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"Há Quem as Prefira de Véu": Filme satiriza Islão, iranianos, franceses e a esquerda

por Roni Nunes, Domingo, 31.12.17

Artigo originalmente postado no SAPO. 

 

POR RONI NUNES

 

Uma das estreias da semana nas salas portuguesas usa o caldeirão efervescente da sociedade francesa para rir de toda a gente.
 
 

Se a sociedade francesa é um caldeirão efervescente, a realizadora estreante Sou Abadi resolveu juntar todas as peças e rir de toda a gente. Não o chega a fazer de forma temerária: a comédia "Há Quem as Prefira de Véu", que chega esta semana às salas de cinema portuguesas, termina por ser mais agridoce do que sarcástica. Mas há tiros suficientes para todos os lados.

 

Leila (vivida por Camélia Jordana, uma famosa cantora de música “pop” em França) é uma descendente de árabes liberal à moda ocidental. O namorado Armand (Félix Moati) é francês e são ambos universitários.

 

O conflito: a órfã Leila recebe a visita do irmão mais velho Mahmoud (William Lebghill), vindo de um campo fundamentalista do Iémen e devidamente convertido. Este está em modo patriarcal: agora é ele que manda. Namorado francês, nem pensar. Nem que, para isso, tenha que enclausurar a irmã em casa e Armand, para vê-la, tenha que lá chegar escondido numa burka e a fazer-se passar por mulher. Resulta até demasiado...

 

O título original (“Cherchez la Femme”) remete para uma velha fórmula dos policiais: se um investigador quer descobrir a origem de um crime, procure primeiro por uma mulher. Há sempre uma na raiz do problema. Já o título internacional inglês (“Some Like it Veiled”) faz menção a outro aspeto do filme – a relação com o clássico de Billy Wilder “Some Like it Hot” (em Portugal “Quanto mais Quente Melhor”) – com as suas confusões, reviravoltas e um homem disfarçado de mulher.

 

As personagens e seus desmazelos são devidamente exageradas: Mahmoud chega a perseguir a irmã com um machado, enquanto a mãe de Armand (Anna Alvaro), herdeira das moribundas ideologias revolucionárias, posa seminua para a “causa iraniana” (seja o que isso for). Assim, com traço grosso, dá para ironizar os absurdos do Islão e os caminhos inconsequentes de um ideal de esquerda moribundo.

 

Atualmente a França vive uma crise de identidade, com os seus milhões de descendentes vindos do mundo árabe, uma extrema-direita muito ativa e, pelo meio, uma classe média numa desorientação total de princípios. Sou Abadi juntou tudo isso em "Há Quem as Prefira de Véu" para chegar a algumas piadas hilariantes.

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por Roni Nunes às 00:49

Crítica: «Tempestad»

por Roni Nunes, Domingo, 17.12.17
  • Publicado por  Roni Nunes no C7nema durante o Festival de Berlim 2016.

 

Filme da Panorama do Festival de Berlim que traz um olhar feminino com um foco muito próprio sobre a terrível crise da sociedade mexicana causada pelos cartéis do narcotráfico. Isso porque Tatiana Huezo não se focou nos signos visíveis da extrema violência dos gangues, optando antes por mostrá-la através dos dramáticos efeitos no quotidiano de duas mulheres.

Uma delas relata, sempre em áudio e nunca em imagens, o que lhe aconteceu quando foi acusada injustamente de corrupção – isto porque o governo precisava ilibar-se na comunicação social e escolheu um grupo de pessoas aleatoriamente para culpar. Ela foi entregue à uma penitenciária no extremo oposto do país – gerida à margem de qualquer lei por uma organização criminosa. A outra história é marcada pelo desaparecimento da filha de uma mulher do circo, pela "investigação" levada a cabo por uma polícia extremamente corrupta e pelo desespero vindo, não só de não saber o seu paradeiro, mas por este se tratar, provavelmente, da prostituição.

O recurso do anonimato funciona: nunca se vê a as pessoas que narram – com a realizadora a mostrar antes diferentes mulheres e, com isso, alcançar eficazmente a universalização de um drama que, afinal, poderia acontecer a qualquer um. A "tempestade" aqui é interior – mas não menos intensa, onde desfila aos olhos do espectador o quotidiano de um país que tem a sua vida frequentemente invadida por sinistros poderes externos. O recurso, no entanto, não evita momentos de cansaço – especialmente na quebra óbvia que ocorre no início da segunda história.

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por Roni Nunes às 17:14

Cinema argentino na Mostra Ibero-americana: imagens de uma terra distante

por Roni Nunes, Sexta-feira, 15.12.17

Postado originalmente no Sapo.

 

RONI NUNES

 

A Argentina é um país longínquo; mais distante ainda parece o seu cinema – perdido na imensidão da monocultura reinante.

 

Não é que um certo “mainstream” não tenha sido atingido por obras com “Relatos Selvagens”, “O Clã” ou “O Segredo dos Seus Olhos”, este último vencedor do Óscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2009. E, certamente, quem acompanha os grandes festivais internacionais já não consegue encontrar programações sem pelo menos um título vindo do país.

 

Em Lisboa, a Mostra Ibero-americana encerra este sábado. Sempre aberto a novos horizontes, o SAPO Mag conversou com o académico Jorge La Ferla, presente no evento, sobre novíssimos projetos do país apresentados na programação.

 

Como causa para a maior presença em festivais, ele aponta para “uma nova geração saída das universidades – muito distante dos autodidatas de antigamente. Até porque, com a destruição da indústria patrocinada pelos longos anos de ditadura militar, quando o projeto era transformar a Argentina numa economia medieval, pré-industrial, o cinema tornou-se uma das suas vítimas. Seria impossível aprender dentro do ofício”.

 

 

"Cinco noches, cinco películas"

 

Para Jorge La Ferla um dos mais interessantes aspetos das obras selecionadas para a Mostra é a diversidade da sua origem. Esta não traz apenas projetos “portenhos” [de Buenos Aires], dos cinco filmes três são de regiões do interior. Duas vêm do Norte, com os seus rios e paisagens verdes; outra traz o branco da Patagónia.

 

“São todas obras independentes, de autor, com a busca de algo diferente. Não é ‘standard’, comercial”, assinala.

 

O claro e o escuro

 

Começando pelo mundo urbano: o contraste não podia ser mais nítido entre “La Noche”, de Edgardo Castro, e “La Luz Incidente”, de Ariel Rotter.

 

“'La Noche’ é um filme de exteriores, com câmara na mão, sem iluminação, com uma estética mais documental. Também é contemporâneo, atual, apresenta Buenos Aires na vida noturna, com os seus espetáculos, restaurantes e buscas sexuais”, explica o crítico.

 

 

Por seu lado, “La Luz Incidente” “é uma obra de interiores, onde mostra a classe alta, retomando uma via do cinema argentino dos anos 60, muito inspirado no neorrealismo italiano. É um filme que dialoga com [Michelangelo] Antonioni, especialmente com “As Amigas” [1955] – abordando a classe média-alta, gente que não trabalha, com boas roupas e crises pessoais. É um exercício de estilo, com um cuidado importante para a arte da decoração, o enquadramento, os tempos”.

  

 

O verde e o som dos rios

 

Já o escritor Juan José Saer, que viveu os seus últimos anos em França, inspirou duas histórias de cunho muito diferente. Ele colocou-as fora de Buenos Aires, na província de Santa Fé, muito perto do rio Paraná, na fronteira com Brasil. Daí saíram dois filmes, “El Limonero Real” e “Tublanc”.

 

“São paisagens que não têm nada a ver com Buenos Aires, marcadas pela presença do rio, pelo verde circundante. Não é trópico e, ao mesmo tempo, tem uma forma particular de viver, de falar”, observa o académico.

 

No caso de “El Limonero Real”, trata-se da história íntima de uma família que vive frente ao rio, muito marcada pela natureza.“É um filme muito experimental, não é uma adaptação literal, é mais poética e com muitas elipses. O enredo situa-se na noite de encontro de Ano Novo, ao qual uma das pessoas da família não quer ir porque há um luto de um filho que morreu há muitos anos. É muito bem filmado e um trabalho de som incrível”, destaca.

 

 

Por seu lado “Toublanc”, de Iván Fund, é uma espécie de “thriller”, onde “conta muito o que não é dito, o que não é mostrado, é um filme de pura sugestão. Não é para as pipocas, é preciso estar muito atento para se perceber".

 

 

O “western” branco

 

O trabalho da paisagem tem outro grande momento com “El Invierno”, projeto de estreia de Emiliano Torres”. A ação decorre na Patagónia, onde a neve, a montanha, o branco, cobrem toda uma história familiar, com elementos de “thriller” e, até, "western". “Existe esta luta do homem contra natureza, que até podia entrar num filme de John Ford”, avança  Jorge La Ferla. Ao mesmo tempo, “este realizador tem um olho para construir as cenas como se fossem quadros, com o seu uso das cores – e com muito boas atuações”, complementa.

 

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por Roni Nunes às 20:13

A história de um filme que (infelizmente) termina depressa demais

por Roni Nunes, Quinta-feira, 14.12.17
 
“Verão Saturno”, de Mónica Lima, tem apenas 30 minutos, mas foi um dos bons acontecimentos da Mostra de Cinema Ibero-americano.
 
 

Revelado na programação do Curtas de Vila do Conde, "Verão Saturno", de Mónica Lima, tem apenas 30 minutos.

 

Quem não o conseguiu ver durante a Mostra de Cinema Ibero-americano, que decorre no cinema São Jorge, em Lisboa, até dia 16, terá nova hipótese: há uma sessão na Cinemateca Portuguesa, dia 21. Aí será exibido com mais três obras na programação "O Dia mais Curto".

 

Esta obra de ritmo fluído e sem as presunções frequentes de um certo cinema de nicho lusitano tem apenas um defeito: quando o espectador, envolvido pelas múltiplas linhas abertas pelo argumento, ainda está imaginar os desenlaces possíveis, ele é subitamente lembrado que se trata de uma curta-metragem.

 

O SAPO Mag conversou com a realizadora no cinema São Jorge, que disse estar a trabalhar numa longa-metragem. De resto, entrevista e filme tratam de um tema pertinente, na qual Mónica Lima revê-se, sobre a situação daqueles que não deixam de perseguir os seus sonhos.

 

Promessas não cumpridas

 

O enredo de "Verão Saturno" conta a história de Samuel (Jaime Freitas). Ele vive na Alemanha com a namorada (Joana de Verona) e vem a Lisboa para um concerto. Fica na casa da mãe dela (Rita Loureiro). Há uma tensão sexual e aquilo que é o foco do filme: o duro de processo de continuar a sonhar com a arte contra todos as questões de ordem prática.

 

"O filme aborda sobretudo a crise dos eternos jovens, entre os 30 e 35 anos, de pessoas que têm desejos que não conseguem cumprir, promessas eternas por viver”, observa a realizadora. “E, quando se é artista, mais complicado é. O protagonista que vive nesta ambivalência”.

 

Quanto a este, ele é um músico independente [as canções originais são do guitarrista Filipe Felizardo], a sua namorada é estudante e já mudou de curso várias vezes. Não se trata de exigência a mais desta geração?

 

“O problema é que nos foi prometido muito mais que isso", recorda. "Disseram que se estudássemos tudo ia correr bem, que íamos atingir o máximo do potencial e acreditámos nisto. Portanto é mais do que válido continuar a alimentar essa expectativa. Depois descobrimos que não é assim, não há de facto uma repercussão pragmática que nos permita pagar as contas.”

 

 

Os artistas perdidos na sociedade contemporânea

 

Hoje, com o turbilhão de meios e vozes, como um novato pode ser reconhecido?

 

“Todo o criador acredita que o que faz é bom e que vai fazer a diferença. Esse é a loucura e é impossível dizer-lhe que é melhor não fazer arte porque não vai conseguir sustentar-se. Essa mensagem nunca vai ter significado. Eu sou romântica a esse nível, acho que a vontade de produzir vai ser sempre maior”, defende.

 

No entanto, Mónica Lima também reconhece: “Os artistas não vão deixar de existir, mas eles também são uma figura que anda meio perdida na sociedade contemporânea. Gosto desta personagem porque deambula por este mundo sem encontrar realmente um equilibro entre sonhos e expectativas e estas necessidades pragmáticas de sustento”.

 

O novo projeto da realizadora tem o título provisório de “O Último Dia de Todos os Dias” e já teve o argumento premiado pelo ICA. A escrita vai decorrer durante 2018.

 

Sobre aquela que possivelmente será a sua primeira longa-metragem, relata: “É uma comédia negra sobre fantasmas, famílias e uma casa à espera de uma mulher que, depois de vários anos ausente do país, é suposto regressar. Mas ela nunca mais aparece. O filme acontece no tempo de espera desta personagem, com alguns elementos de uma comédia de costumes”.

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por Roni Nunes às 23:37

Crítica: «Aquí no Há Pasado Nada"

por Roni Nunes, Segunda-feira, 11.12.17

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Há um facto “sociológico” por trás da existência do filme que abriu a Mostra de Cinema Ibero-Americana – variação da habitual Mostra da América Latina que este ano inclui os países ibéricos. “Aquí no Ha Pasado Nada” foi financiado parcialmente por um regime de crowdfunding: por outras palavras, um largo grupo de investidores comuns quis que se contasse no cinema uma história em torno do filho do senador Carlos Larraín, Martín. E qual era ela? Essencialmente Martín tomou parte num atropelamento que contou com embriaguez e morte – com consequências ambíguas. Aconteceu no Chile, em 2013.

 

Alejandro Fernandez Almendras, no entanto, debruçou-se sobre os acontecimentos à sua própria maneira. Mais que os trâmites legais, twists intempestivos ou formalizações académicas, interessou-lhe um retrato dos jovens envolvidos – particularmente a quem cabe os maiores dilemas, Vicente Maldonado (Augustín Silva), amigo do principal acusado. Segundo as autoridades, baseado nos testemunhos dos “amigos”, ele é suspeito de estar a conduzir o carro no momento do acidente. Diante da sua inércia, acreditando que o facto de saber a verdade é o suficiente, o seu advogado concede uma dádiva de sabedoria ao novato: “Só é verdade o que pode ser provado”.

 

Assim há esse protagonista algo ingénuo, não propriamente má pessoa, que gosta de beber, ir a festas e ter relações sexuais com uma “amiga”. A câmara não pára, o fundo desfocado é recorrente, muita coisa dissolve-se na escuridão da noite; essa “perseguição” estilística é a forma escolhida por Almendras para criar um mundo de vontades etéreas, não muito ferrenhas, por vezes francamente fútil. O cineasta recorre ainda à reprodução de SMS no ecrã – criando um artificialismo que quase passa desapercebido pelas sensibilidades atuais.

 

O que não é vaga é a forma como o advogado da família poderosa estabelece uma longa analogia para convencer Vicente, com o seu pai ausente, a dar-se como culpado de algo que não fez. São os “tweets” a colher a voz generalizada da indignação. É desta forma que “este país de mierda”, como escreve alguém, parece-se com todos os outros.

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por Roni Nunes às 20:01

Militância, beleza, intensidade: "120 Batimentos por Minuto" e uma entrevista com Robin Campillo

por Roni Nunes, Sexta-feira, 08.12.17
O vencedor do Grande Prémio do Júri no Festival de Cannes estreia esta semana em Portugal. O SAPO conversou com o artista por detrás de um dos mais intensos filmes do ano.
 
 

Após o Festival de Cannes, o céu tornou-se o limite: "120 Batimentos por Minuto" alinha uma longa fileira de prémios (o Grande Prémio em Cannes é o seu momento maior), nomeações a outros (incluindo a indicação francesa para os Óscares de Melhor Filme em Língua Estrangeira) e consensos críticos por todo o lado.

 

Mas quem conversa com o seu artesão, Robin Campillo, dificilmente encontrará um homem deslumbrado pelo seu ego. Esbanjando simpatia, o cineasta recebeu o SAPO Mag no café do Cinema Ideal para uma conversa séria sobre um filme sério. Mas tal como a (muito) relativa leveza que apresenta no tratamento dos temas difíceis que escolhe (também lhe foi lançada essa questão), o serão acabou em risadas.

 

Campillo tem motivos para celebrar. Em relação à sua curta passagem por Lisboa, o cineasta garantiu que terá pelo menos um dia para conhecer a cidade. Vem dia após dia a apresentar o seu filme por diversos locais: daqui segue para a Ucrânia e, depois, para a Eslovénia. Nada mau para uma produção independente. “Não me posso queixar!”, diz.

 

O discreto aborrecimento da burguesia

 

"120 Batimentos por Minuto" narra o dia-a-dia de um grupo de ativistas no início dos anos 90. O objetivo da associação Act Up era alertar a sociedade para a terrível situação das pessoas atingidas pela epidemia da SIDA.

 

De resto, o filme mostra os bons tempos onde se incomodava o cidadão bem estabelecido com sangue falso (mas com excelente aparência de verdadeiro), com multidões atirando-se ao chão para barrar os carros dos indiferentes ou criando coreografias de protesto com o hino “pop” “Smalltown Boy”. Campillo ajuda e faz um protesto-homenagem aos seus mortos "tingindo" o Sena de vermelho.

 

Um longo trecho é abertamente proselitista: há uma associação ativista e uma ação correspondente – embora mais por desespero e com objetivos práticos do que buscas utópicas de revolução político-social.

 

Militância à anos 60? “Sim, adoro [Jean-Luc] Godard, mas percebi que o seu cinema era inepto para lidar com a epidemia, pois não vemos pessoas doentes nos seus filmes”. Já Bernardo Bertolucci estava mais atento ao entrelaçar entre o universo íntimo/privado e a política… com a palavra, Robin Campillo.

 

Como foi o seu envolvimento com a Act Up e de que forma isso contribuiu para o filme?

 

Juntei-me a Act Up em 1992, 12 anos depois do início da epidemia ou, pelo menos, da chegada dela aos "media" franceses. A partir dos meus 20 anos era apenas um jovem “gay” com muito medo do que lia nos jornais e fiquei sem sexo durante sete anos. Entrei para a Act Up porque decidi que tinha que fazer alguma coisa. Nós estávamos numa posição bizarra, havia amigos que desapareciam durante meses em hospitais, toda a gente estava apartada umas das outras.


Claro que toda a gente já tinha ouvido falar de homossexuais que morriam, prostitutas, viciados, mas não havia de facto comunicação entre as pessoas e estava com raiva disto tudo. Quando soube que o meu primeiro namorado tinha morrido juntei-me a Act Up alguns meses depois. Descobri um grupo que era extremamente divertido, havia tanto júbilo porque as pessoas estavam felizes por estarem juntas, podiam partilhar as suas experiências e tentar acordar a sociedade para o que estava a passar. Perguntava-me ‘Onde está a doença’? Porque o grupo era bastante saudável.

 

No filme até esquecemos muitas vezes que se tratavam de pessoas doentes…

 

Era mesmo assim! Claro que eram pessoas jovens e é natural que houvesse energia, mas quando as pessoas estão a morrer não é assim tão linear…

 

 

Na altura o tema da SIDA era muito marcante, mas hoje já não é tão falado. Por que decidiu abordar o assunto?

 

Fiz o filme em certa medida por motivos egoístas. Não pensei na situação da epidemia nos nossos dias. Quando estava a rodá-lo percebi que era importante fazer o filme agora pois escolhi estes jovens atores e a maioria deles eram ‘gays’ que não tinham relação com a epidemia de 25 anos atrás. Eles não faziam qualquer ideia do que tinha acontecido. Um deles, por exemplo, nunca tinha feito um teste de HIV! Para mim isso era incrível e disse ‘Tem de fazer’! Ao mesmo tempo, não queria fazer um filme histórico. Queria pôr o espectador como se ele estivesse no presente, como se tudo isso estivesse a acontecer agora.

 

O filme lembrou um pouco certos trabalhos dos anos 60, como alguns do Godard ou do Bertolucci. Tinha isso em mente quando fez o filme?

 

Sim, claro, certamente tinha isso em mente. Adoro Godard e também os primeiros filmes de Bertolucci. É muito interessante, era um grande fã de Godard no início dos anos 80. Mas com isso da epidemia percebi que o cinema dele não era apto a abordar esse assunto, precisamente porque não vemos pessoas doentes nos seus filmes. Aliás, em toda a "Nouvelle Vague" só temos pessoas saudáveis.

 

Neste caso estamos a falar de pessoas doentes, o que é muito diferente. A única obra desta época a retratar algo assim é o de Agnés Varda, “Cleo de 5 à 7” (“Duas Horas na Vida de uma Mulher”, de 1962). É engraçado porque aquilo que o filme mostra é exatamente o que eu estava a viver nos anos 80, o facto de existir algo enorme como uma guerra distante que vem se aproximando cada vez mais. O filme dela é belíssimo e é exatamente nisto que estava a pensar.

 

Queria acrescentar uma coisa sobre o maio de 68 em França. Na altura, as pessoas tinham certamente expectativas grandiosas, com os seus discursos de esquerda, maoístas, etc. Mas nas universidades francesas a luta foi muitas vezes por algo mais simples – que era contornar o facto de que homens e mulheres tinham que estudar em alas separadas. Esta é uma das histórias secretas do maio de 68 [risos]. Isso para dizer que a vida íntima está muito próxima da política e da luta coletiva. Digo isto porque essa dimensão não se encontra em Godard, mas já se encontra mais em, como citou, Bertolucci.

 

A abordagem frontal de temas relativos à homossexualidade tornou-se uma conquista do cinema contemporâneo. Ao mesmo tempo assiste-se pelo Ocidente ao regresso do discurso conservador.

 

Essa é uma questão interessante. Quando era muito jovem, no final dos anos 70, via-me a mim mesmo como uma espécie de "dandy" “gay” – era “cool”, pensava em Jean Genet, Oscar Wilde…

 

Por causa da SIDA descobri, talvez como muitos outros homossexuais, que tudo isso eram parvoíces porque a nossa vida não significava grande coisa para o resto da nossa sociedade. O nossos amores e histórias eram nada. Foi como se a epidemia tivesse posto toda a gente de regresso ao armário, já não tínhamos a via de ser “gay” como um "dandy", transformou-se numa maldição e tornou-nos as pobres vítimas de uma epidemia. A primeira sensação foi de raiva.

 

Em tempos recentes foi a questão do casamento homossexual a despertar uma segunda onda de homofobia. Percebemos que a igualdade não era para nós. Parece-me que foi mais importante em França do que aqui, os debates foram muito duros e surgiram argumentos retrógrados baseados nos acontecimentos de 20 anos atrás. Também houve ativismo – um milhão de pessoas foram às ruas contra o casamento ‘gay’.

 

Havia um ‘background’ religioso nos protestos?

 

A religião estava lá, mas tenho que dizer que, apesar da maioria deles serem católicos, nós sabemos que a maioria dos católicos é a favor do casamento "gay". Claro que estavam lá muitos, mas eles não representam todos os outros. O que acabamos por descobrir depois de todos estes anos é que tudo tem a ver com ser discreto. Pode ser homossexual se for discreto. Retrocedemos, depois do Act up identidade ‘gay’ voltou ao debate político.

 

Tal como em “Eastern Boys”, que abordava a questão da prostituição masculina, este também tem um tema forte. Apesar disto, são filmes cheios de vitalidade, nada deprimentes…

 

Sim, tem razão. Tem a ver com o facto de que nunca me senti tão vivo. No caso de"120 Batimentos por Minuto", estava na Act Up que, como disse, representava um momento de libertação para todos – isso independente de estarem pessoas a morrer. Nós éramos bons a viver a vida, em ir a festas, não estávamos preocupados em ter um bom emprego e a planear uma carreira. Foram as últimas luzes dos anos 70.

 

 

A esta altura o filme coleciona prémios e elogios. Como lida com isso? Sente-se pressionado para desenvolver um novo projeto?

 

Em relação a um novo filme, se não encontrar algo que realmente queira, não vou fazer nada.

 

Mas já tem alguma ideia?

 

Tenho duas, mas neste momento não tenho os direitos para fazer as adaptações, portanto tenho de esperar… Mas não farei se não estiver inspirado o suficiente. Não tenho medo disto.

 

Para mim, a pressão está noutro lado. Realmente queria ir a Cannes, queria muito que o filme chegasse lá. Mas quando um filme é exposto, sou exposto como realizador. Não é fácil. Não gosto disto e quando estava em Cannes foi duro para mim. Não preciso ser reconhecido pelo que faço. Se não recebesse prémios estaria tudo bem, o público e os críticos já tinham gostado, então OK, já ficávamos por aí [risos].

 

E ainda pode ganhar um Óscar…

 

Exato, é uma loucura saber disto. Só o facto de pensar que posso ter de subir ao palco para agradecer deixa-me doente [risos]. Sei por exemplo que, como aconteceu nos César [com “Eastern Boys”], teria de ir à cerimónia e isso deixa-me doente por causa do medo do palco. Tenho medo de ser filmado, de ser visto em público. Se estiver com mais alguém já é mais fácil. Sei que isso é estúpido, mas é real. Quero a estatueta, mas não ser eu a ir recebê-la….

 

Pode fazer como o Marlon Brando e mandar uma índia…

 

[risos] Poderia fazer isso! Bom, tinha pensado em algo mais modesto, como mandar o meu irmão ou um sósia [risos]. Outra ideia é dizer ao produtor para fazer o discurso, do estilo ‘você foi tão importante, você merece!’

 

Bom, é melhor não dizer isso publicamente, caso contrário não ganha…

 

Sim e a culpa é sua! [risos].

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por Roni Nunes às 14:32

10 Filmes a não perder na Mostra de Cinema Ibero-Americano

por Roni Nunes, Terça-feira, 05.12.17

Artigo postado em SAPO Mag.

 

Roni Nunes

 

A Mostra de Cinemas Ibero-Americanos – No Escurinho do Cinema decorre entre 4 e 16 de dezembro no cinema São Jorge, em Lisboa. O evento junta 41 filmes e o SAPO Mag falou com um dos programadores, Carlos Nogueira, para destacar 10 que são imperdíveis.
 
 

Conjugando filmes de género e cinema de autor, a Mostra de Cinemas Ibero-Americanos – No Escurinho do Cinema exibirá 41 projetos ibero-americanos entre 4 e 16 de dezembro no cinema São Jorge, em Lisboa. O evento vem da parceria entre a Casa da América Latina, organizadora de uma mostra anual dedicado ao cinema ibero-americano, e a Câmara de Lisboa, que integrou o certame nas comemorações da Lisboa Capital Ibero-Americana da Cultura.

 

Para além de projetos francamente acessíveis, como o uruguaio “El Candidato”, sátira sobre o mundo da política, o evento faz quase um inventário dos grandes festivais internacionais direcionados ao cinema de autor – com predominância de títulos estreados em Berlim, San Sebastián, Sundance, Roterdão e Cannes.

 

O SAPO Mag conversou com um dos programadores da Mostra, Carlos Nogueira, sobre a organização especial desta edição pelo facto do certame se incorporar ao evento Lisboa Capital Ibero-Americana da Cultura.

 

Conforme salienta o programador, existem pelo menos duas excelentes razões para os espectadores em busca de diversidade: “O cinema ibero-americano está a atravessar uma excelente fase e, além disto, raramente estreiam nas salas portuguesas”, diz.

 

A projeção internacional vem do início do século XXI.

“No caso argentino vem desde Lucrecia Martel e Lizandro Alonso. Logo a seguir vieram os uruguaios, com filmes como 'Whisky', seguido pelos mexicanos e nomes como os de Carlos Reygadas e Amat Escalante e, certamente, os chilenos.  Eles pareciam surgidos do nada e vinham acompanhados por muitos outros, revelando um viveiro de criatividade, que ainda se mantém”, afirma Nogueira.

 

O enorme currículo internacional dos títulos escolhidos, a maioria saídos dos grandes festivais internacionais de cinema, parece marcar o festival com o selo do cinema de autor, mas não é bem assim: “Existe também cinema de género. Quisemos agradar todo o tipo de público e fornecemos informações para que as pessoas escolham o estilo que mais lhe agrada. Mas há, certamente, um gosto pelo cinema mais experimental e o desejo de destacar as cinematografias independentes dos países”.

 

Quanto ao título, obviamente extraído de um célebre “standard pop” de Rita Lee, o programador explica que ele parte da busca de um título mais atrativo para o público. “Certamente é uma referência lúdica, pois se atentarmos à poesia da canção tudo o que ela diz é para sair fora do cinema, faz-se de tudo, menos ver o filme!”, brinca.

 

UM VISLUMBRE SOBRE A PROGRAMAÇÃO COM 10 FILMES A NÃO PERDER:

 

AQUÍ NO HA PASADO NADA

 

Com uma carreira internacional iniciada em Sundance e Berlim, a obra compõem uma trilogia do realizador chileno Alejandro Fernandez Almendras sobre a Justiça. O primeiro, “Matar un Hombre”, foi eleito o Melhor Filme do IndieLisboa em 2015. Segundo Nogueira, o filme foi escolhido para sessão de abertura da Mostra por ser ao mesmo tempo acessível e intenso. Foi inspirado no caso Larraín, um mediático acontecimento no Chile em 2013 e que envolveu o filho de um senador. Em última análise, serve para debater o papel da Justiça no universo dos poderosos, que raramente se veem tentados a obedecer a lei.

 

LA FAMÍLIA

 

Estreado na Semana da Crítica, no Festival de Cannes, é uma obra venezuelana sobre a relação entre pai e filho. Eles estão em fuga após o segundo ter morto outro jovem. Como pano de fundo nesta obra de estreia de Gustavo Rondón Córdova, está o quotidiano de um país marcado pela violência.

 

VERÃO SATURNO

 

A participação portuguesa no evento ao lado da coprodução com o Brasil em “Joaquim”. A curta-metragem de Mónica Lima compõe uma sessão com “La Família” e foi revelado na programação dos curtas de Vila do Conde. Segundo o curador foi uma grata surpresa, mostrando um drama urbano sobre um músico de 35 anos prestes a desistir da carreira. Tem participação de Joana de Verona.

 

IXCANUL

 

“Vulcão” na linguagem indígena, trata-se de um surpreendente filme saída da Guatemala para o cirtuito de festivais internacionais a partir de Berlim, 2015. Conforme Nogueira, o título da obra refere-se às dificuldades de uma comunidade nos confins mantanhosos do país que sonha com uma vida melhor para lá dos vulcão – por outras palavras, o “eldorado” da terra do Tio Sam.

 

LA LUZ INCIDENTE

 

Obra argentina que o programador considera das mais acessíveis da Mostra ao grande público. Trata-se de um drama sobre uma mulher que, após a morte do marido, perde a vontade de viver. Conhece, no entanto, outro homem – ao mesmo tempo que tenta reconstruir a famíia.

 

LA RECONQUISTA

 

O representante espanhol será outro dos projetos mais palatáveis. Realizado por Jonás Truebe, parte de uma premissa romântica: com 15 anos dois adolescentes vivem um romance. Encontram-se 15 anos depois, em Madrid, e tem a hipótese de reviver aqueles momentos.

 

EL INVIERNO

 

Carlos Nogueira refere-se a este “belíssimo” filme de estreia de Emiliano Torres com mais um daqueles que investe na desconstrução dos géneros clássicos – neste caso estabelecendo uma espécie de “western” em plena Patagónia. O enredo trata de um conflito entre um velho e um jovem capataz numa quinta, onde surgem velhos temas do “western”, como a passagem do tempo e a substituição da velha geração e os seus valores pela novidade.

 

EL CANDIDATO

 

Representante uruguaio, exibindo uma sátira mordaz ao universo da política ao retratar a vida de um candidato nas eleições para o presidente do país. Com uma visão muito realista, mostra os bastidores da campanha, com uma equipa de “marketing” a construir uma personagem de ficção que nada tem a ver com qualquer ideologia. Com grande sentido de humor, o filme faz um retrato cáustico da hipocrisia na política. O realizador Daniel Heller é um dos mais famosos atores do Uruguai e colaborador frequente do cineasta argentino Daniel Burmán.

 

JOAQUIM

 

Promete o seu “quê” de polémica essa abordagem histórica de Marcelo Gomes, um dos talentos do cinema brasileiro do século XXI, sobre Tiradentes. Trata-se da revisita a um dos mitos históricos do país ao tornar-se símbolo de um dos mais icónicos movimentos da colónia contra a Metrópole portuguesa no século XVIII. Tem coprodução da Ukbar e participação de Nuno Lopes, entre outros atores portugueses. “É uma excelente oportunidade para conhecermos um pouco mais da história portuguesa no além-mar”, diz Nogueira.

 

LA DEFENSA DEL DRAGÓN

 

Escolhido para a Sessão de Encerramento, o projeto colombiano estreou na Quinzena dos Realizadores, no Festival de Cannes. O enredo gira em torno de três velhos amigos que perambulam pelo centro de Bogotá. Um acontecimento os obrigará a sair de sua rotina de negação dos seus falhanços. A realizadora Natalia Santa inspirou-se num clube de xadrez existente na cidade, onde também se confrontam a modernidade e a recusa em aderir a ela.

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por Roni Nunes às 20:01

"Táxi Sófia" e outras geografias: mosaico da nova Bulgária nas salas portuguesas

por Roni Nunes, Domingo, 03.12.17

Artigo postado em SAPO Mag.

 

"Táxi Sófia" é um raro exemplar do cinema do Leste europeu a chegar ao circuito comercial português.
 
 

"Táxi Sófia" é um raro exemplar do cinema do Leste europeu a aportar no circuito comercial português. Estreado na secção A Certain Regard do Festival de Cannes, o filme traz um pouco da vida na capital da Bulgária num ritmo vertiginoso.

 

Trata-se de uma espécie de filme-mosaico e chega a lembrar o polaco “11 Minutos”, de Jerzy Skolimowsky. E que registo propõe Stephan Komandarev, cineasta já com um currículo internacional assinalável?

 

Estilisticamente, trata-se de enfatizar movimento e sufoco, apertando os ângulos dentro de carros, priorizando planos médios e valendo-se, em muitos momentos, de cortes rápidos. O resultado é isso: um Bulgária convulsa – cuja forma está ao serviço de retratar as situações que o demonstram.

 

Tudo se passa na vida dos motoristas de táxi da cidade. Eles conhecem gente capacitada desesperada para emigrar, para se suicidar, a viver na miséria; lidam com uma juventude sem rumo, vingam-se de algozes antigamente confortáveis sob o comunismo e que agora dão lições sobre os “valores europeus”. A ligar um pouco isto tudo está um taxista desesperado que assassinou um banqueiro.

 

 

O tema não é espantoso: os filmes do Leste europeu que têm chegado ao Ocidente, vindos de países como Roménia, Polónia, Rússia, não variam ao mostrar uma espécie de mistura indigesta entre as ruínas do velho mundo comunista e a selvajaria capitalista, sob a sua vertente dominante no momento – a neoliberal. O que liga estes universos é a corrupção.

 

Neste momento, o realizador termina um documentário no qual realiza um episódio ao lado de quatro outros cineastas de diferentes países do Leste europeu. Cada filme terá em torno de 30 minutos e representa as diferentes visões de cada um sobre um episódio fulcral da era comunista e das crenças no socialismo – o Maio de 68 na antiga Checoslováquia.

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por Roni Nunes às 12:40

Entrevista "Verão Danado": Míssil sensorial de Pedro Cabeleira atinge cinemas portugueses

por Roni Nunes, Sexta-feira, 01.12.17

Postado por Roni Nunes em SAPO Mag.

 
 

Enquanto o inverno toma forma em Portugal, o circuito comercial de cinema recebe o verão interminável da juventude na proposta de estreia de Pedro Cabeleira: "Verão Danado" tem agradado um pouco por todo lado, no Festival de Locarno aos que já o viram por cá em antestreia. A ver se espalha as suas andorinhas à base de MD pela noite polar da distribuição/exibição em terras lusas.

 

Chico (Pedro Marujo, também em estreia) sai da terrinha para estudar em Lisboa. Na sua última vinda a capital conhece o universo dos “ravers”. Anda de festa em festa. Mais ou menos deslumbrado, de vez em quando ressacado – por vezes despreparado para a dinâmica volátil da noite. E é isso.

 

Diz o cineasta, não totalmente a sério: “Gosto da noção da odisseia, do sujeito que sai da terra para uma grande aventura. Os “MDs” são como as sereias a acenar para ele...!”

 

Pedro Cabeleira escolheu músicas do DJ Nigga Fox e ritmos “afrobeat” para embalar os seus jovens – até garantir um brilhante momento-surpresa com o DJ Mr. Gee. Uma poesia do século XXI não poderia vir de um poeta.

 

Foi uma descoberta fortuita na pós-produção”, diz. “De repente percebi que aquele poema tinha tudo a ver com filme e fiquei arrepiado”.

 

 

De personagens ilustres há Nuno Melo, numa pequena participação gravada quatro meses antes do ator falecer.

 

Ele havia entrado no meu filme de conclusão da universidade. Mais uma vez disse que não tinha dinheiro para pagar, mas ele aceitou na mesma. Era uma pessoa incrivelmente bem disposta”, assinala.

 

De resto, será um hino à geração do hedonismo-que-vazio-horrível-dentro-de-mim? Também isso. Mas há mais sereias nesta odisseia com os seus longos e violentos momentos de festa. “Se era para mostrar uma festa tinha que ser uma a sério”, diz o anfitrião.

 

O realismo orgânico e os blocos da criação

 

Se a graça da criação é reinventar sobre o que já existe, os caminhos de Pedro Cabeleira já andam por aí há tempos. Trata-se daquele realismo orgânico com personagens-que-podiam-ser-o-nosso-vizinho que tem em autores como Richard Linklater a sua via “mainstream” e na epidémica docuficção o seu reduto festivaleiro.

 

Em “Verão Danado”, a dinâmica entre composição visual, diálogos e interação entre personagens é complexa. O realizador explica: “A ideia era trabalhar por blocos, o ponto de partida foram quatro ou cinco blocos que tivessem intensidade dramática ou sensorial – de achar que momentos tinham impacto cinematográfico.”

 

Assim, “dois blocos relacionam-se com as duas festas, outro sobre a situação com a rapariga onde queria filmar rostos, um quarto com a ideia da terra natal, simbolizando um personagem que sai para a capital, e o jogo de futebol – para mostrar uma relação de amizade e euforia sem drogas. A composição dos personagens veio a seguir”.

 

A juventude e o verão “never ending”

 

O filme como um todo apresenta-se como uma metáfora própria do estado de juventude, com a sua ideia de presente eterno.

 

Diz Pedro Cabeleira: “A ideia é que aquilo pode parecer uma espécie de um verão interminável, 'never ending', de festa em festa. Isto porque, de repente, há ali uma rotura com uma ideia de rotina. O Chico sempre foi uma pessoa rotinada, teve os pais, depois a escola, foi para a universidade. De repente ele fica órfão porque as instituições desaparecem e se ele não arranjar um emprego, este estado pode-se prolongar ‘ad eternum’. É um período muito característico da vida das pessoas e senti que pode ser algo muito violento, um choque, um período de transição muito estranho”.

 

 

A liberdade do imediato

 

De qualquer forma não há em Verão Danado" uma crítica moralizante em torno destes jovens.

 

Não queria mostrar isso de uma forma destrutiva, há uma energia naquelas pessoas, naquele período da vida, uma liberdade que não se volta a ter. Eles não estão agarrados a nada material, ninguém tem dinheiro, eles não estão a planear viagens ou ir à praia. Só querem estar ali, o que é uma coisa bonita e específica daquele período. Claro que é muito romântico a ideia de viver assim para o resto da vida o que, dado a forma de organização do nosso sistema social, é completamente impossível”.

 

O eterno vazio da juventude pós-moderna

 

Esse tempo “infinito” expõe também a fragilidade das novas gerações.

 

Hoje em dia queremos demasiado. Os nossos avós e antes deles estavam concentrados em pôr comida na mesa. Os nossos pais já se preocupavam em ter uma casa própria, um carro, pôr os filhos na universidade. Já a nossa geração quer ser extraordinária, não conseguimos perceber o quão privilegiados somos por termos nascido nesse tempo. Desejar ser extraordinário pode-nos colocar numa insatisfação permanente”, avança Pedro Cabeleira.

 

Da mesma forma, o filme não é meramente sobre o uso de drogas – embora elas estejam fortemente conectadas com um dos seus temas centrais, o hedonismo.

 

As drogas aqui potenciavam uma série de possibilidades em termos de cenografia e realização. O MD, por exemplo, possibilita aquela sequência de 20 minutos onde posso brincar com o som. Já para os personagens é uma forma de refúgio de uma coisa qualquer, lidam constantemente com um vazio que tem que preencher. A droga garante satisfação imediata”.

 

 

O baile de máscaras e a desfragmentação da identidade

 

Num dado momento, Chico diz que se encontrasse aquelas pessoas fora do ambiente da festa não as reconheceria.

 

Pedro Cabeleira explica: “O que acontece nestas festas é uma abstração da questão da identidade: às vezes as pessoas adquirem outra 'persona', uma oportunidade de se mostrarem de maneira não o podem fazer durante o dia. É como um baile de máscaras moderno, encontrar aquelas pessoas de outra forma seria estranhíssimo”.

 

“Verão Danado” é o primeiro filme distribuído em sala pela plataforma Filmin e estreou esta semana.

 

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por Roni Nunes às 22:27


Comentários recentes

  • Cleber Nunes

    Sem dúvida é um filme que me despertou interesse ...



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