro no Festival de Berlim do ano passado, Zsofia Szilagyi chega à Semana da Crítica com um drama feminino. Narra a história de uma professora com três filhos que não tem tempo para nada e está à beira do caos. Segundo o Hollywood Reporter, através de Boyd van Roej, a cineasta consegue um excelente trabalho ao usar câmara na mão e um “design” sonoro repleto – que reforça o dia-a-dia exaustivo da protagonista.

 

Dead Souls (foto abaixo): Sarah Ward, do Screen Daily, compara esta obra de mais de oito horas de Wang Bing a “Shoah” de Lanzmann e diz que ele não poderia ter menor duração para não perder a acutilância. Wang Bing começou em 2005 as filmagens e gravou em três anos 120 entrevistas com os sobreviventes dos campos de correção de Mao-Tsé Tung no final dos anos 50. Estes, localizados no deserto de Gobi, sediaram tristes histórias de fome e recitações de horas a fio dos ditames de Mao – em mais uma amostra do totalitarismo em funcionamento nos antigos regimes comunistas. Apresentado como uma sessão especial em Cannes.

 

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Birds of Passage (foto de abertura): A Variety (Peter Debruge) diz que a obra corealizado por Ciro Guerra (três anos depois de “O Abraço da Serpente”) e a sua esposa Cristina Gallego é um épico sobre o trânsito das drogas na fronteira “como nunca se viu  antes”. Atualmente com séries como “Narcos” e outros produtos sobre o assunto, segundo Debruge trata-se de um olhar “fresco” e visualmente deslumbrante, cuja história remonta aos tempos do tráfico pré-Pablo Escobar, na Colómbia. Obra apresentada na Quinzena dos Realizadores e globalmente elogiada.

 

DIA 3 (10/05)

 

Sorry Angel: na Competição Chrisophe Honoré empolgou muitos críticos com uma narrativa sobre a relação homossexual entre um escritor e um rapaz mais novo. O título original é “Prazer, Amar e Correr Rápido” e, segundo Fabrício Duque, do “Vertentes de Cinema”, “A maestria é definitivamente seu argumento com suas informações literária-cinematográfica-filósofas que se metaforizam na construção atual dos personagens”.

 

Ainda na sua descrição: “Jacques (o ator Pierre Deladonchamps) é um escritor que vive em Paris. Ele não completou 40 anos, mas desconfia que o melhor da vida ainda está por vir. Arthur (o ator Vincent Lacoste) é um estudante (como Rimbaud), “ultra-sentimental” de vinte anos que mora na Rennes. Ele lê e sorri muito e se recusa a pensar que tudo na vida pode não ser possível. Jacques e Arthur vão gostar um do outro. E conversar muito de Ginsberg a Whitman em verborrágicas adjetivações. E ir ao “Act Up” (que é “mais excitante que conhecer as catacumbas”). Assim como em um lindo sonho. Assim como em uma história triste”. 

Artigo completo em: http://vertentesdocinema.com/2018/05/10/cannes-2018-sorry-angel/

 

Cold War (imagem abaixo): Pawel Pawlikowski volta a agradar os especialistas cinco anos depois da fulgurante carreira internacional de “Ida”. Dele pode esperar-se beleza plástica a preto-e-branco mas também uma história de amor irregular ao longo de várias décadas. Diz Paulo Portugal em Insider: “… intensa e irregular história de amor entre Wiktor e Zula, excelentes Tomasz Kot e Joanna Kulig, ao longo de um período suficientemente longo, desde o pós-guerra e consequente início da cortina de ferro, na Polónia, passando depois para uma Berlim dividida e uma bucólica Paris e Jugoslávia”.

 

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Border: filme sueco promissor, do mesmo realizador de “Shelley” – estreado no Festival de Berlim de 2016 e exibido em Portugal no âmbito do Motelx. Novamente com contornos terroríficos, é o grande vencedor da Mostra A Certain Regard e globalmente bem-recebido.

 

Escreveu Pablo Villaça no seu site Cinema em Cena: “Se em Shelley, sua estreia na direção, o iraniano Ali Abbasi já havia realizado uma incursão curiosa no gênero terror ao acompanhar uma gravidez cercada por incidentes atípicos e ambientada em uma cabana afastada de tudo graças ao estilo de vida ubervegano dos pais da criança, desta vez ele atinge um resultado ainda mais interessante ao repetir alguns daqueles elementos (gestação, locações marcadas pela presença da Natureza, eventos cuja explicação desconhecemos) e aplicá-los a uma narrativa que parte do drama, cruza o horror e se atira no fantástico ao mesmo tempo em que funciona como um tocante estudo de personagem.” O artigo completo está em: http://cinemaemcena.cartacapital.com.br/coluna/ler/2414/festival-de-cannes-2018-dia-03

 

Sextape: na A Certain Regard, um dos filmes mais odiados de Cannes – embora veículos como Cineuropa tenham encontrado nele qualidades. Todd McCarthy, do Hollywood Reporter, disse que a única razão para este projeto francês ser levado a sério em Cannes é o facto das personagens femininas terem assumido o controlo da sua sexualidade no filme – “dando o troco” ao machismo típico. O facto reveste-se de importância pelo facto de elas serem francesas muçulmanas. Já Pablo Villaça fez um violento ataque ao filme no Twitter. Obra de estreia de Antoine Desrosieres.

 

Artic (foto abaixo): uma das Sessões da Meia-Noite do festival, com Mads Mikkelsen a viver um solitário piloto despenhado na devastadora imensidão gelada do Ártico. Segundo o Guardian, o filme consegue acrescentar novos elementos aos filmes de sobrevivència – uma das muitas avaliações positivas ao filme. Curioso é o “background” do realizador Joe Penna, que estreia no cinema depois de ser um famoso “youtuber” nos seus primórdios, com o seu programa Mistery Guitar Man.

 

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DIA 4 (11/05)

 

The Image Book: Cannes 2018 está a ter a sua grande quota de projetos polémicos e os seus acontecimentos. Mais do que um filme, no entanto, Jean-Luc Godard é um evento em si próprio – particularmente através de uma conferência pormenorizadamente descrita por João Lopes para o Diário de Notícias (https://www.dn.pt/artes/interior/godard-um-grande-filme-e-uma-conferencia-por-telemovel-9334953.html).

Quanto a “Image Book”, foi amor ou ódio - com muitos críticos a reclamarem do facto do realizador estar a fazer "mais do mesmo". Um dos que gostaram foi Peter Bradshaw, do Guardian, que escreveu que “o veterano autor retorna a Cannes com o seu último filme-ensaio, um mosaico de clips e fragmentos emprestam urgência e o horror de um filme de terror.

 

My Favorite Fabric: obra da realizadora síria Gaya Jiji, que mergulha no pantonoso terreno da sexualidade feminina no mundo muçulmano. O filme narra história de uma mulher de 25 anos que, durante a Primavera Árabe em Damasco, sonha em ir para os Estados Unidos graças a um casamento arranjado. Quando este não ocorre, ela aproxima-se de uma nova vizinha, que abre um bordel ao pé da sua casa…  Lisa Nesselson, do Screen Daily, que fez referências a “Belle de Jour” na sua crítica, fala num “conto sutilmente devastador”. Obra d'A Certain Regard.

 

Treat me Like Fire: em francês “Jouers” (Players), obra de estreia da realizadora Maria Monge – com um pé no “noir” e Tahar Rahim e Stacy Martin nos papéis principais. O filme passa-se no universo do jogo – onde ele é um jogador inveterado a viver em péssima companhia. Segundo Jessica Kiang, da Variety, o filme é melhor apreciado se visto como uma variante dos arquétipos do filme “noir” – onde, para começar, é o homem quem assume o papel antes destinado à “femme fatale”. Exibido no âmbito da Quinzena dos Realizadores.

 

Another Day in Life: os representantes lusitanos em Cannes parece que deixaram escapar essa Sessão Especial de especial interesse sobre a guerra colonial. Segundo o Hollywood Reporter (Jonathan Holland): “In Another Day in Live” a palavra portuguesa para “confusão” é usada para descrever a anarquia e o caos nas zonas de conflito na guerra colonial angolana. O filme tem 60 minutos de animação e 20 minutos de entrevistas, com mais 80 minutos sobre o jornalista Ryszard Kapuscinski, o qual escreveu o livro no qual se baseia o filme. Segundo o THR o resultado é “espetacular”.

 

DIA 5 (12/05)

 

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Girls on the Sun (foto acima): filme vaiado de Eva Husson, que na mesma moeda mandou os críticos “se lixarem”. Segundo a sinopse de Pablo Villaça no Cinema em Cena: “Inspirado em fatos reais, o argumento (também escrito pela diretora Eva Husson) segue uma jornalista francesa, Mathilde (Emmanuelle Bercot), que se especializou em fazer coberturas de guerras, chegando a perder um olho durante uma de suas missões. Interessada na existência de um pelotão formado exclusivamente por mulheres que foram mantidas como prisioneiras/escravas sexuais pelos extremistas no Curdistão e que, depois de escaparem, juntaram-se à luta contra estes”.

 

O artigo completo está em: http://cinemaemcena.cartacapital.com.br/coluna/ler/2415/festival-de-cannes-2018-dia-04

Já sobre as vaias Eva Husson disse Hugo Gomes, no C7nema: “Que se lixem [os críticos]. Já superei isso. As audiências gostaram, tivemos 17 minutos de ovação, foi um momento muito especial. Houve pessoas em lágrimas, que se dirigiram a mim emocionadas com o filme, outras - vítimas do genocídio - contaram-me as suas histórias. Por isso, que se lixe isso!”.

 

Angel Face: n’A Certain Regard Marion Cotillard acompanhou Vanessa Filho na sua estreia na realização – vivendo uma mãe irresponsável, na Riviera, que negligencia a filha de oito anos e passa a vida em festas e bebedeiras – ou então em frente da TV… embebedando-se. Não foi muito bem recebido em lugar nenhum este trabalho – e até o Cineuropa (conforme Benedict Crot), que até foi gentil com o odiado “Sextapes”, manifestou incompreensão pela seleção do filme uma vez que até mesmo Cotillard compõe a sua personagem de forma pouco credível.

 

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por Roni Nunes às 23:27

Juliana Rojas ("As Boas Maneiras"): "Os filmes de terror são naturalmente subversivos"

por Roni Nunes, Segunda-feira, 14.05.18

Artigo originalmente postado no Sapo.

Por Roni Nunes

  

"As Boas Maneiras" está a ser lançado em DVD e na plataforma Filmin após uma aclamada exibição no festival IndieLisboa, pretexto para o SAPO Mag conversar com a corealizadora Juliana Rojas sobre esta inspirada recriação do mito do lobisomem.
 
Realizadora de
 

Se a cinematografia brasileira, diferente da política, anda em alta, "As Boas Maneiras" inscreve-se sem dificuldades entre os mais belos e sofisticados exemplares a sair do país nos últimos tempos. O filme conta a história de uma mulher rica e solitária (Marjorie Estiano) que contrata uma “baby sitter” (a portuguesa Isabél Zuaa) para tomar conta do filho que ainda está por nascer.

 

Esse é o ponto de partida para uma estranha e visualmente requintada parábola que utiliza velhos mitos góticos para uma abordagem sobre as dicotomias da sociedade brasileira atual. O filme, premiado no Festival de Locarno, foi realizado por Juliana Rojas e Marco Dutra, responsáveis por outra aventura num híbrido de géneros, “Trabalhar Cansa”, estreado em Cannes há sete anos.

 

Entre os novos projetos, Marco Dutra inicia em breve as filmagens do seu novo trabalho, “Todos os Mortos”, realizado em parceria com Caetano Gotardo, enquanto “Cidade em Campo”, projeto apenas de Juliana Rojas, está na fase de captação de financiamento.

 

Em Lisboa, "As Boas Maneiras" teve uma antestreia acalorada e divertida no Capitólio, no âmbito do IndieLisboa, e o SAPO Mag aproveitou a presença da cineasta para conversar sobre o filme, agora é lançado em DVD e na plataforma Filmin após ter estreado em algumas salas portuguesas a 3 de maio.

 

Para começar gostaria que falasse do visual do filme. Há todo um cuidado para recriar um cenário que pode ser chamado de “gótico”. Ao mesmo tempo, São Paulo surge reconhecível nos seus edifícios e nos tipos de construções dos bairros…

 

Durante a preparação eu e o Marco trabalhámos de forma muito intensa com o Rui Poças [diretor de fotografia] e o Fernando Zuccolotto, o diretor de arte, no sentido de desenvolver a identidade visual do filme. Nós queríamos esse visual de fábula para São Paulo mas, apesar deste cenário “fantástico”, queríamos um equilíbrio, não pretendíamos perder a referência da cidade real. Isto porque o filme também fala sobre questões que tem a ver com a geografia dela, os bairros e a relação entre centro e periferia.

 

No filme é colocada a questão do rio como um divisor…

 

Isso existe. A região central concentra mais riqueza. No filme é estilizado, mas existe a “marginal” que separa o centro do bairro. O que fizemos foi dar a isso uma aparência mais lúdica. Fizemos muitas experiências com cores, tentando perceber quais eram mais adequadas para cada universo e, ao mesmo tempo, trabalhámos com o Eduardo Schaal as paisagens através do "matte painting", um recurso que era muito usado pelos estúdios nos anos 60 e 70. Basicamente pintava-se à mão uma paisagem de fundo para criar uma ideia de extensão. Preferimos este método, apesar da forma realista como a tecnologia hoje permite criar novos mundos. A diferença é que antes pintava-se sobre um vidro ou no próprio cenário, hoje faz-se no computador. É interessante, pois cria uma artificialidade, um estranhamento na imagem.

 

 

Uma coisa que é notável é a forma como conseguem equilibrar na narrativa elementos insólitos vindos da animação ou do musical sem cair nas facilidades da paródia.

 

Bom, não faríamos uma paródia pois gostamos muito destes géneros. De qualquer forma, nós não pensámos nisto como uma fórmula enquanto fazíamos o filme. Estávamos sempre a investigar durante as filmagens, agindo por instinto e sem saber se iria dar certo. Só tivemos mais certezas já na fase de montagem, só aí fomos encontrando o equilíbrio e o tom para dosear cada sequência e como trabalhar a música e a parte gráfica. Guiámo-nos pelas emoções da personagem de Isabél Zuaa para transitar pelos diferentes géneros ao longo do filme.

 


Os filmes fantásticos de horror têm naturalmente de explorar criativamente outros limites, tem de querer romper tabus. A matéria-prima é o subconsciente, por isso é um cinema mais subversivo. Talvez venha daí a visceralidade de que fala. É um cinema que procura o risco e a subversão, tem um propósito político ou filosófico. Os filmes do [George] Romero, por exemplo, são políticos, falam do mal-estar da humanidade e dos conflitos sociais. “Drácula” aborda a sexualidade, o corpo, traz uma metáfora sobre questões profundas do ser humano.


De resto acho que está a melhorar, embora ainda exista um certo preconceito. É algo histórico: quando estivemos em Locarno houve uma retrospetiva sobre Jacques Tourneur, que era um cineasta de filme B e só hoje está a ter reconhecimento artístico. Tinha um trabalho maravilhoso de construção de “extra-campo”, de fotografia…

 

Ainda assim, ele e o Val Lewton foram dos menos injustiçados em relação a alguns outros da [estúdio] Universal, por exemplo.

 

Sim, mas era considerado “filme B”. Ele trabalhava sobre os cenários de outros filmes maiores. Depois incomoda-me um pouco que, no ano passado, tenham aparecido conceitos como “pós-horror”, o que denota um preconceito da crítica no sentido de que, se é bom e é de terror, tem que ter outro nome para designá-lo. Para ser sofisticado, de arte, tem que ser “pós-horror”. Já nos atribuíram esse rótulo e não gosto. Fazemos filmes de género.

 

Também incluíram uma cena de transformação… São curiosas atualmente as possibilidades da tecnologia. Na altura de “Um Lobisomem Americano em Londres” [1981], algo assim foi um marco na história dos efeitos especiais.

 

Assistimos muitos filmes de lobisomens para ver como eram representados. E percebemos que os filmes com efeitos mecânicos eram mais fortes. “Um Lobisomem Americano em Londres” era um destes casos e é muito forte até hoje. Mesmo que já não seja tão realista para os padrões atuais, tem um grande impacto emocional. O problema da computação gráfica é que ela está sempre em desenvolvimento e o que foi feito há dez anos parece falso hoje em dia.

 

Por exemplo, o “Parque Jurássico” tem partes que hoje parecem falsas, mas os efeitos mecânicos, como o daquela pata do dinossauro ao lado do carro, ainda é incrível. Nós percebemos isso mas, ao mesmo tempo, havia coisas que queríamos fazer que era impossível com efeitos mecânicos. A parte dos efeitos foi trabalhada com os nossos parceiros de produção franceses, que ajudaram também a decidir quando era melhor CGI ou maquilhagem. Mas o que era fundamental era transmitir uma ideia de humanidade e o sentimento da dor da transformação.

 

Nas fantasias de terror góticas há muito um vilão "estrangeiro", que vem de terras "exóticas", como Drácula… A vossa "criatura" vem, pelo contrário, do interior da sociedade que retratam e, de certa forma, de dentro de cada um.

 

Na questão da lenda do lobisomem o mais interessante é a dualidade da criatura, que é humana e se transforma num animal. Ele vive neste conflito de ter que equilibrar as duas partes, o que corresponde a uma dualidade que tem todo o ser humano, a instintiva e animal e a racional…

 

Daí a necessidade das "boas maneiras"…

 

Exato! E que é precisamente aquilo que os nossos personagens não têm [risos]. É um título irónico, eles estão fora das regras da sociedade, cada um à sua maneira. Em todas as camadas do filme quisemos falar destas dualidades – centro vs periferia, ricos vs pobres, etc. Estes mundo chocam e a tensão vem desta oposição.

 

Marco Dutra e Juliana Rojas com o prémio ganho no Festival de Locarno

 

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por Roni Nunes às 19:40

IndieLisboa 2018: Studio 54

por Roni Nunes, Segunda-feira, 14.05.18

Artigo originalmente postado no Sapo.

Por Roni Nunes

 

Diário do IndieLisboa: era uma vez, na terra da
 

Entre as muitas histórias de ascensão e queda do Império do Hedonismo que invadiu a cultura ocidental a partir dos anos 70, a de "Studio 54" é das mais emblemáticas. Com os grandes ideais dos anos 60 em queda livre, preparando o terreno para o "prazer pelo prazer" dos anos 80, os anos 70 viram as utopias naufragarem no mar do diversão eterna. Num local específico, em Nova Iorque, esse Império teve um símbolo: o Studio 54.

 

A discoteca criada a partir de um velho teatro num lugar da cidade que, segundo um testemunho, era "o local ideal para ser assaltado", podia ter sido qualquer outro empreendimento comercial de Steve Rubell e Ian Schrager, que não tinham como sonho especial investir na área do entretenimento noturno. Uma vez a oportunidade surgida, foram apenas 33 meses apoteóticos de um símbolo de extravagâncias, muito cocaína, celebridades, multidões barradas do lado de fora, notícias de primeira página na imprensa e, claro, "disco music".

 

Schrager é quem conta essa história, uma vez que Rubell morreu em 1989 vítima de complicações decorrentes da SIDA. Os testemunhos daqueles que conseguiam lá entrar recordam uma apoteose de diversidade, um raro lugar onde os homossexuais se podiam manifestar e de convivência entre ricos e pobres (ser famoso não era o único critério para permitir a entrada) e celebridades e ilustres desconhecidos.

 

A assombrosa ascensão da dupla, que mostra talento empresarial e um enorme sentido de exposição pública de um lado, explica por outro o despreparo para lidar com o sucesso. O melhor exemplo é o absurdo do livro de contabilidade da empresa... onde até estava descrito o montante que devia ser desviado das Finanças! Este último viria ser a peça-chave de uma queda incontornável – parecendo arrastar consigo uma época de libertação que cederia espaço ao conservadorismo da era de Ronald Reagan.

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por Roni Nunes às 00:15


Comentários recentes

  • Cleber Nunes

    Sem dúvida é um filme que me despertou interesse ...



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