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“Quanto mais filmes podemos ver, mais vemos os mesmos filmes.” Jean-Michel Frodon
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Artigo originalmente postado em SAPO MAG (http://mag.sapo.pt/cinema/atualidade-cinema/artigos/doclisboa-os-americanos-ja-arrasaram-a-coreia-do-norte-em-1953?artigo-completo=sim)
Apenas oito anos se haviam passado desde Hiroshima e Nagasaki quando o célebre herói da Segunda Guerra Mundial, o general Douglas MacArthur, pretendeu valer-se da divisão do átomo outra vez – desta sobre a cabeça dos coreanos.
Estes, rebeldemente, insistiam em permanecer comunistas – para piorar num território muito apetecível no jogo geopolítico internacional.
A ferida aberta de Kim Jung-Un
No seu novo trabalho "Napalm", o lendário Claude Lanzmann (“Shoah”), atualmente com 91 anos, lembra esta história depois de chegar ao país em 2015 – onde também recordará a sua passagem por lá no final dos anos 50.
Pelas lentes da câmara da sua fotógrafa, Caroline Champetier, desfila uma cidade incrivelmente limpa, moderna, ordenada e cheia de parques. Mas o roteiro turístico, provavelmente o único autorizado, capta a ferida aberta que, no fundo, nunca cicatrizou.
“Em 1958 eles eram muito simpáticos, generosos e civilizados a despeito do que tinham passado”, disse ele numa entrevista ao Telegraph, acrescentando que “esta guerra horrível é a raiz de tudo o que estamos a assistir agora. Não podemos falar sobre este país e esquecer este conflito. Foi a Guerra da Coreia que os fez”.
Em jeito de conclusão depois de passeios por uma cidade rodeada de museus de guerra, estátuas do grande líder e belas raparigas que, invariavelmente, estão a lutar ou a descrever atrocidades, Lanzmann diz que o país é um território em permanente preparação para uma nova guerra que nunca aconteceu. Ainda.
Mas, para ele, toda esta história não passa de um grande “bluff”. Disse ele ao Guardian: “Os norte-coreanos estão muito longe de poderem efetivamente lançar um míssil contra os Estados Unidos. Eles apenas jogam com isso. E acho que eles e Donald Trump ainda serão grandes amigos!”
Napalm emocional
Na segunda parte, o filme toma outros rumos. Em 1958, ainda haviam ruínas quando Claude Lanzmann foi até lá como membro de uma comissão francesa; sob o caos, uma inesquecível enfermeira da Cruz Vermelha…
Quanto ao resto, não se tratam de ilusões de um velho comunista; as lembranças dão conta de uma história sobre a interferência do Estado nos assuntos privados – suficientemente brutal para desencorajar as crenças nas práticas do “socialismo real”.
Ingerências que, aliás, decorreram durante as filmagens, dificilmente autorizadas e apenas sob o pretexto de que ele estava a fazer um filme sobre… taekwondo.
As notícias dos telejornais por cá são calculadas para fazer reagir, não para fazer pensar: entre a beleza triste da sua história e as suas conexões implícitas, “Napalm” lança uma luz sobre as eventuais razões para insistência militarista do “louco” Kim Jung-Un, que não parece merecer uma biografia credível no Ocidente nem no Wikipédia.
“Não sou comunista há muito tempo e acho que mostro isso no filme. Mas [tudo] é muito complexo para ser resumido a expressões como ‘Eixo do Mal’”. Por outras palavras, se do lado asiático as razões vêm das sombras dos mortos, do lado do Pentágono as motivações são as do costume", recorda o cineasta.
“Napalm” é exibido no âmbito do Doclisboa, dia 19, no cinema Ideal.
A poucos dias do início do Doclisboa, a diretora Cíntia Gil dá pormenores sobre alguns dos pontos altos de uma vasta programação daquele que é um dos mais importantes festivais de cinema documental da Europa mas que não abre com um documentário, mas sim com “Ramiro”, novo trabalho de Manuel Mozos.
A explicação é simples: “Essa separação de género não nos interessa muito. O que nos agrada sobretudo é o modo como os filmes nos aproximam do real e o partilham connosco através de olhares singulares. Há também outros trabalhos no Doclisboa dificilmente classificáveis como documentários”, observa.
Da Terra à Lua
Formatos à parte, um dos destaques é a programação enquadrada sob o rótulo “Da Terra à Lua”, que inclui alguns nomes mediáticos do panorama internacional.
Entre outros destaques, há Laura Poitras a falar de Julian Assange, João Moreira Salles, Wang Bing, Claude Lanzman, e até Barbet Schroder com uma abordagem do budismo em Myammar com “The Venerable W”.
Já a sequela de "Uma Verdade Inconveniente", intitulada "An Inconvenient Sequel: Truth to Power", contará com uma videoconferência com Al Gore.
“Da Terra à Lua é uma secção onde os grandes nomes do cinema de hoje são apresentados, ao lado de outras vozes que nos ajudam a ter uma imagem, uma perspetiva do mundo de hoje. Este ano, de facto a secção está cheia de filmes importantíssimos”, refere Cíntia Gil.
A diretora destaca títulos como o de Boris Yukhananov, vindo do de teatro russo, que trata da famosa final do Campeonato do Mundo de 2006, com Zidane e Materazzi como figuras centrais.
“Chamo a atenção também para os filmes portugueses presentes na secção: Edmundo Cordeiro com Filomena Molder em 'As Cartas de Rimbaud' e Anabela Moreira com uma belíssima curta, 'A Mim'”.
Jean-Luc Godard
Godard é sempre Godard e a secção Riscos apresenta um trabalho seu raríssimo e recentemente restaurado.
"'Grandeur et Décadence d'un petit Commerce de Cinéma' é um filme de Jean-Luc Godard feito para uma série de televisão intitulada 'Série Noire'. Seria eventualmente um 'thriller', mas Godard subverte os géneros, como sempre no seu cinema, e constrói uma parábola e uma crítica sobre o cinema: a história de um realizador que prepara um filme [Jean-Pierre Léaud] e o seu produtor falido. Nunca passou em cinema até este ano, embora nos pareça um filme que tem a sua importância na filmografia do autor”.
Retrospetiva: Vera Chytilova
O cinema do Leste europeu é sempre mal conhecido em Portugal. Em 2015, o Doclisboa destacou o sérvio Zelimir Zilnik, este ano é a vez de Vera Chytilova, que começou ao lado de Jan Nemec durante a Nova Vaga Checa, na década de 60.
Segundo Cíntia Gil, “embora sejam cinematografias muito distintas, tanto Zilnik como Chytilova viveram a transição do comunismo para a democracia, ambos viram os seus países dividirem-se, foram proibidos de filmar nos períodos políticos mais duros e recusaram abandonar o país; mas tiveram interesses e modos de filmar muito diferentes”.
A diretora do Doclisboa destaca ainda que a cineasta construiu uma obra plena de ambiguidade, com enorme interesse por questões existenciais e pela alma humana: “É uma filmografia muito diversificada, profundamente inconformista. E muito desconhecida cá - à parte de "Daisies" [As Pequenas Margaridas], que teve estreia em Portugal.”
Outra convidada especial: Sharon Lockart
Já o trabalho da outra convidada, Sharon Lockhart, inaugura também uma parceria com o Museu Berardo, numa exposição concebida por Pedro Lapa com a artista.
“Sharon Lockart é das cineastas/artistas que mais tem trabalhado na relação entre o cinema, a fotografia e o espaço expositivo. E os trabalhos que apresentaremos - juntamente com dois filmes na exposição e o seu último projeto na Secção Riscos - centram-se sobretudo num belíssimo trabalho que desenvolveu na Polónia, com jovens, a partir dos seus gestos, vivências, e da sua construção afetiva e identitária”.
Cinema de urgência: Palestina e Venezuela
O cinema de urgência traz projetos sobre dois territórios ligados à tragédia e a complexidade política - a Palestina e a Venezuela. Serão apresentados materiais que darão suporte a debates posteriores à sessão.
No caso da Palestina, convidado será o coletivo israelita B'Tselem: estará em Portugal um membro para conversar sobre a produção de arquivos destas imagens.
“Eles têm desenvolvido um impressionante trabalho de formação de cidadãos para reportarem os eventos nos territórios ocupados, organizando simultaneamente um importante arquivo desses materiais filmados pelas pessoas, do qual apresentaremos alguns filmes”, assinala Cíntia Gil.
Quanto à Venezuela, é Andrés Duque, realizador venezuelano que abriu o Doclisboa em 2016 com "Oleg y las Raras Artes", que partirá dos seus próprios filmes, em particular da sua trilogia sobre a memória, para falar de algumas questões de fundo na sociedade do seu país.
Reda Kateb é o protagonista de “Melodias de Django”, que estreou em Portugal esta semana. Este foi o filme de abertura do último Festival de Berlim, onde o SAPO Mag conversou com o ator sobre temas implícitos do filme – como o racismo, a extrema-direita e a crise dos refugiados.
A escolha para a abertura de um dos festivais mais politizados do mundo não foi gratuita. Os alemães, mais do que qualquer outro povo europeu, têm noção dos perigos do ultranacionalismo e o filme realizado por Etienne Colmar, não abordando diretamente o tema, relata antes o processo de perseguição aos ciganos ocorrido no contexto da Segunda Guerra Mundial.
O ator francês descendente de argelinos interpreta Django Reinhardt, um dos mais célebres músicos das história do “jazz” francês. Autor de um estilo único de tocar guitarra, ele foi popular em todas as esferas da sociedade do país, mas a sua posição vai-se tornando insustentável à medida que as forças ultrarreacionárias começam a tomar conta da região onde vive.
Claro que facilmente a conversa avança para um paralelo com o mundo contemporâneo. “Certamente ‘Melodias de Django’ não é apenas sobre a família ou como sobreviver. Há no meio do filme, por exemplo, uma cena em que uma personagem fala de todos aqueles cadáveres à beira do lago. Para mim, parece-me evidente que aquele lago é uma metáfora para o Mediterrâneo atual. É a vergonha dos nossos tempos”, sustenta Reda Kateb.
Como descendente de argelinos, o ator facilmente se identifica com a questão cigana – especialmente na situação explosiva atualmente em França.“Acho que não é um problema apenas da França, é algo global. Infelizmente parece que há muitas pessoas hoje em dia a apoiar o discurso de extrema-direita. E obviamente isso assusta-me bastante”, confessa.
E ele acha que o racismo atinge de igual forma ciganos e argelinos? “Acho que sim, existem muitas similaridades…”, responde, embora não conhecesse muito sobre eles antes do filme: “Fui com o realizador a um ‘casting’ numa comunidade cigana. Fui muito bem recebido e identifico-me com eles. Tal como os argelinos, são um povo muito acolhedor".
O ator, que também teve ancestrais nómadas, conclui: “Os ciganos têm uma poética forma de viver, eles vivem no presente. Também prefiro viver assim”.
Por fim, o que sabia ele de Django Reinhardt e da sua técnica? “Adorava a sua música, mas gastei um ano a treinar para interpretar a sua forma de tocar guitarra. Passava tanto nisto que, quando rodei dois filmes antes deste, dava por mim a mexer as mãos daquela maneira sem mais nem menos!”.
Artigo originalmente postado em SAPO MAG (http://mag.sapo.pt/cinema/atualidade-cinema/artigos/um-planeta-em-agonia-arranca-hoje-o-cineeco)
Entre alguns dos temas que serão debatidos estão a degradação do ambiente, os problemas climáticos, o aquecimento global, a extinção das espécies e escassez de água.
“Vamos questionar igualmente o sistema económico capitalista em que vivemos e que não dá prioridade à sustentabilidade: um consumismo exacerbado e uma economia que se desenvolve sem respeito pelo ambiente e as insistentes posições de Donald Trump relativamente às questões climáticas”, observa José Vieira Mendes.
Da mesma forma, “o sistema económico em que vivemos — o capitalismo e a globalização desenfreada — estão a impedir-nos de atuar numa solução para as alterações climáticas. O mundo distópico da ficção científica e do apocalipse chegou, nós é que não estamos a dar por isso. Mas ainda há esperança e é essa a nossa reflexão”.
Memória do cinema português
O festival abre com um filme-concerto com o clássico mudo português "Os Lobos", de Rino Lupo, recém lançado em DVD pela Cinemateca Portuguesa, que será acompanhado ao piano pelo músico Nicolas McNair. O italiano Rino Lupo (1888 — 1934) integrou uma geração de realizadores que marcaram os primórdios e o panorama do cinema mudo nacional.
“Para nós tem um valor simbólico pois foi rodado entre 1922 e 1923 em vários lugares emblemáticos de Seia – Valezim, São Romão e Senhora do Desterro, entre outros, e contou com a participação de atores e figurantes não-profissionais da terra.
Apesar de ser a preto-e- branco a fotografia de Artur Costa de Macedo é deslumbrante ao captar na perfeição as paisagens naturais e rurais da Serra da Estrela e as suas tradições”, assinala o programador.
"Os Lobos" é baseado na peça homónima de Francisco Lage e João Correia de Oliveira (1920), e conta a história de Ruivo, um marinheiro desterrado para a Serra da Estrela, por causa de um crime passional.
A música de ‘Os Lobos’ recupera a partitura original de António Tomás de Lima composta em 1925 e que vai ser interpretado ao vivo pelo próprio Nicholas McNair.
Uma longa trajetória
O Cine’Eco já tem 22 edições, uma marca assinalável no contexto comunitário descentralizado onde quase todos os festivais decorrem em Lisboa.
“Não sendo o cinema de ambiente uma área para as grandes massas de público, paulatinamente, o CineEco tem feito o seu caminho, conquistado públicos e despertado consciências para as questões ambientais”, acrescenta José Vieira Mendes.
Para além dos filmes, o programa conta igualmente com exposições, “workshops”, concertos e outras iniciativas de e para a comunidade. “Este ano, através de uma nova parceria, o festival será alargado aos 15 concelhos da Comunidade Intermunicipal das Beiras e Serra da Estrela, composta por 250 mil habitantes, que constitui um novo contributo de aproximação à região”, conclui o programador.
Artigo originalmente postado em SAPO MAG (http://mag.sapo.pt/cinema/atualidade-cinema/artigos/terror-a-portuguesa-a-floresta-das-almas-perdidas-chega-aos-cinemas?artigo-completo=sim)
Praticamente não se fazem filmes de terror em Portugal. Em menor número ainda são os que chegam ao circuito comercial. No caso em questão, trata-se de uma longa aventura: com pouquíssimos recursos, o realizador do Porto José Pedro Lopes logrou concretizar um projeto e, mais que isso, iniciar um impressionante périplo mundial.
Mas, antes… do que se trata? A ideia inicial tem matriz japonesa: dois personagens encontram-se numa floresta de suicidas. Mas um deles não está propriamente disposto a cumprir o prometido. “A Floresta das Almas Perdidas” fala de uma “serial killer” juvenil. E, menos comum, uma mulher.
Quem encarna a vilã/protagonista é Daniela Love, que após alguns papéis secundários em projetos da RTP, tem aqui o seu primeiro filme como atriz principal e uma rara oportunidade no cinema português: encarnar uma assassina que não tem grandes razões para matar.
“Para mim foi um bocado difícil chegar lá”, observa. “O que ela faz não é consequência de nenhum trauma, ela apenas faz aquilo porque lhe apetece e não vê as consequências dos seus atos”.
Sem motivações, é difícil achar referências: “Não tinha muito como me inspirar em outros ‘serial killers’, ela era algo isolado. E, tampouco, poderia ter muito de ‘meu’ em alguém assim… Bom, se calhar fui encontrando elementos de uma versão ridícula e ‘hipster’ de minha pessoa. Mas, obviamente, tem pouco de mim!“ [risos]. Mas, por outro lado… “lembra pessoas que conheço por aí…!” [risos].
Telemóveis, redes sociais e psicopatas
A vilã de “A Floresta das Almas Perdidas” assimila uma série de elementos do mundo contemporâneo e até usa o Facebook como álibi.
Sobre isso, o realizador filosofa assertivamente: “Vivo um pouco melindrado com a forma como os redes sociais criam uma barreira entre as pessoas, como se todos agora tivessem um permanente Relações Públicas. O que as pessoas fazem no Facebook é criar uma fachada, uma falsa ideia de sucesso. Achei interessante ter uma antagonista que usasse esses recursos para fazer tudo o que queria, desde mentir aos pais até levar outros a fazerem o que não queriam”.
O mesmo vale para os telemóveis: "Antigamente, por exemplo, se estávamos no carro à espera de alguém, permanecíamos sozinhos. Agora nunca estamos sós: para ‘não apanhar seca’ vamos meter conversa com alguém. Mas esta forma de viver, de nunca estar sozinho, é uma forma de psicopatia".
Terror para o mundo
Como tantas vezes têm acontecido com os artistas portugueses, a viabilidade do projeto é pensada numa escala mundial: longe de estar à espera de subsídios e de uma estreia nacional que poderia nunca acontecer, José Pedro Lopes, também diretor da produtora Anexo 82, tratou de algo que excede em muito a tarefa de um simples cineasta: assegurou uma vigorosa procura de uma carreira internacional para "“A Floresta das Almas Perdidas”.
"Assumi sempre que em Portugal não seria muito fácil e até podia nunca ter distribuição e que, a nível internacional, existem muitos mercados virados para o terror, principalmente o artístico", diz.
Depois de estrear em Portugal no Fantasporto e, em Lisboa, no FESTin, ambos no início do ano, uma guinada essencial ocorreu em junho: a seleção para o festival de Sidney, na Austrália, abriu as portas no mercado internacional.
A imprensa, a partir daí, ajudou: críticas positivas na Variety, no Screen Daily e na meca “online” das falanges terroríficas, o “site” Bloody Disgusting. Este último selecionou o filme como um dos melhores do ano; uma nova surpresa ocorreu em setembro recente – com “A Floresta das Almas Perdidas” a surgir no top da revista Newsweek.
Depois de um longa série de festivais pelo mundo e de aparições em grandes veículos, só faltava a distribuição: esta tem vindo a materializar-se em países como Suécia, Espanha e, brevemente, nos Estados Unidos – onde tenta-se uma estreia em sala antes do Video-on-Demand.
Nada mal, considerando-se que na América do Norte a circulação da obra foi dificultada pelo que o realizador considera o seu maior erro estratégico em relação ao projeto: rodá-lo a preto-e-branco.
“Não era um projeto fácil de vender, tem atores desconhecidos, uma narrativa não linear, é falado em português. Mas isso acaba por ser ultrapassável, mas não o preto-e-branco, que quase inviabilizou o filme na América. Os distribuidores lá acreditavam que depois não se conseguiria vender para os canais de TV. Isto é algo que já sei que não poderei fazer no próximo projeto”, assume José Pedro Lopes.
E este, já existe? Ainda não. “Não é fácil ter que tratar de tudo sozinho!”.
E depois do mundo... Portugal
“É uma alegria muito grande que a Legendmain tenha decidido investir no filme, até porque é uma distribuidora comprometida com a qualidade”, salienta o realizador.
E o público, vai reagir?
“Bom, é uma incógnita, mas espero que se interessem por ver uma proposta de cinema português muito diferente da habitual. Aliás, sem apoio do ICA, é um verdadeiro ‘indie’”, finaliza.
Artigo originalmente postado em SAPO MAG (http://mag.sapo.pt/cinema/atualidade-cinema/artigos/vicente-alves-do-o-e-o-filme-al-berto-queria-colocar-o-dedo-na-ferida-desta-paz-podre-a-portuguesa)
Artigo originalmente postado em SAPO MAG (https://mag.sapo.pt/cinema/atualidade-cinema/artigos/realizador-joao-monteiro-revela-historias-nao-contadas-do-cinema-portugues?artigo-completo=sim)
'Ninguém neste meio se entende, mas este meio não faz falta a ninguém'.
Esta constatação de João Monteiro surge em jeito de conclusão após a reflexão sobre os mais de 40 anos de história do cinema português que perpassam pelo seu “Interstícios da Realidade – o Cinema de António de Macedo”, que encerrou o Doclisboa.
Dada a variedade e a qualidade dos depoimentos o filme termina por ser mais, no entanto, do que o resgate da penumbra de Macedo, o seu propósito explícito. Por outras palavras, João Monteiro regista o surgimento das fações do cenário luso – onde godardianos e não-godardianos confrontavam-se por um lugar ao sol no panorama intelectual dos anos 60.
Assim, António-Pedro Vasconcelos, Fernando Lopes, Alberto Seixa Santos, José Fonseca e Costa e António Cunha Telles, entre outros, contam a própria história de uma arte que ainda hoje sofre para comunicar com o público nacional – e, quando o faz, é à triste maneira das comédias televisivas.
'É um processo de destruição que vem desde a Segunda Guerra Mundial, foi-se perdendo esse gosto de se ver cinema português quando os americanos entraram em força.' O realizador de “Interstícios da Realidade” apenas faz eco do que toda a gente sabe: 'No cinema português é o ‘yin’ e o ‘yang’ – entre filmes comerciais televisivos e nomes prestigiados nos grandes eventos internacionais. Esta guerra de guerrilha nunca vai acabar'.
Neste sentido, a narrativa da carreira de António de Macedo conforme construída pelo documentário mostra a tentativa de se fazer cinema de género e a relutância com que isto foi tratado ao longo das décadas pelos opositores desta procura.
SETE BALAS NA ELITE INTELECTUAL
As ruturas começaram nos anos 60, quando o Cinema Novo português logrou ter qualidade sem público. António de Macedo, por seu lado, tentou fazer cinema de género numa altura em que a intelectualidade estava mergulhada nos pressupostos estéticos da 'Nouvelle Vague' [Nova Vaga] e do Neorealismo – correntes em algum ponto conectadas com a militância política de esquerda.
'Macedo sempre teve uma tendência ‘suicida’ em termos cinematográficos. Assistindo-se a ‘Sete Balas para Selma´ [a sua segunda longa-metragem, de 1967] fico com a sensação que ele fez de propósito, para separar logo as águas e cortar o mal pela raiz. Ele sempre foi avesso a clubes', diz João Monteiro.
De facto, a proposta desta produção de Cunha Telles que, com este filme, iria de vez à falência após outros três falhanços nas bilheteiras, beira o inacreditável. Afinal, quem se lembraria de filmar cá um enredo de ação em ritmo de paródia dos filmes de agentes secretos, situando o seu enredo nos confins da província lusitana? Entre mortos e feridos nesta intriga internacional no campo, ninguém compreendeu.
MÁS COMPANHIAS E FILMES NO PORTA-BAGAGEM
Para Monteiro, “Sete Balas para Selma” forneceu boa munição para quem já olhava o realizador de lado – primeiro por ele manter a amizade com alguns cineastas que trabalharam no regime de Salazar.
'Não caía bem, até porque ele era um autodidata completo – diferente dos outros, que puderam estudar fora', diz.
Mas a coisa piorou quando, ironicamente (e a façanha repetir-se-ia nos anos 70), acabou por ser ele, com o seu filme de estreia, “Domingo à Tarde” (1962), a tornar-se o único cineasta do Cinema Novo a chegar ao Festival de Veneza – na altura o mais prestigiado do mundo. 'Gerou-se aquele tipo de inveja muito português', avalia Monteiro.
Corria o ano de 1962 e o diretor do evento, comunista convicto nestes tempos de ideologias, recusava-se a aceitar candidaturas de obras vindas de países fascistas. Mas Cunha Telles, carregando o filme com Isabel de Castro e Ruy de Carvalho no elenco clandestinamente no porta-bagagem do carro, conseguiu fazê-lo lá chegar. Para João Monteiro não se fez menos do que justiça: 'Tecnicamente, é o melhor dos três filmes que inauguram o Cinema Novo', diz, comparando-o com “Verdes Anos”, de Paulo Rocha e “Belarmino”, de Fernando Lopes.
GUERRAS FINANCEIRAS E UTOPIA COOPERATIVA
A política foi outro ponto de discórdia. Ninguém explica melhor do que o próprio Macedo no seu depoimento para o filme: 'Para o Estado fascista eu era comunista. Para os comunistas eu era fascista. E eu era um anarco-místico pois para mim ambos eram totalitários à sua maneira'.
O que não significa que fosse um descrente à moda do pós-modernismo atual. Num depoimento antigo, Macedo fala com entusiasmo da criação do Centro Português de Cinema (CPC), visto por ele como uma forma utópica dos artistas trabalharem em cooperativa. A ligação da entidade à Fundação Gulbenkian manteve os dissidentes unidos – e quase todos os cineastas importantes da época, incluindo Manoel de Oliveira e João César Monteiro, fizeram filmes entre 1972 e 1974.
'Eles faziam votação e distribuíam entre si o dinheiro. Mas era uma paz armada. Depois do 25 de Abril começaram a guerra pelos subsídios, fazendo vítimas. Macedo foi uma delas e isso não é uma teoria da conspiração', assinala Monteiro.
A IMAGEM QUE FALTA: TERÁ EXISTIDO UMA AVENTURA EM CANNES?
Foi novamente o marginalizado António de Macedo a alcançar outro triunfo inesperado – um Festival de Cannes já em larga ascensão desde o maio de 68.
"Portugal não preenchia o requisito de quotas para inscrever filmes. 'A Promessa' era uma coprodução com a Espanha e como eles não tinham filmes enviaram este. E foi selecionado para a competição principal!'
Como um bom exemplo destas vicissitudes do cinema português, na sua investigação Monteiro não conseguiu encontrar uma única foto do realizador e da sua equipa em Cannes. Já para revista 'O Cinéfilo', editada por António-Pedro Vasconcelos e Fernando Lopes, numa crítica que mereceu um 'mea culpa' do primeiro em “Interstícios”, “A Promessa” era um filme terrível.
O teor da missiva espanta Monteiro: 'A maior crítica que faziam era pelo facto do filme lembrar Sergio Leone e Sam Peckinpah! Imagina se o mesmo argumento fosse hoje usado para o cinema de Tarantino…'
TRIP PSICADÉLICA
É também desta época “O Princípio da Sabedoria” (1975), o filme com Guida Maria, Sinde Filipe e Carmen Dolores que fez João Monteiro, então nas suas funções no Motelx, enveredar pelo passado para descobrir 'quem era aquele velhinho simpático' por trás de um filme que ele descreve como 'uma viagem psicadélica de três horas que lembrava Jodorowski e era um grande filme!'
VERDADES E MENTIRAS
Não consta que António de Macedo tenha feito uma comédia explícita, mas Monteiro acredita que ele foi mais longe do que o clássico “A Vida de Brian” (1979), dos Monty Python, na sua impressionante iconoclastia que derrubava impiedosamente os mitos da Verdade Revelada cristã.
Baseada numa peça de teatro com apenas três personagens e recriando cenários 'romanos' na Costa da Caparica, “As Horas de Maria” (1979) era inspirado nos achados do Manuscrito do Mar Morto para criar uma versão apócrifa da história de Maria.
Certamente o escândalo foi grande: as nuvens revolucionárias do 25 de abril já se curvavam à Direita quando, fora de tempo e com três anos de atraso, sai no circuito comercial. Mas como tantas vezes acontece, com os protestos, as agressões a membros da equipa na antestreia e o envolvimento de padres numa campanha de difamação a partir dos púlpitos, “As Horas de Maria” teve uma ampla campanha de marketing involuntário e atingiu os 100 mil espectadores.
MUITO ALÉM E ADIANTE: A SCI-FI PORTUGUESA
No sistema português, um sucesso comercial não significa ter dinheiro para fazer outro filme e mesmo com os impressionantes números do seu trabalho anterior, Macedo fez apenas mais três longas de ficção nos anos 80.
Com “Os Abismos da Meia-Noite” (1982) e “Os Emissários de Khalom” (1988, foto), a aventura foi na senda da ficção científica. No seu depoimento, o cineasta expôs o seu desejo de que outros realizadores a seguir pegassem no seu exemplo e o explorassem – fazendo, se possível, melhor que ele. Tal nunca aconteceu.
'O problema com esses filmes', analisa Monteiro, 'é que até ficarem bons precisam de uma prática. Quando isso não existe, não há técnicos e ele tentou fazer na lógica do ‘vamos ver o que se consegue’. Apesar de terem envelhecido mal esteticamente, tem uma ambição que surpreende'.
EPÍLOGO: FANTASMAS MAIS VIVOS QUE OS VIVOS
O epitáfio deu-se com uma história gótica baseada nos contos de Karen Blixen 'em que os fantasmas', segundo o realizador de “Interstícios”, 'parecem mais vivos do que os vivos'.
“Chá Preto com Limão” correu muito mal nas bilheteiras e conforme destaca o crítico e historiador Jorge Leitão Ramos, 'quando perdeu o público, Macedo perdeu o seu último suporte'. Como resultado, ele nunca mais recebeu subsídios para desenvolver projetos. Até ao ano passado.
Com isso tudo, António de Macedo foi parar à literatura onde, pelo menos, houve uma pequena cena literária de ficção científica. Na última edição do Motelx, depois de vencer um concurso de finalização do ICA, o cineasta remontou uma antiga série televisiva que havia feito para a RTP em 1991 e apresentou “O Segredo das Pedras Vivas”.
Sem dúvida é um filme que me despertou interesse ...