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Doclisboa: falando de arte para uma lebre morta

por Roni Nunes, Terça-feira, 31.10.17

Artigo originalmente postado em C7nema (http://www.c7nema.net/artigos/item/47431-doclisboa-falando-de-arte-para-uma-lebre-morta.html)

 

Doclisboa: falando de arte para uma lebre morta

 

  • Publicado por  Roni Nunes

 

O cinema que importou no Doclisboa recém-finalizado (29/10) deveu-se mais ao conteúdo (“Risk”, “Martírio”, “No Intenso Agora”) do que à forma (aquelas egotrips metidas a hipsters com 100% de atitude e 0% de relevância que grassaram na Competição Portuguesa). Mas nem sempre a atitude foi condenada a um nicho estéril.

 

Um dos filmes exibidos no festival foi “Beuys”, de Andres Veiel. E Joseph Beuys conseguiu irritar meio mundo porque suasperformances tinham um significado e foram feitas numa época onde todas as esperanças eram válidas.

 

Para uma “meia” biopic de tal artista talvez não fosse aconselhada uma história cronológica, mas de lógica beneficiava um pouco o filme de Veiel; ainda assim, episódios selecionados (baseados em vídeos da altura) dão conta de mostrar um furacão em andamento.

 

 

“How to Explain Pictures to a Dead Hare”

 

“Beuys” é sobre performances e rebeldias. É sobre política, revolução – sobre idealismo e crença. Fala de um tempo em que o artista podia ter a arrogância de assumir um papel tutelar na educação do populacho e autointitular-se “xamã”.

 

Diferente de muitas demolições pós-modernas, esta tinha um propósito. Toda essa pedagogia orientava-se no sentido de destruir intermediários (universidade, museu, galeria) – a demolição institucional era libertadora. Todos podem ser artistas. Na música, lá por 1977, os punks diziam o mesmo.

 

As performances: numa das primeiras, “trancou” os frequentadores da galeria de arte fora desta; durante três horas, o público assistiu pela janela o artista perambular pelo local e a dar explicações sobre “arte” para uma lebre morta que carregava com um dos braços. Foi em 1965.

 

Em 1974 foi à América e de lá saiu sem pisar em solo yankee. Carregado numa ambulância para uma galeria, lá conviveu uma semana com um coiote. Sem falar com ninguém para dizer:merchants, vocês nada significam. Foi de volta para o aeroporto e intitulou a performance de “I Like the America and America Likes Me”. Really?

 

 

Transcendência de perfumaria

 

Este “anarquismo” era, claro, inconcebível com organizações estáticas. Quando este avatar de energia ambulante se direcionou para o ativismo político nem o Partido Verde alemão, que ajudou a fundar, pôde com ele. Os Verdes talvez estivessem certos: uma coisa é ser franco-atirador, outra coisa é transformar fazendo parte da estrutura. De qualquer forma, há um depoimento elucidativo: “Não creio que exista um fim quando se entra numa luta, não existe um estado perfeito”.

 

Voltando à Competição Portuguesa do Doclisboa (com possivelmente uma ou duas exceções), de facto há que se continuar a lutar por algo nestes tempos obscuros, mas não com perfumaria barata para os amigos. Desta cartola já só saem lebres mortas.

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por Roni Nunes às 21:42

Doclisboa: entre os muçulmanos luta-se por liberdade; no Ocidente não se sabe o que fazer com ela

por Roni Nunes, Segunda-feira, 30.10.17

Artigo originalmente postado em C7nema (http://www.c7nema.net/artigos/item/47428-doclisboa-entre-os-muculmanos-luta-se-por-liberdade-no-ocidente-nao-se-sabe-o-que-fazer-com-ela.html)

Doclisboa: entre os muçulmanos luta-se por liberdade; no Ocidente não se sabe o que fazer com ela

  • Publicado por  Roni Nunes

Why is Difficult Make Films in Kurdistan

 

A sessão conjunta no Doclisboa  de duas obras sem qualquer relação entre si, “Why Is  Difficult Make Films in Kurdistan” e “Preferia no Hacerlo”, dá o que pensar. O primeiro, como o título indica, é passado na região do norte da Turquia, já na fronteira com a Síria; “Preferia no Hacerlo” passa-se na pacífica Argentina.

 

A obra da realizadora Ebrû Avci , muito jovem, dificilmente chega a ser mais do que um filme familiar; durante todo o tempo ela  parece estar a experimentar um brinquedo novo. Filma a mãe, a avó, as amigas; sem que eles saibam, claro, enquadra um grupo de rapazes que dançam. Como esclareceu na conversa com o público, o fez às escondidas, durante um piquenique. Não é a consciência cinematográfica particularmente relevante que interessa, mas o facto do projeto existir.

 

Por que não é fácil fazer filmes no Curdistão? Na aldeia onde impera o machismo habitual tampouco os mulheres estão lá muito esclarecidas quanto a utilidade do que Avci, que decidiu frequentar o curso de cinema longe dali, anda a fazer.

 

O medo da repressão é grande: “Ainda bem que esse filme vai ser visto só no Ocidente”, diz alguém. “E quando nos virem saem logo da sala”, diz outra entre gargalhadas. Os questionamentos da mãe seriam pertinentes por cá: “Para que estudar cinema? Se queres estudar por que não ser advogada, juíza, professora? Aqui ninguém liga a isso...”.

 

Claro que Avci sabe perfeitamente o que está a mostrar:  pela suavidade da abordagem, ainda que longe do mesmo nível de elaboração, chega a lembrar o brilhante “Os Sonhos de Wajda”. O tema é conhecido: estado de sítio no qual vivem as mulheres no mundo muçulmano.

 

Why is Difficult Make Films in Kurdistan

 

O filme ganhou uma distinção no Doclisboa – o que não deixa de ser curioso numa noite de premiações que galardoou maioritariamente obras onde a forma esmagava quase nenhum conteúdo. Será o gosto pelo exótico ou o reconhecimento involuntário de que as emoções ainda contam para alguma coisa?

 

PREFERIA NO HACER-LO

 

Enquanto Avci tem de desdobrar-se para sobreviver dentro de limites sufocantes, no extremo oposto a realizadora argentina Ileana Dell’Unti chafurda, justamente, na falta deles – e em que pese o facto de tudo se passar em dois compartimentos.

 

O filme peca pela longa duração mas tem algumas boas ideias – como o seu ponto de partida, que andará em sintonia com muita gente que anda por aí a tentar “escrever um livro”. “No começo queria ser romancista”, diz o alter-ego da autora. “Depois passei para os contos. Fui então para o poesia, que era mais curta e eu poderia ser mais preguiçoso. Acabei por virar comentador do Facebook”, ironiza a si próprio. Ainda assim, ele não desiste de ser o “poeta da era digital”, da “geração que não lê”. É o que no Ocidente se faz com os limites que, em teoria, as pessoas não têm.

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por Roni Nunes às 21:41

Doclisboa: "The Inertia Variations" - a arte da vadiagem

por Roni Nunes, Quinta-feira, 26.10.17

Artigo originalmente postado em C7nema (http://www.c7nema.net/artigos/item/47412-doclisboa-a-arte-da-vadiagem.html)

 

Doclisboa: a arte da vadiagem

  • Publicado por  Roni Nunes

 

 

Quem deambulava pelos caminhos do rock indie dos anos 80 há de lembrar-se de uma energética mistura de guitarras com eletrónica chamada "Infected". Possuía sardónicas (e rudes) referências à SIDA, um dos temas do momento, vaticinando: "In-fec-ted me with your looooove..."

 

Matt Johnson, o homem por trás dos The The, vendeu muitos álbuns na altura, arranjou polémicas com a sua militância política ("Sweet Bird of Truth", por exemplo, era um violento ataque à política externa americana em plena altura do bombardeio à Líbia e acabou "engavetada" pela Epic até a confusão passar) e fez tours mundiais. A meio do filme uma fã norueguesa lhe dirá que o álbum, de 1986, "mudou a sua vida". É sobre um momento da sua vida que se desenrola The Inertia Variations, que tem sessão no âmbito do Doclisboa dia 27, no cinema São Jorge.

 

Continuando com "Infected": "I've got to much energy to switch off my mind... but not enough to get myself organized". Palavras proféticas: em algum momento a "energia" para desligar a mente começou a operar a pleno. Depois de "Mind Bomb", de 1989, o desinteresse progressivo de Johnson pela carreira ganhou novos contornos com um acontecimento trágico – a perda repentina do irmão mais novo em 1988. Ele diz aí ter "perdido a fé no futuro". De qualquer forma, os The The lançaram mais dois álbuns nos anos 90 – um deles de covers de Hank Williams – mais um no ano 2000.

 

A longa aprendizagem para não fazer nada

 

 

The Inertia Variations trata do processo de criação (ou falta dela) ao longo de muitos anos. Há um guru inspirador, o poeta John Tottenham, que além do poema de onde o título do filme foi extraído costuma atualizar o seu blog com inspiradores conselhos para enaltecer a arte da vadiagem. Estes incluem momentos da sabedoria como "Born winner, self-made loser", "A long hard lazy apprenticeship of doing nothing", "Chair, Sofa and Bed"... e por aí adiante.

 

Johnson orgulha-se da capacidade de deitar no sofá e olhar para o teto horas a fio. Mas o filme não é tão bem-humorado quanto parece: o músico, que nos The The chegava a tocar todos os instrumentos numa música, não está totalmente satisfeito com longos períodos onde não faz rigorosamente nada. Caso contrário, não haveria filme.

 

O lamentável estado da democracia ocidental

 

 

O projeto, realizado pela ex-mulher do artista, Johanna Saint Michaels, acompanha-o no momento de criação de uma rádio alternativa. "É irónico", diz ele, "agora as pessoas não acreditam nos meios de comunicação social do Ocidente e buscam notícias verdadeiras em canais da Rússia!". A Cineola tem esse papel: boas bandas tocam ao vivo, poemas são lidos e, claro, muitos depoimentos de ouvintes arengam com relação ao lamentável estado da democracia atual.

 

De resto Johnson continua a escrever canções que nunca termina, letras que nunca ganham uma música. Perambula por Londres, reclama da cidade estar engolida pela especulação imobiliária (o filme não mostra, mas ele tornou-se ativista pela preservação do East End), desculpa-se junto com o realizador de telediscos Tim Pope pelas "mulheres-objeto" dos seus vídeos dos 80s e, sombriamente, o filme acaba por apanhar a morte de outro irmão de Johnson – com quem ele trabalhava no momento e que foi responsável pela arte das capas dos seus discos.

 

No "mundo cá fora" os The The ressurgiram e anunciaram dois concertos para o próximo ano. Um novo álbum deve sair, assim como uma série de material ligados à Cineola: ao que parece a inércia, nas suas infinitas variações, começa a perder terreno.

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por Roni Nunes às 23:44

Doclisboa: como um cinema cómico-erótico desafiou a ditadura no Brasil

por Roni Nunes, Quinta-feira, 26.10.17

Artigo originalmente postado em C7nema (http://www.c7nema.net/entrevista/item/47394-doclisboa-como-um-cinema-comico-erotico-desafiou-a-ditadura-no-brasil.html)

 

Doclisboa: como um cinema cómico-erótico desafiou a ditadura no Brasil

  • Publicado por  Roni Nunes

 

“Pornochanchada” foi o rótulo que críticos mal-humorados atribuíram a uma certa forma de fazer cinema no Brasil nos anos 70. Esta produção logrou ser odiada por todas as tutelas do “bom gosto”: na direita o próprio governo, que detestava aquela cinema “vulgar” para as massas; para a esquerda era um cinema alienante e despolitizado. O público é que não lhes ligava nenhuma: graças a ele, foi um cinema que se sustentou sem subsídios e constitui-se num exemplo de indústria bem-sucedida.

 

“Histórias que nosso Cinema (não) Contava” trás uma “colagem” de trechos de vários filmes do período. O objetivo: mostrar que, muito longe das aparências, foi um cinema crítico e um espelho vibrante da sociedade do período. Visto retrospetivamente nem sempre parece um “bom” cinema: como a realizadora Fernanda Pessoa esclarece, houve coisas boas e más nas obras – o que importa é mostrar que eles foram, de facto, um retrato bastante acurado de um país na fase mais negra da sua ditadura.

 

Da mesma forma, estiveram bem longe de ser politicamente corretos (anos 70!) em relação às mulheres. Para a cineasta, não se trata de um machismo escancarado apenas daquela altura: continua ainda hoje. País com igualdade entre os géneros? Não lhe parece…

 

Fernanda Pessoa concedeu ao C7nema uma entrevista tão rica quanto o seu filme.

 

“Histórias que nosso Cinema (não) Contava” tem sessões no âmbito do Doclisboa nos dias 25 e 28.

Fernanda Pessoa

 

O filme traça uma relação muito singular entre um cinema popular que não parece de forma alguma estar afetado pelo facto de existir num período sombrio da ditadura. A política, por exemplo, aparece em vários momentos e sob perspetivas não propriamente "corretas"...

 

Sim, é surpreendente encontrar tantos comentários políticos nesses filmes. Existe um mito de que esses filmes não eram censurados e até de que o regime militar gostava deles, pois eram alienantes e despolitizados. Isso não é verdade. O regime militar detestava esses filmes pois achava que eles eram imorais e mostravam uma visão de Brasil vulgar e pejorativa.

 

Todos os filmes da chamada “pornochanchada” passaram pela censura e foram, de facto, muito censurados. A diferença é que eles sofriam uma censura moral e não política. Falamos muito sobre a censura política no Brasil e esquecemos que existia um viés moralizador e educador muito grande no regime militar. Os censores muitas vezes achavam que o público brasileiro não conseguiria refletir sozinho e se visse, por exemplo, cenas de pessoas urinando em via pública, iria repetir o feito. Já a censura política estava reservada a filmes de cineastas vindos do Cinema Novo, de esquerda.

 

Além disso, a censura era muito personalizada, tudo dependia do encarregado da análise de cada filme. E, caso um filme fosse totalmente proibido, era possível entrar com pedidos de revisão. Dessa forma, muitos filmes que em um primeiro momento foram censurados, acabaram sendo liberados após a grande burocracia do pedido de revisão.

 

Sabe-se que no final dos anos 70 o regime ditatorial adquiriu um ritmo mais brando mas, de forma alguma, era o caso no início da década, época na qual vários dos filmes que citou foram realizados. Como acha que era possível um cinema que tomava tamanhas liberdades num período particularmente sombrio?

 

É curioso porque a “pornochanchada” é completamente contemporânea da ditadura militar: os primeiros filmes saem em 1969, ou seja, um ano após o AI-5, Ato Institucional Número 5 que marca o começo período mais duro da ditadura no Brasil, e acaba no começo dos anos 80, quase junto com a anistia e a perspetiva de uma abertura democrática. Isso foi o que mais me chamou atenção quando comecei a pesquisar o tema. Parece uma contradição muito grande que esse seja o cinema mais produzido e visto durante uma ditadura militar.

 

Acho que esse cinema foi possível por algumas razões. Primeiro porque os movimentos anteriores, do Cinema Novo e do Cinema Marginal, não conseguiam mais produzir, pois não conseguiam financiamento e muitos de seus realizadores foram perseguidos. Então havia um vazio cinematográfico a ser preenchido.

 

Em seguida, esses filmes eram feitos de forma muito independente, sem depender de financiamento do Estado. Eles realmente criaram uma pequena indústria, em que exibidores – as salas de cinema – e pequenos comerciantes acabaram virando investidores. Como os filmes tinham muita bilheteira, os produtores logo reinvestiam o lucro no próximo filme e, assim, a produção crescia. Além disso, como eu disse acima, o Estado estava mais preocupado com a censura moral desses filmes e não política.

 

 

Esses filmes, sob uma aparência de "exploitation" cómico-erótica, na verdade refletem incrivelmente a década de 70 no Brasil. Falam do êxodo rural, da questão dos patrões e empregados, das lutas dos homossexuais, da emancipação feminina e da crise econômica. Um dos filmes citados, já no final, contém uma piada que parece o espelho do que mostrou, quando um personagem, após ver um filme, diz "nunca vi tanto realismo"...

 

A proposta é justamente encontrar traços da história recente do país nestes filmes que são considerados despolitizados e alienados. A ideia era mostrar que, mesmo em produtos culturais improváveis, é possível descobrir e aprender algo sobre nossa história. Eu digo que o tema do filme não é a “pornochanchada”, mas sim a década de 1970 no Brasil. A “pornochanchada” é o meio, bastante incomum, que eu escolhi para contar essa história.

 

A ditadura também estava vinculada a um forte processo de industrialização. Os filmes refletem a evolução da sociedade de consumo que tem um ponto alto num momento quase surreal - ao som de "The Robots", do Kraftwerk.

 

A ditadura esteve muito associada a um certo projeto de progresso econômico e industrial. Os anos mais duros do regime militar, os chamados “anos de chumbo”, correspondem igualmente ao período do que os militares chamaram de “milagre econômico”, um momento de grande crescimento econômico mas também de aumento de desigualdade social no país. 

 

Uma das grandes revelações que tive no processo de fazer o “Histórias que nosso Cinema (não) Contava” foi ver que o milagre econômico e a industrialização são um dos temas, explícitos ou não, de muitos desses filmes. Sempre há piadas e referências às grandes obras que estavam sendo feitas no momento, como a Transamazónica e a Ponte Rio-Niterói.

 

Além disso, como podemos ver nos primeiros 20 minutos do meu filme, o corpo feminino foi muito utilizado nesse período tanto como metáfora desse projeto de “Brasil grande e próspero” quanto como mercadoria de troca simbolizando os prazeres do tal “milagre econômico”. 

 

Aliás, as mulheres não são, certamente, retratadas numa ótica que, retrospetivamente, possa ser considerada "politicamente correta". Para além da nudez, aparecem frequentemente associadas à exploração do corpo de diferentes formas.

 

A representação feminina é uma das grandes questões do meu filme e perpassa toda sua duração. Eu acho que esses filmes são um retrato muito fiel do machismo da sociedade brasileira. Muitas vezes pensam que o Brasil é um país bem resolvido sexualmente e com igualdade de gênero, o que não é verdade: é um país muito machista e era ainda mais nos anos 70. Nos filmes, como eu disse, existiu essa objectificação do corpo feminino muito forte e revoltante.

 

Num primeiro momento ele é usado como metáfora do milagre econômico e a minha abordagem foi realmente mostrar isso à exaustação, usando a repetição do assunto como recurso para deixar claro o que está em jogo ali. Existe também um subgénero que essa indústria importou da exploitation americana nesse período que se chama “WIP” (Women In Prison) – que, essencialmente, mostra mulheres encarceradas em lugares fechados sofrendo diversos tipos de abuso. No Brasil, adaptaram esse gênero na “pornochanchada” produzida na Boca do Lixo, em São Paulo, e ele teve muito sucesso comercialmente.

 

Por outro lado, há alguns filmes, que são a exceção dentro desse corpus fílmico, mas que existem, que retratam mulheres fortes, buscando sua independência sexual, querendo se divorciar ou mesmo realizar um aborto – algo que ainda hoje é proibido e tabu no Brasil. Uma figura bastante recorrente também é a da filha burguesa que sai de sua cidade no interior, entra em contato com os hippies e com a chamada “revolução sexual” e passa a questionar os valores da sua família tradicional.

 

 

O sexo foi um elemento muito presente no cinema dos anos 70 na Europa (países como Itália, França e até Inglaterra) e nos Estados Unidos. Acha que no Brasil esse cinema, que em parte também reagia aos "standards" do Cinema Novo, levou a receita um pouco mais longe?

 

A “pornochanchada” foi muito influenciada tanto pelos filmes eróticos da Itália do período, que normalmente eram compostos por três episódios (por isso muitos deles utilizam esse formato), quanto pelo cinema exploitation vindo dos Estados Unidos, como mencionei. Além de termos abrasileirado a fórmula, a grande diferença é que, enquanto esses cinemas eróticos ficavam à margem da produção hegemônica desses países, no Brasil virou o grande gênero da década de 1970.

 

Esses eram realmente os filmes mais vistos e mais produzidos do período no país. O cinema erótico deu muito certo no Brasil e realmente criou uma indústria, que não era vista só por homens maiores de 18 anos. No começo da década, quando os filmes ainda eram mais inocentes, ir ao cinema assistir uma “pornochanchada” era um programa de família.

 

Acha que esse patrimônio cinematográfico seja tão negligenciado por ter sido eminentemente popular e, por vezes, intencionalmente à margem do gosto "burguês"? Além do seu filme existem outros projetos cinematográficos e acadêmicos de resgate deste cinema?

 

Eu acho que em primeiro lugar tem a acusação do “mau gosto” destas obras, que é onde a esquerda e a direita encontravam razão em comum para falar mal delas. Para a crítica de esquerda, com exceção de alguns poucos como Jean-Claude Bernardet e Paulo Emílio Sales Gomes, esses filmes eram de mau gosto, despolitizados e alienantes. Para a direita e a censura eram obras amorais, prejudicavam a boa educação do povo brasileiro e mostravam uma imagem pejorativa de país.

 

Ninguém gostava da “pornochanchada” a não ser o público, que ia em massa ver esses filmes no cinema. Acho que também tem a ver com uma certa noção do termo “popular”. Acredito que muitas vezes temos uma noção de popular e povo bastante idealizada e estes trabalhos não condiziam com essa noção. 

 

Também acho importante dizer é que eu não faço uma “defesa” da “pornochanchada” –  e aí também entra a questão do nome pejorativo que os críticos deram para denominar uma série de filmes bastante heterogêneos – afetando assim a receção deles. O meu filme não é para dizer ‘olha só como esses filmes eram bons na verdade’. Eles têm coisas boas e ruins – o que eu quero mostrar é que são um retrato dessa época e revelam muitas coisas sobre os anos 70 no nosso país.

 

Existe mais um resgate dos filmes produzidos nessa época em São Paulo, na “Boca do Lixo”, do que propriamente deste subgénero. Me parece que os teóricos e os próprios cineastas da época ainda têm medo da palavra. Uma iniciativa de resgate desse cinema que eu acho muito importante citar é o da crítica Andrea Ormond e o seu site “Estranho Encontro”, onde ela escreve bastante sobre essa filmografia.

 

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por Roni Nunes às 20:21

Doclisboa 2017: Bárbara Virgínia, a primeira cineasta portuguesa, foi "apagada" da História

por Roni Nunes, Terça-feira, 24.10.17

Artigo originalmente postado em SAPO MAG (http://mag.sapo.pt/cinema/atualidade-cinema/artigos/doclisboa-revela-barbara-virginia-a-primeira-cineasta-portuguesa-apagada-da-historia)

 

Bárbara Virgínia não foi só a primeira realizadora de uma longa-metragem em Portugal, como também foi selecionadoa para a 1ª edição do Festival de Cannes. Mas ninguém sabe quem foi ela. Luísa Sequeira foi atrás da resposta e apresenta “Quem É Bárbara Virgínia?”. O SAPO Mag conversou com a documentarista.

 

 

Quem for pesquisar na Wikipédia em inglês sobre a lista de filmes da edição inaugural do Festival de Cannes (1946), vai encontrar lá “Três Dias sem Deus”, de Bárbara Virgínia. Está ao lado de Alfred Hitchcock, Billy Wilder, Jean Cocteau e do clássico neorrealista de Roberto Rossellini, “Roma, Cidade Aberta”. Muito ilustrativo: ao lado de todos estes mestres e outros um pouco menos conhecidos, o de Bárbara Virgínia é o único a não ter uma hiperligação que explique, afinal, quem é esta ilustre desconhecida.

  

Esta pergunta está no título "Quem É Bárbara Virgínia?" e lança uma série de questões na abertura do filme de Luísa Sequeira: quem foi afinal essa mulher que numa sociedade patriarcal logrou realizar um filme? E por que desapareceu? Onde estaria ela?

 

Bom, essa última questão é parte da premissa do projeto: Bárbara Virgínia vivia em São Paulo, no Brasil. “Estava a trabalhar num projeto sobre a mulher no cinema português”, conta Sequeira. “Uma das pioneiras na realização foi Bárbara Virgínia e, no entanto, descobri que estava a viver em São Paulo e percebi a urgência de estar com ela e de fazer este documentário. Esse foi o meu ponto de partida e o restante foi um processo de colaboração com pessoas que me ajudaram e que fazem parte deste filme.”, completa.

 

Salazar: “Mulher casada que concorre com o marido causa a ruína da família”

 

“Quem É Bárbara Virgínia?” segue uma investigação e não vale contar muito sobre o que Sequeira vai descobrindo. Alguns factos são notórios: para além da citada seleção para o festival da Croisette, “Três Dias sem Deus” causou furor na própria sociedade portuguesa. É uma história incrível de esquecimento.

 

“Sim, a história da Bárbara foi completamente esquecida, assim como a história de muitas outras mulheres… E o facto de ter realizado e protagonizado um filme com apenas 22 anos e ter estado na seleção do festival de Cannes na primeira edição é incrível! Além de ser a única mulher a realizar uma longa-metragem na altura da ditadura”, observa.

 

Mas a história de Bárbara vai mais além: “Ela queria fazer mais filmes, era uma artista multifacetada e com um talento enorme. Uma mulher muito determinada e com muita personalidade, isto num país que vivia uma ditadura onde nem todas mulheres podiam votar, num país que não permitia à mulher viajar para o estrangeiro sem autorização do marido.”

 

O filme destaca em mais do que um momento a relação entre este Estado opressor e o destino que acabou por ter essa mulher ativa e independente.

 

Diz Sequeira: “Portugal era um país muito conservador, o próprio Salazar declarava: ‘Nos países onde a mulher casada concorre com o trabalho do homem, a instituição da família ameaça a ruína’ . No entanto Bárbara conseguiu fazer uma longa-metragem, queria fazer mais filmes, mas em Portugal não havia lugar para mulheres como ela, por isso é que ela foi para o Brasil, onde teve outras oportunidades.”

 

A mulher no século XXI

 

“As mulheres foram, durante muito tempo, deixadas na sombra da História. Aliás, a História é escrita no masculino. Para construirmos o presente temos de olhar para o passado mas lançar um olhar mais crítico sobre as fontes”, observa a cineasta.

 

E, passados todos esse anos, o que o presente reserva à mulher no audiovisual português? “Infelizmente ainda hoje se verificam múltiplas formas de descriminação das mulheres. É só olhar à nossa volta e ver qual a percentagem delas em cargos de decisão em diferentes áreas. As medidas sociais ainda não são as ideais… Claro que estamos muito melhor e temos mulheres a trabalhar no audiovisual, que fazem um excelente trabalho, mas ainda assim acho que deveríamos ter muitas mais”, refere Sequeira.

 

“Quem É Bárbara Virgínia?” tem sessões no âmbito do Doclisboa nos dias 25 e 29 de outubro. É apresentado com os 26 minutos que restaram de “Três Dias sem Deus” e com a curta-metragem “A Aldeia dos Rapazes”.

 

 

 

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por Roni Nunes às 21:47

Doclisboa: Whitney Can I Be Me - crónica de uma tragédia-cliché

por Roni Nunes, Domingo, 22.10.17

Artigo originalmente postado em C7nema (http://www.c7nema.net/artigos/item/47376-doclisboa-whitney-can-i-be-me-cronica-de-uma-tragedia-cliche.html)

 

Doclisboa: Whitney Can I Be Me - crónica de uma tragédia-cliché

  • Publicado por  Roni Nunes

 

Artista famosa não suporta a pressão. Tem uma mãe dominadora. Está cercada de parasitas. A única amiga verdadeira é suspeita de ser sua amante.

 

O desejo de ter uma familia normal faz a artista famosa agarrar-se a um Outro idealizado. Que, certamente, não corresponderá. A artista famosa é o centro de uma máquina em andamento. Não pode parar ou toda a gente deixa de ganhar dinheiro. Não importa como se sente. A artista famosa tem uma filha; ser mãe não é uma mera questão de vontade. A artista famosa sequer conseguirá que a filha tenha um destino melhor que o seu.

 

A história triste de Whitney Houston seria apenas um filme-cliché se não fosse verdadeira. 

 

Ninguém nos anos 80 parecia notar: Whitney veio do gueto. A primeira coisa a fazer quando se quer que ela transcenda o audiência negra e transite para o mainstream é apagar as suas raízes. É o que lhe é pedido e é o que ela faz: representa um papel. Assim, logo de início lhe é arrancado o primeiro traço da sua identidade. Fundamental dentro da ideia exposta pelo realizador Nick Broomfield no título do seu filme. Depois de um episódio duríssimo, a vaia no Soul Train (para os negros ela era uma traidora), ela vai lançar ao produtor uma pergunta retórica na elaboração do álbum a seguir: "posso ser eu"?

 

 

Todos os entrevistados avançarão respostas para a escolha de Whitney por um caminho sem volta. A religião, tal como compreendida por ela e sua família tem um papel fundamental na sua derrocada. Os dogmas são baseados em "verdade reveladas" repletas de medo e preconceito. Há quem sugira pelo filme que talvez ela estivesse viva se tivesse assumido uma relação com Robyn Crawford, sua amiga de infância. Tal jamais seria suportado por alguém próximo a ela. Tempos mais tarde tentará a família idealizada de todo o temente a Deus. Ingénua ela fará,claro, uma má escolha.

 

Antes disto, uma cantora da sua banda resume a situação de uma forma brutal: "A mãe dela estava muito contra. Clive (o produtor) estava muito contra. Porque não era bom ter um caso lésbico. Acho que que se ela fosse artista hoje, não teria problema. Estaria tudo bem. Provavelmente ainda estaria aqui. Mas a essa altura, havia uma pressão tremenda para ela ser a rapariga perfeita. Tornou-se um conflito e é interessante, porque há as drogas, há esta família consumida pelas drogas, e mesmo assim é na homossexualidade que eles se focam. Quando teria sido melhor tentar lidar com essas drogas do que, provavelmente com isso. É de novo aquela religião, a religião feroz que, eu penso, que Cissy tinha, que era muito importante para ela, Ela era uma anciã na igreja, a filha não podia ser homossexual".

 

 

Outro momento: Whitney procura desesperadamente por Deus, mas este náo é de forma alguma o Deus que ela precisava: é um ser esmagador, que a cobra por ter lhe dado um dom e ela não sabe cuidar dele.

 

Quanto a Bobby Brown, a ingenuidade da cantora é tocante: num "talk show" ela diz que ele tinha tido outras mulheres como qualquer homem mas, agora, tinha ganho juízo e decidido "assentar e ter uma família".

 

Talvez a cena mais "aterradora" e surreal desta trajetória para o caos seja protagonizada pelo seu pai. Não se encontra tão facilmente episódios assim: moribundo num hospital, a última coisa que se lembra de fazer é processar a própria filha. Já a morrer, demanda que ela lhe pague o que lhe deve. Nas suas contas são 100 milhões de dólares. A vida da artista famosa tinha, afinal, um preço.

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por Roni Nunes às 22:35

Doclisboa: «No Intenso Agora» – um poema estupendo e o fim das utopias

por Roni Nunes, Domingo, 22.10.17

Artigo originalmente postado em C7nema (http://www.c7nema.net/entrevista/item/47369-doclisboa-no-intenso-agora-um-poema-estupendo-e-o-fim-das-utopias.html)

 

Doclisboa: «No Intenso Agora» – um poema estupendo e o fim das utopias

  • Publicado por  Roni Nunes 

 

 

Um lindo crepúsculo chuvoso sobre o complexo de vidro que rodeia as salas do Cinemarx. A estreia mundial de No Intenso Agora, no Festival de Berlim, tem um teatro a abarrotar. O filme termina, os aplausos são entusiasmados; alguns estão tocados pela delicada teia urdida a partir de comoventes filmes familiares que funcionam como testemunhos oculares de momentos coletivos dramáticos – cozidos com a leitura das imagens feitas em off pelo cineasta.

 

João Moreira Salles fala com o público. Que está interessado: No Intenso Agora fala de muita coisa, cabe um mundo nas suas duas horas de projeção. Mas é muito mais do que os fragmentos da Revolução Cultural chinesa, o Maio de 68 francês, a invasão da Checoslováquia pelos russos no mesmo ano.

 

No dia a seguir à sessão na Berlinale, Moreira Salles conversou com o C7nema.

No Intenso Agora é exibido amanhã (22/10) no cinema São Jorge, com a presença do cineasta.

 

O MAIS ROMÂNTICO DOS SONHOS REVOLUCIONÁRIOS

 

 

De todas as fantasias revolucionárias retrospetivas, a imagem do Maio de 68 é das mais duradouras."É a mais romântica", diz o cineasta. Fragmentos do filme: em Paris os estudantes tiram a voz aos mais velhos, filhos de burgueses batem-se nas ruas com as tropas de choque enviadas pelos seus pais; a Paris Match paga uma viagem a Daniel Cohn-Bendit e torna a revolução num adereço de marketing; estudantes e operários falam de alturas diferentes; nunca se entenderão. As imagens são poderosas: no fim de uma greve, uma operária traída.

 

O realizador assinala: "O maio de 1968 envolve uma nostalgia, é o mais romântico, com as suas palavras de ordem, a poesia, é deslumbrante. Mas, na verdade, nos Estados Unidos e na Checoslováquia ele foi mais rico, tinham mais coisas em jogo. E foi mais corajoso, teve mais consequências. O maio de 1968 francês foi socialmente conservador, as mulheres estão em segundo plano e os negros estão ausentes".

 

Tampouco estudantes e operários concordaram em apertar as mãos. "Houve uma única passeata em que, pela primeira e última vez, estudantes saíram em passeata com a organização sindical. Estes, no entanto, disseram que não apertariam a mão de Cohn-Bendit, ele que fizesse passeata em outro lugar".

No filme, Cohn-Bendit encontra a glória e é consumido por ela - agora é o maior intelectual francês, Jean-Paul Sarte, quem o entrevista. O pensador está espantado com a falta de um programa dos estudantes.

 

"Sartre dizia a eles: vocês têm que ter um programa, uma direção. Quando não se tem ganha-se algumas coisas – a vitalidade, a espontaneidade, a alegria, a irmandade, mas perde-se noutras, que é a capacidade de impactar de verdade", reflete. Tudo terminará numa "acordo sórdido" a envolver questões salariais, dirá um anónimo.

 

TANQUES EM PRAGA: O FIM DE TODAS AS ESPERANÇAS

 

 

A História é algo móvel. A escolher um momento para o fim de todas as esperanças, Salles optaria pela invasão de Praga pelos tanques soviéticos. Este é mostrado por comoventes imagens familiares, colhidas através de arquivos de preservação do país. "O material que encontramos sobre esta altura é um achado", lembra.

 

O cineasta analisa: "Podemos afirmar que a experiência de 68 acaba aí. Aí temos um país socialista esmagando uma experiência progressista de um país que não queria necessariamente emigrar para a esfera do Ocidente. Quando aquilo ocorreu a juventude que tinha saído às ruas em 68 em nome de um socialismo mais progressista percebeu que não havia caminho, não havia jeito."

 

Os russos já tinham apoiado os sindicatos franceses a acabarem com as greves e encerrarem os tumultos. Fidel contribui com a pá de cal: "Cuba apoiou a invasão. Fidel naquele momento ainda era a grande luz no sentido da revolução libertária. Ele diz que moralmente era indefensável, mas politicamente a invasão de Praga era necessária. Aí as pessoas se deprimem, a ideia de socialismo acaba".

 

UM PONTO DE CHEGADA: BRASIL, 2013

 

 

O filme restringe-se ao ano de 1968. Pergunto ao cineasta o significado simbólico deste fim de ideia utópica para o Brasil, um país com muito a conquistar.

"Sob um certo aspeto abandonar a utopia foi uma coisa boa. Sob um certo ponto de vista, a utopia é um "não-lugar", algo onde você nunca vai chegar. É bom o fim desta ideia, temos que lidar com coisas possíveis, palpáveis. As manifestações que ocorreram no Brasil em 2013, por exemplo, eram anti-críticas, conservadoras, que desqualificam a política. Diziam 'partido político não!'. Mas o que você vai pôr no lugar? Essa via abre espaço para a Bolsonaros *".

 

* Referência a Jair Bolsonaro, política brasileiro com estilo e discurso semelhantes ao de Donald Trump.

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por Roni Nunes às 15:52

Doclisboa 2017: Risk

por Roni Nunes, Sábado, 21.10.17

Artigo originalmente postado em SAPO MAG (https://mag.sapo.pt/cinema/atualidade-cinema/artigos/doclisboa-julian-assange-e-o-super-heroi-de-risk)

 

Doclisboa: Julian Assange - o super-herói

Depois de “Citizenfour”, a realizadora Laura Poitras regressa com “Risk”, uma narrativa fragmentada sobre momentos da vida de Julian Assange, o australiano que fundou o Wikileaks.

 

 

Laura Poitras gosta de labirintos. E passeios e conexões nem sempre óbvias entre muitos tempos e espaços. Não é fácil acompanhá-la; não há um centro, um foco, uma trajetória linear em “Risk”.

 

A narrativa fragmentada fala de momentos na vida de Julian Assange, o australiano que fundou o Wikileaks e entrincheirou-se na Embaixada do Equador em Londres sob a acusação (nunca formalizada) de assédio sexual.

 

Por essas deslocações pelo globo talvez a ideia da realizadora seja a de mostrar que os enredos de filmes de espionagem existem no mundo real; sem o conforto da fantasia, no entanto, percebe-se que os “bons” são feios, os “maus” são os heróis e o mundo em que vivemos é um lugar muito temerário.

 

Ocorre então que, em algum ponto do planeta, alguém levanta-se contra a maré; poucos – Assange, Edward Snowden, tema do seu filme anterior, “Citizenfour” – tornam-se mediáticos; logram reunir apoio entre “hackers” que enviam estilhaços de uma cave cibernética ou jovens que dão a cara mascarada em manifestações à pala de outra fantasia distópica – a do “Anonymus” de “V de Vingança”. Não imaginam, mas são “privilegiados”: ao redor do mundo milhares de heróis pobres e não “tecnológicos” desaparecem sob a tortura e o assassinato.

 

 

Super-heróis

 

No mundo da internet e do Big Brother do século XXI as histórias de super-heróis só podem ser materializadas como um filme de cerco. A clausura não envolve só Assange; a sua assistente e futura esposa, Sarah Harrison, o seu colaborador Jacob Applebaum: todos têm uma vida dura.

 

Poitras, por seu lado, afirma encontrar a casa revirada pelo FBI quando volta de viagem e pertence à lista negra dos ativistas “anti-US” que são revistados em todos os aeroportos por onde passam.

 

Mas ninguém está a fazer de super-herói: segundo os cálculos do fundador do Wikileaks em “Risk”, uma extradição para os Estados Unidos custaria-lhe a pena de morte ou prisão perpétua. Na “melhor” das hipóteses, 30 anos de prisão – “sob condições bastante severas”.

 

Os protetores

 

Um claustrofóbico estado de vigilância. CIA, NSA, FBI: o mundo é um lugar perigoso. São idealizados nas fábulas de Hollywood, mas na prática trazem ao de cima ao cidadão comum a angústia com raiz na Antiguidade romana: “Quem nos protegerá dos nossos protetores”?

 

Em "Risk", quando a palhaça Lady Gaga (sim, a própria) entrevista Assange, ele enumera uma bela lista de caçadores – que além das siglas citadas e dos diversos braços, armados ou não, dos departamentos de Defesa e Justiça dos Estados Unidos, incluem muitos outros da sua terra natal e da Inglaterra.

 

Declarações de intenções

 

Aqui e ali, resquícios de uma filosofia simples e coesa. Não é a complexidade das ideias, mas a tenacidade com que alguém se mantém fiel aos seus princípios (o diálogo inicial) ou uma justificação existencial encontrada a meio do filme: “Não acredito em mártires. Só em raros casos alguém o deveria ser. Mas o risco da inação é extremamente elevado. Qual é o risco de ficar sentado? É apenas mais um dia que se perde. Você não tem muitos. Se você não está a lutar por aquilo que acredita, você está a perdê-los”.

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por Roni Nunes às 01:13

Doclisboa 2017: I Don't Belong Here

por Roni Nunes, Sábado, 21.10.17

Artigo originalmente postado em SAPO MAG (http://mag.sapo.pt/cinema/atualidade-cinema/artigos/doclisboa-exibe-filme-sobre-a-dura-vida-dos-deportados-acorianos)

 

Doclisboa: a dura vida dos deportados açorianos

"I Don’t Belong Here" conta a história de açorianos expulsos dos Estados Unidos e do Canadá. De volta às ilhas, são obrigados a integrar-se num país que nunca conheceram. O SAPO Mag conversou com o realizador, Paulo Abreu.

 

 

“I Don’t Belong Here”, presente na Competição Portuguesa do Doclisboa, conta a história de açorianos expulsos dos Estados Unidos e do Canadá. De volta às ilhas, são obrigados a integrar-se num país que nunca conheceram. Para aliviar a situação, um grupo de teatro convida-os para fazer uma peça… O SAPO Mag conversou com o realizador, Paulo Abreu.

 

Segundo o filme relata, entre 2013 e 2015 centenas de imigrantes ficaram retidos nos Açores depois de terem sido expulsos da América do Norte. A viver numa situação precária, ficaram afastados da única realidade que conheciam – uma vez que saíram de Portugal quando crianças pequenas.

  

A maior parte deles nem sequer fala português; outros deixaram para traz famílias e, essencialmente, tudo o que tinham. Para além destas dolorosas questões pragmáticas, o filme espelha a questão da identidade – muita reveladora no jogo de futebol entre Portugal e Estados Unidos, que divide a audiência.

 

Um trabalho com um grupo no teatro, no entanto, aliviou um bocado a vida de alguns deles ao permitir-lhes, com base na partilha de experiências, desenvolver um trabalho de interpretação como atores. No final, houve até dois deles que foram selecionados para o novo filme de Bruno Almeida (o mesmo de “Operação Outono”).

 

Na entrevista que se segue, Paulo Abreu conta os pormenores de uma história de contornos dramáticos.

 

O futebol é chato e os Açores parecem Alcatraz

 

“Como a grande maioria deles saiu dos Açores com quatro ou cinco anos, a sua cultura é totalmente americanizada. Apesar de as raízes serem açorianas, toda a educação foi ou americana ou canadiana, eles não têm nenhum ou muito pouco conhecimento da história de Portugal e da cultura portuguesa – como se pode ver no filme quando visitam algumas cidades. Também como a maioria emigrou para fugir à pobreza e os pais estavam sempre demasiado ocupados a trabalhar para sobreviver, provavelmente nunca tiveram tempo de lhes passar alguma cultura portuguesa."

 

"Eles não se sentem portugueses e, de facto, não são, daí o título "I Don't Belong Here" - que também era o título da peça. No jogo de futebol que se vê no filme, há uma divisão dos que torcem por Portugal e dos que torcem por Portugal ou pela América mas, a grande maioria deles, no fundo, acha o "soccer" muito "boring" e gostam é de basebol, basquetebol, “bowling” ou futebol americano. Essa é a realidade deles."

 

"Também é importante perceber que eles estão naquela ilha obrigados, não foram para lá de férias - daí muitos lhe chamarem Alcatraz ou 'o rochedo'. Aquilo para eles é uma prisão rodeada por água. Um deles diz no filme que preferia ter ficado na prisão na América porque, pelo menos, podia abraçar os filhos quando eles o fossem visitar. Nos Açores não recebem visitas da família porque, normalmente, elas não têm dinheiro para o fazer."

 

Uma situação triste e revoltante

 

“Acho que o filme retrata também um período em que eles foram bastante felizes, ou um pouco mais felizes, porque perceberam que se podiam 'evadir' através da arte. E, de facto, acho que se evadiram. Eles eram excelentes atores e muito corajosos porque nós todos os dias lhes pedíamos para nos contarem coisas que eles estavam a tentar esquecer. A peça era uma espécie de documentário ao vivo, com monólogos improvisados, baseados nas vivências pessoais deles, mas também com algumas situações cómicas que mostravam o absurdo da deportação."

 

"Tudo começou com uma peça de teatro sobre a passagem do cantor Jacques Brel no Faial, 'Brel nos Açores', que terminou por ser um enorme sucesso nas ilhas. O Observatório dos Luso-Descendentes desafiou o grupo, então, a realizar um trabalho sobre a deportação. A peça depois virou o projeto do filme. Com a ajuda voluntária de muita gente fomos conseguindo fazê-lo – sem nunca termos, de facto, um orçamento definido. Agora temos de tentar arranjar dinheiro para pagar alguns 'cachets' técnicos e tentar distribuir o filme."

 

"Durante os primeiros 'workshops', eu e a equipa tomámos consciência da duríssima realidade destes homens e da injustiça da situação, já que eles são deportados depois de cumprirem penas de prisão e não antes. O que, no fundo, é uma dupla pena – muitas vezes por crimes banais que em Portugal não seriam sequer crimes. É o caso da posse de pequenas doses de drogas, por exemplo. As leis da deportação na América do Norte endureceram bastante depois do 11 setembro de 2001. Toda esta situação e as histórias horríveis de separação de famílias que ouvi revoltaram profundamente a mim e à equipa."

 

Em busca de um final feliz

 

“O cineasta Bruno de Almeida foi ver a peça quando estreou em Lisboa e adorou-os como atores – acabando por escolher dois deles, Tony Brum e Zita Almeida, para um filme; mais tarde, foi à ilha fazer 'castings' e trouxe outros dois deportados que não tinham feito a peça. Eles entraram numa longa-metragem que vai estrear para o ano e onde, por exemplo, o Tony Brum faz de braço direito do Michael Imperioli ["Os Sopranos"] e tem um belíssimo papel. Fui lá visitá-los à rodagem um dia e os deportados estavam bastante à vontade naquele meio, foi muito bom vê-los felizes outra vez."

 

"A intenção principal é pôr o projeto em festivais nos Estados Unidos e no Canadá, porque assim os deportados do Canadá podem ir aos EUA e vice-versa. Isso seria o ideal e sentiria que a nossa missão foi cumprida, já que tentámos fazer isso com a peça mas era incomportável em termos financeiros."

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por Roni Nunes às 00:58

Fragmentos do mundo contemporâneo: começa hoje (19/10) o Doclisboa

por Roni Nunes, Sexta-feira, 20.10.17

Artigo originalmente postado no C7nema (http://www.c7nema.net/festival/item/47351-fragmentos-do-mundo-contemporaneo-comeca-hoje-19-10-o-doclisboa.html)

 

Fragmentos do mundo contemporâneo: começa hoje (19/10) o Doclisboa

  • Publicado por  Roni Nunes

 

 

O festival decorre entre 19 e 29 em espaços como a Culturgest, a Cinemateca, o Museu Berardo e os cinemas São Jorge e Ideal. A programação desloca-se em diversos tempos e locais para oferecer um amplo panorama temático; o enfoque alternativo presta-se a outros olhares sobre o mundo que nos cerca.

 

TERRITÓRIO NACIONAL

 

 

Tudo começa em Lisboa: Ramiro, de Manuel Mozos, mergulha na rotina dum alfarrabista da capital e faz as honras de abertura do Doclisboa 2017; para o Encerramento o teatro desloca-se para a capital do Brasil (Era uma Vez Brasíla), que surge distópica na ótica de Adirley Queirós – que retorna ao festival depois da passagem comBranco Sai, Preto Fica em 2014.

 

Em Portugal os temas da Competição são muitos e trazem uma mostra que ignora a duração dos filmes – há curtas, médias e longas-metragens. A crise económica perpassa em Notas de Campo, a destruição do património histórico e o desalojamento de famílias em função do negócio em Dom Fradique, enquanto muito se passa em interiores (À Tarde, Eclipse, Barulho, António e Catarina), Espadimacompanha a vida de três homens entre a casa e o trabalho e Vira Chudnenko trata de uma mulher atacada por cães rotweiller.

 

Entre as longas, há o inevitável tema da desertificação e do envelhecimento das populações do interior em obras como Diário das Beiras, de João Canijo, enquanto dois destaques que apontam para outras fronteiras: I Don't Belong Here (Paulo Abreu) aborda a dura vida de imigrantes açorianos deportados para ilha vindos dos Estados Unidos – que não estão nem aqui nem lá e O Canto do Ossobó (Silas Tyni) marca uma viagem a outro arquipélago, o de São Tomé e Príncipe, em busca de identidade pessoal entre os fantasmas da longa história de escravatura da população.

 

Fora de competição João Salaviza estreia em Portugal aquilo que já mostrou em Berlim – uma mistura de paranoia com rap cabo-verdiano em Altas Cidades de Ossadas; por seu lado Todas as Cartas de Rimbaud (Edmundo Cordeiro) é uma aventura intelectual que entrecruza poesia e filosofia e Filipa Reis mergulha em cenários da Guiné-Bissau em Spell Reel.

 

Um dos grandes momentos deste Doclisboa será, porventura, Quem Foi Bárbara Virgínia (Luísa Sequeira), narrativa que segue os passos da personagem-título para entender o cruel "apagamento" da história da primeira mulher a fazer longas-metragens em Portugal. Três Dias sem Deus, o seu filme, também cometeu a proeza de ser selecionado para a edição inaugural do Festival de Cannes – exibida lado-a-lado a monstros do cinema como Alfred Hitchcock, Billy Wilder e Jean Cocteau!

 

PELO MUNDO

 

 

Risk desdobra-se pelo mundo para Laura Poitras contar a claustrofóbica história de um herói à moda do século XXI, Julian Assange; muito longe também foi o veterano Claude Lanzmann na mistura de comentário político com memórias pessoais em Napalm, resultado de uma visita à Coreia do Norte; Ainda na Ásia há o suspeito do costume, Wang Bing, com Bitter Money e Mrs. Fang, e Barbet Schroeder a abordar o budismo em Venerable mr. W.; preocupado com a Terra toda estará em videoconferência Al Gore para a sessão deThe Unconvenient Sequel: Truth to Power.

 

Do Brasil, além da sessão de encerramento, há um poema de rara beleza (No Intenso Agora, de João Moreira Salles) e um achado de construção histórica (Histórias que o Nosso Cinema não Contava, de Fernanda Pessoa) – onde uma sociedade sob uma ditadura sangrenta (anos 70) é transgressivamente retratada num subgénero cómico-erótico que passou à história como "pornochanchada". Como parte da Competição está Martírio (Vincent Carelli), um amplo panorama sobre a destruição dos índios pelo agronegócio.

 

AS ARTES

 

 

Como sempre umas tantas cerejas do topo do bolo do Doclisboa vêm da secção Heart Beat, inteiramente dedicada ao mundo das artes.

 

Este ano há divas provocativas (Grace Jones: Bloodlust and Bami), trágicas (Marianne Faithful em Faithfull, Whitney Houston emWhitney Can I Be Me), grandes astros de outros tempos (Becoming Cary Grant), cinema indie com música (Alive in France, de Abel Ferrara), música com cinema indie (The Inertia Variants" com Matt Johnson, dos The The, Never Stop com os eletrónicos alemães,Bamseom Pirates Seoul Inferno, com uma banda punk coreana), jazz (Bill Frisell: a Portrait), artes plásticas revolucionárias (Beuys), entre outros.

 

Uma menção adicional que poderia ser escolhida entre muitas: do Afeganistão vem a história de um cineasta que, contra todas as probabilidades, faz filmes numa terra devastada – em The Prince of Nothinwood (Sonia Kronlund).

 

A HISTÓRIA

 

 

Cineasta com mais sorte na proveniência, Jean-Luc Godard tem um raro momento seu recuperado: Grandeur et Décadence d'un petit Commerce de Cinema foi feito para a televisão nos anos 80 e, como sempre, parte de uma coisa (um thriller, neste caso) para chegar a outra muito diferente.

 

Por fim, mas não menos importante, os destaques especiais são Vera Chytilova, nome absoluto do Cinema Novo da antiga Checoslováquia, e a americana Sharon Lockhart. O festival contará ainda com uma grande retrospetiva dedicada ao cinema de Québec e um trabalho essencial sobre a  antiga Presidente do Conselho Europeu, a francesa Simone Veil (Simone Veil – a French Story), falecida em junho deste ano.

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por Roni Nunes às 22:23


Comentários recentes

  • Cleber Nunes

    Sem dúvida é um filme que me despertou interesse ...



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