No IndieMusic, "Teenagers Superstars" retrata mais um movimento na esteira do "punk".
Glasgow, início dos 80: havia uma banda chamada The Pastels, que ostentava um mentor de todo o circuito, Stephen McRobbie. E daí para outras mentes: Bobby Gillespie, "raivoso, criativo e ambicioso", dono de uma coleção de discos invejável. Gillespie, pré-Primal Scream, esteve presente como baixista quando os irmãos Reid (recentemente a visitar o álbum em concerto lisboeta) descobriram a microfonia para dar uma atitude às suas músicas com três notas e extasiar a crítica inglesa e figurar no topo das listas das bíblias da Melody Maker e do New Musical Express. "Psychochandy" figurou no topo das listas de melhores de 1985.
Outro pilar será Alan McGee, que descobriu ao chegar em Londres que, incrível, não havia espaço para a sua banda tocar. Ele cria o seu próprio espaço (Living Room, palco para muitas bandas novas) e, para figurar na História, o selo Creation – que fixou ícones ímpares do cenário "indie" (entre as quais as bandas já citadas) até encontrar o pote de ouro no fim do arco-íris com os Oasis.
A favela é um assunto recorrente no cinema brasileiro, mas raramente sob um olhar feminino e direcionado para as vidas das mulheres num ambiente frequentemente hostil. "Baronesa" é um trabalho da assistente de realização de "Arábia", um dos filmes de autor produzidos no Brasil de maior "hype" do ano passado, Juliana Antunes.
Perfeitamente instalado na categoria de "docudrama", o filme acompanha um grupo de mulheres num bairro de Belo Horizonte, cidade com mais de dois milhões de habitantes do Estado de Minas Gerais. Tipicamente, foram muitos meses a viver no local e a conhecer as suas futuras protagonistas – Andreia (Andreia Pereira de Sousa) e Leid (Leidiane Ferreira).
O retrato revela um mundo reconhecível, mas não visto noutros projetos: as suas "personagens" espelham o drama de quem espera, de quem cuida da casa e dos filhos enquanto os maridos estão na prisão ou foram mortos em algum confronto de gangues. Juliana Antunes apostou na ideia de um equilíbrio entre a dureza do que filme mostra sem mascarar a presença do álcool, das drogas e dos abusos sexuais, e o lado humano destas pessoas.
A baixista Tessa guarda com carinho uma série de recortes dos seus tempos de Slits. É com eles que o filme começa: é a história de muitos jovens que revolucionaram o mundo do rock no final dos anos 70. Saturados com a hipocrisia do mundo dos grandes dinossauros na música e, num âmbito expandido, da sociedade inglesa em geral, ergueram a bandeira do "faça você mesmo" e abriram um mundo de possibilidades mesmo para quem só sabia tocar um par de notas na guitarra.
O que interessava era a atitude. E isso Ari-Up (vocalista) tinha o suficiente para contagiar as restantes – particularmente Palmolive (que tocava bateria como se o mundo fosse acabar) e a guitarrista Viv Albertine. Com um "line-up" instável desde o início, no seu primeiro álbum tiveram Budgie, mais tarde célebre "partner" de Siouxie, na bateria.
O "punk" incomodou os conservadores britânicos, que menos preparados ainda estavam para mulheres a tomarem as suas próprias decisões, vestirem-se de forma irreverente e, principalmente, tocar alto, pesado e sem se importar com a opinião alheia. Tiveram dificuldades em deixar de ser a "banda de abertura" dos Clash e dos Sex Pistols, mas ao rasgarem o "papel" que estipulava o lugar da mulher na sociedade lançaram o caos num existência curta.
A história começa em Los Angeles, quando uma emigrada de Chicago (Donita Sparks) juntou-se à uma local (Suzi Gardner) com o simples desejo de fazer rock. Isso no final dos anos 80.
Com a formação já completa (Jennifer Finch no baixo, Demetra Plakas na bateria) tiveram de emigrar para Seattle para respirar um ar mais recetivo as contribuições femininas numa música dominada por homens. Lugar mais propício não havia: em plena efervescência do "grunge", foram devidamente convidadas pelo grande selo "indie" do momento, a Sub Pop, que as levou a "Smell the Magic" – álbum produzido por Jack Andino, o mesmo de "Bleach", dos Nirvana.
Daí para almejar (e conseguir) um contrato maior de distribuição foi um passo: a Warner podia lá não saber muito o que fazer com elas, mas teve a clarividência de as pôr nas mãos de Butch Vig – simplesmente o homem que no momento trabalhava nos multiplatinados álbuns de Nirvana, Smashing Pumpkins e Sonic Youth. O resultado foi uma pérola chamada "Bricks Are Heavy", repleto de "riffs" e refrões pegajosos em músicas inesquecíveis como "Shitlist", "Everglade", "Monster" e "Pretend We’re Dead". O álbum é a razão pela qual a banda será sempre lembrada.
"Pretend We’re Dead", o filme, acaba por não revelar muito sobre elas – preferindo relatar antes os seus gostos manifestos por parvalheiras, loucuras e apanhados nas "tours" (incluindo uma célebre "fake news" sobre uma ameaça de bomba na rodagem de um teledisco supostamente realizado por… Viggo Mortensen!) e as festas por onde passam celebridades "indies" como Nick Cave.
Sim, o célebre momento do "tampax" no festival de Reading (cansada de levar com lama de uma audiência furiosa com os problemas de áudio do concerto, Donita Sparks mandou um "tampax" usado para a audiência gritando "Eat my used tampon, fuckers!") também lá está, tal como o outro onde ficou nua da cintura para baixo num brejeiro programa com público da TV britânica.
Mas como na história do "rock’n’roll" não há farra que não termine numa bruta ressaca, as coisas começaram a azedar com o sucessor de "Bricks Are Heavy", chamado "Hungry for Stinky", lançado em 1994. Poucos anos depois, uma vida de desgastes e excessos, tal como a perda do sucesso comercial, começaram a fazer mossa.
A primeira a acusar o golpe foi Finch, que abandonou a banda no meio da gravação de "The Beauty Process: Triple Platinum" (no filme justifica a decisão em função da morte do pai e das preocupações com a sua saúde); mais tarde Gardner, num dos poucos testemunhos de amplitude emocional do filme, lamenta ter acabado "sem nada" – incluindo ter chegado aos 40 anos sem ter uma família.
A banda nunca expôs publicamente a degradação dos relacionamentos entre elas e, numa entrevista, Donita Sparks disse que na altura deste documentário elas não se falavam há longos anos e que gravaram separadamente os áudios para o filme. As coisas mudaram tempos depois quando, independente das diferenças pessoais, reagruparam-se para algumas "tours". Afinal, elas apenas estavam a fingirem-se de mortas.
A vastidão e a riqueza musical da cultura negra norte-americana serviu de fonte para os franceses, que foram buscar a Frankie Knuckles e aos diversos palcos da "house" americana (Chicago, Detroit, Nova Iorque) a inspiração para um movimento destinado à massificação e expansão internacional. A história é contada por Julian Starke em "French Waves", obra integrante de uma ação multimédia que inclui uma série, uma tour e um site.
Conforme recorda Laurent Garnier, os DJs foram uma possibilidade posterior de rebeldia para uma geração que não tinha idade para beneficiar dos feitos revolucionários dos "punks". Mas o espírito de libertação coletiva foi levado suficientemente a sério pela polícia, pelo menos quando esta conseguia localizar as "raves" clandestinas que passaram a ser construídas em nome de uma celebração comunitária.
Os grandes ideais do passado estavam enterrados, mas essa vivência assumidamente hedonista ("era um movimento sem demandas", recorda o DJ Agora) continuava a ter o seu "quê" de rebeldia. "Porquê importar esse lixo da Inglaterra?", bradavam os conservadores.
Além de Garnier, muitos nomes destinados a cruzar as fronteiras dão o seu testemunho, como o multiplatinado Bob Sinclair, Cassius, Agora, Jacques, Justice e o "espectro" dos Daft Punk, pioneiros da música eletrónica francesa a mostrar que sucesso não comprometia a integridade.
É a longa história de um movimento que começou em alguns locais específicos do norte do país e depois cresceu. O documentário "Não Consegues Criar o Mundo Duas Vezes" mostra a história de miúdos, as suas convivências em locais específicos do grande Porto e gosto por uma música ainda desconhecida que vinha dos Estados Unidos, o hip hop. Vencendo resistências, nomes como os Mind da Gap (foto em cima) e Dealema (foto em baixo) inscreveram-se no panorama musical português.
Francisco Noronha e Catarina David contam essa história. O filme tem sessão única no festival IndieLisboa esta quinta-feira (3).
SAPO Mag: Ao longo do filme dão muita relevância aos espaços, aos locais onde se passaram as ações. A ideia é demonstrar que essas manifestações culturais estão profundamente ligada às paisagens humanas de um determinado local?
Francisco Noronha: Sim, essa ligação é evidente, é fundamental, ou seja, não se podem separar as duas coisas, sobretudo num tempo como o de criancice e de juventude como o que é retratado no filme. Quando somos miúdos toda a gente passa por isso, habitamos determinados locais e até há alguns nos quais passamos a maior parte do dia em vez de ser em casa. É um hábito bonito e se calhar nunca mais vamos fazer isso, passar assim tanto tempo na rua. Nesse sentido, sem dúvida que as duas coisas andam sempre ligadas, o filme é um documentário sobre o Porto, Matosinhos, Gaia e, ao mesmo tempo, sobre locais mais específicos dentro dessas cidades, como a Câmara Municipal de Matosinhos e o espaço à sua volta, as ruas de Gaia, à volta do Hard Rock, Cedofeita e outras ruas da baixa do Porto.
Catarina David: As ruas do Porto marcam muito isso, marcam o espírito onde as pessoas convivem, falam todos os dias e se identificam. Traz muitas memórias pessoais e vivências nesses próprios sítios.
SAPO Mag: Ainda sobre a questão do espaço, os vossos entrevistados destacam frequentemente o facto de serem do Porto e das diferenças em relação a Lisboa.
CD: É verdade que é preciso reforçar isso, falamos no filme sobre haver uma escola do Porto, um sotaque de lá. Quanto temos cidades com uma vida bastante diferente isto reflete-se nas suas pessoas, nos “rappers” e em todos os envolvidos nos estilos musicais que representam esse local. No Porto acaba por haver muito a necessidade de se afirmar um espírito “tripeiro” e de local, do estilo "isto é o nosso espaço, o nosso terreno". Lisboa é muito maior, muito metropolitano, por isso não existe essa coisa tão vincada. No Porto o grupo que começou isto lá acabou por ter esse convívio – algo que também se reflete nas músicas.
FN: Essas diferenças mostram a riqueza de um país, os seus dialetos, as suas cores, são saudáveis. Na altura eram maiores, mas hoje estão mais esbatidas como se percebe ao longo do filme. Há uma música em que os Mind da Gap falam sobre isso, "Norte Sul" que é lançada logo no "Sem Cerimónias", que é o primeiro álbum deles. Aqui já há, precisamente, um espírito de encontrar amizades e "boa onda" entre pessoas de sítios diferentes.
SAPO Mag: O hip hop e o rap tem uma grande tradição de cultura de rua nos Estados Unidos – ligados também a outras formas de expressão, como o grafite e o "breakdance". Em Portugal não havia nada assim até os artistas que retratam começarem a atuar. O título do vosso filme reflete esse momento criador, que não pode ser reinventado "tal como o 'big bang'"...
CD: Era não só uma coisa de memória, de gravar uma coisa importante como o início de um estilo musical importante para a malta jovem. Este momento criador era muito importante para quem estava envolvido nele. Eram miúdos que estavam a conhecer um estilo novo que vinha dos Estados Unidos, com pouco acesso a ele, o que também lhe conferia um ar misterioso, dava mais vontade de fazer pesquisas sobre isso e de partilharem com quem iam encontrando e que tinham os mesmos gostos.Acabavam por ter um "mini" movimento, uma "mini" cultura, à medida que iam conhecendo pessoas. Isso foi bom de se mostrar no documentário, eles arranjarem os primeiros espaços para tocarem, para pintar, a descobrir que aquela pessoa está a usar as mesmas roupas que eu. É uma construção de um grupo, de um género musical.
FN: A acrescentar que a ideia do "big bang" é uma ideia bonita e que também aparece no filme. Por isso também no nosso título procuramos recuar até esse momento fundador, mesmo que, historicamente, ele nunca possa ser extremamente exato. O título simboliza que não se podem repetir as coisas que acontecem em determinados momentos e elas são bonitas por isso mesmo. Não quer dizer que o que vem depois seja pior ou desiluda, simplesmente houve momentos que foram o início e que têm a sua própria beleza.
SAPO Mag: Também em Portugal havia uma diferença grande em relação aos Estados Unidos. A questão racial era menos importante e não era um movimento do gueto, eram jovens brancos, de classe média. A certa altura no filme alguém diz que às tantas já se rimava sobre "outros planetas" porque os temas dos problemas do bairro não eram tão relevantes...
FN: É uma questão interessante que se prende essencialmente com o facto de, no Porto, ao contrário de Lisboa, existir uma presença mais reduzida de comunidades africanas oriundas das antigas colónias portuguesas. Lisboa teve sempre mais presente essas comunidades que hoje já vão em duas ou três gerações; no Porto só começou esse movimento mais tarde. Em Lisboa o hip hop tem desde o início a grande marca da cultura negra, que pessoalmente admiro, que mais oiço. Por outro lado, mesmo sendo feito por um número maior de pessoas brancas no Porto, ele não deixa de ser um rap consciente, de rua, combativo, de intervenção. Também existe um olhar sobre os bairros sociais, tal como em Lisboa.
CD: Ao mesmo tempo que é feito por vozes representativas da classe média, são vozes representativas de gente que vive no bairro, são pessoas que passam essa mensagem cá para fora.
SAPO Mag: Por que acham que houve tanta resistência no início aos Mind da Gap e ao rap/hip hop português?
FN: O hip hop era um género novo e havia um grande preconceito – como ainda hoje há. Ainda há pouco tempo um músico português muito conhecido deu uma entrevista em que falava do rap como uma expressão artística que não era música. Este tipo de coisas hoje ainda se dizem, por incrível que possa parecer. Há 20 anos era mais difícil não só em Portugal, mas em toda parte, mesmo em países como Estados Unidos, Brasil, França. Os Mind da Gap sofreram esse preconceito porque, além disto, eram do Porto – numa altura onde imprensa e a antiga vanguarda estava representada em Lisboa. De qualquer forma, são águas passadas.
SAPO Mag: Em relação à aceitação posterior, para quem cresceu nos 80 e 90 há um certo desapontamento com o facto de que as tendências musicais e as atitudes que se interligavam com elas diluíram-se num "mainstream" globalizado. No final alguém pergunta: "hoje o hip hop está massificado. Mas não era isso que nós queríamos???". Como vêem essa relação entre identidade e massificação na cultura atual, do hip hop em particular?
FN: É algo comum a vários fenómenos, comum a toda a arte. Desde adolescentes que achamos que só nós gostamos e partilhamos algo com os amigos e, passado um mês, quando já toda a gente gosta, vamos começar a perder a identificação pessoal. É normal. Existe uma massificação do hip hop, que é hoje a música mais ouvida em "streaming" no mundo. As vendas ultrapassaram as do rock pela primeira vez na história norte-americana. É uma boa frase do filme essa que menciona. A massificação tem sempre esses dois lados – por um lado pode entristecer-nos um pouco e por outro lado tem a vantagem de podermos levar as coisas de que gostamos a todo o lado e mostrar a mais pessoas. Posso entristecer-me com uma situação ou outra, mas vivo bem com a massificação. Gosto do rap e se posso ouvi-lo em vários sítios fico feliz por isso.
CD: É uma questão complicada porque realmente há um aspeto positivo e outro negativo dessa massificação. Por um lado é bom sair à noite, por exemplo, e ouvir a música com que se identifica; por outro lado é uma quase banalização que parece tirar um bocado da magia da cultura e do movimento e da forma como as pessoas se agarravam ao hip hop no início. Essa identificação com o estilo, com o movimento, com o grafite, o "breakdance" e o DJ acaba por perder um pouco o encanto com a banalização.
SAPO Mag: Como foi a produção do filme? Levaram muito tempo a reunir as possibilidades de entrevistar estes músicos todos?
FN: O mais importante é que é um filme produzido inteiramente por nós, somos realizadores independentes. Demorámos cerca de um ano e meio entre começar e acabar – o que faz algumas pessoas ficarem surpreendidas. Neste período fizemos mais de 40 entrevistas, recolhemos material de arquivo, selecionámos material, passámos horas e horas a ouvir pedaços de áudio e a selecionar imagens para a montagem do filme. Foi um processo árduo, trabalhoso, muito cansativo, sendo que nenhum de nós esteve a trabalhar exclusivamente no filme. Temos outros trabalhos, outros projetos, fomos fazendo o filme conjugando com as nossas outras atividades, o que reduz o tempo de disponibilidade. Batalhámos muito para conseguir fazer o que fizemos. Mas isso também traz uma certa sensação de aragem, de liberdade e de amor feito por aquilo. Muito trabalhoso mas muito apaixonado.
CD: Nós temos este amor ao hip hop e acabamos por fazer isto com uma vontade muito grande e mesmo com essa luta que o Francisco mencionou, apesar disso acabamos por estar muito apegados a este projeto. Em relação às entrevistas destas pessoas, tivemos uma receção muito boa, achamos que é de valorizar a recetividade dos artistas para nos responderem e só nos apetecia ficar horas a falar com eles. Por isso ficámos com muito tempo de filmagens, o que tornou a edição muito complexa.
SAPO Mag: Por que acharam que era o momento de se fazer um retrato sobre o rap/hip hop no Porto?
FN: Todos os momentos são bons, não houve razão específica, temporalmente falando, foi no ponto da nossa vida em que entendemos que tínhamos reunindo as condições, o entusiasmo e a vontade para nos juntarmos e levarmos o projeto para a frente.
CD: Há uma vantagem, que nem foi escolha nossa: como é um assunto com o qual temos um certo à vontade, conseguimos ter alguma proximidade em termos de memória, de arquivo, de fotografias e de coisas que os envolvidos nos poderiam dar e que se calhar ficariam perdidas se fosse daqui a uns anos. Estão mais frescas na memória e foi mais fácil para eles passarem-nos isso agora.
Não seria fácil Júlia Katharine, que tenta contar a sua história diante da câmara de Gustavo Vinagre, lembrar-se de pássaros mais amenos. Ela está a contar a história de um tempo onde não havia definições nem sentimentos de abuso perante o que hoje se qualificaria facilmente como pedofilia. Também nos anos 80 não havia um termo que enquadrasse o mal-estar com o seu corpo e a inevitável ostracismo social.
Além de tragédias fala-se de sexo, ao mesmo tempo que se recriam cenários para referir-se a Yasujiro Ozu. Não é à toa: Júlia Katharine (o último nome é uma referência a Katharine Hepburn) refugiou-se desesperadamente no cinema para conseguir suportar um quotidiano duríssimo.
Gustavo Vinagre, que já circulou em Portugal com uma curta-metragem no IndieLisboa e uma média-metragem no Queer Lisboa, filma estas e outras histórias de forma “ininterrupta” – usando de todos os recursos dinamizadores que se lembra para obedecer os limites que ele próprio se impôs: filmar num único cenário durante uma única noite. Desta conversa, que não exclui o espontâneo, a timidez e o dialogar com o cineasta, Vinagre propôs extrair um relato ao mesmo trágico e transgressor dos muitos tabus que ainda assombram o mundo.
O filme brasileiro Lembro mais dos Corvos está em Competição no IndieLisboa. A primeira longa-metragem de Gustavo Vinagre, que já teve exibido uma curta no QueerLisboa, é uma conversa com a transsexual Julia Katharine – que fala do seu presente, de um passado de abusos e de como o cinema (o nome escolhido por ela é uma referência a Katharine Hepburn) salvou a sua vida.
Em entrevista ao C7nema o realizador falou sobre os tabus que vêm sendo derrubados e cercam a dramática história da sua protagonista em tempos onde não havia consciência de conceitos como pedofilia e “transgénero” – para além do método que lhe permitiu uma narrativa dinâmica dentro de uma proposta documental minimalista.
Há um momento em que a sua protagonista pergunta onde você queria chegar com o filme. Uma vez que há um interação entre você e a atriz, até que ponto você foi de facto construindo o filme na medida em que ele evoluía e até onde você tinha uma linha de chegada.
O filme tinha um argumento em que agrupei os assuntos que eu queria que fossem tocados. Claro, a Julia tinha totalliberdade para improvisar e criar outras coisas e até contar histórias que não estavam programadas. Mas se as anedotas variavam muito, eu tinha perguntas que a faziam voltar ao assunto estipulado. Era um argumento um tanto híbrido, às vezes com diálogos inteiros escritos, às vezes apenas com indicações para os assuntos ou improvisações. Eu intuía desde o princípio que o filme seria uma longa, isso conhecendo as histórias da Julia e a nossa relação.
Mas não poderia afirmar isso, estava aberto a experimentar e aceitar o risco de que se a única noite de gravação não rendesse, talvez o filme se tornaria uma curta-metragem, ou pediria um segundo dia de rodagem o que acho improvável tendo em vista que gosto de trabalhar criativamente em cima de regras autoimpostas. E, nesse caso, a regra era: uma personagem, uma locação, uma noite. O ponto de chegada era o amanhecer, essa cena que é totalmente encenada, e em que a Julia toma para si, de certa forma, a direção do filme, olhando para o novo dia que raia lá fora.
Há uma parte da narrativa dela que traz a perspetiva em primeira pessoa de coisas que hoje tem nomes como “abuso”, “pedofilia”, “transgénero”, mas que na época não era visto desta forma, estas palavras não eram usadas, não havia consciência.
Palavras extremamente necessárias para que as pessoas se sintam contempladas em seus traumas e também em suas identidades. Afinal, quando nomeamos as coisas, elas deixam de ser tão tabu e se tornam coisas palpáveis, para que possamos pensar sobre elas. A maneira como a Julia fala dos abusos que sofreu é extremamente necessária, pois complexifica o abuso para além de um maniqueísmo comum quando se toca no assunto.
Ainda na questão do conteúdo, a atriz aborda de forma aberta questões ligadas à sexualidade. Essa frontalidade diverge de um mundo lá fora (no Brasil, mas não só) que parece querer voltar atrás nas liberdades conquistadas no que diz respeito à tolerância…
Todos meus filmes abordam e incluem o sexo em suas narrativas. O sexo é parte da vida, e ele não pode ser apenas uma elipse, como é na maioria dos filmes. Acredito que grande parte dos problemas do mundo vem da naturalização da violência e da interdição extrema ao sexo e tudo ao redor dele.
É um filme também sobre cinema. Este foi uma forma da protagonista lidar com as dificuldades e então há aquela encenação com referência direta a Ozu…
O filme é uma homenagem a todas as pessoas que se salvaram através da arte, que puderem resistir um pouco mais à crueza da realidade devido a capacidade de sonhar aprendida no cinema ou em qualquer outro tipo de expressão artística.
Conseguiu construir uma narrativa dinâmica baseada num único personagem e um único cenário. Utilizou recursos simples, como o “zoom” e uma montagem com planos de diferentes ângulos. Como foi essa construção?
Essa construção veio, a princípio, do facto do filme ser, ou querer ser, uma homenagem a Portrait of Jason, de Shirley Clarke. Interessava-me muito fazer um filme emulando outro, especialmente em se tratando de documentário. Sinto que a referência é muito bem vista dentro da ficção, mas que o documentário, por supostamente tratar do "real", não permite tanto a referência. Afinal, como uma obra que supostamente mostra a realidade pode emular outra que também supostamente faz o mesmo?
Pensei que usar o mesmo dispositivo que outro trabalho, que é uma grande referência no mundo do cinema documental, pudesse embaralhar ainda mais as nuances entre ficção e documental, trazendo para a própria forma do filme o questionamento sobre ele. Faço filmes para que sejam postos em dúvida, por isso a maioria deles joga com a encenação, com a verossimilhança, com a dubiedade. Para mim, ésuper importante que o espectador duvide dele, pois duvidar do filme é duvidar da vida.
Milford Graves, baterista que começou a sua carreira nos anos 60 e é considerado um dos inventores do “free jazz”, está mais conectado ao mundo dos vivos. Se na história ele é considerado o homem que libertou a batida dos tempos definidos, ele aqui conta como estas alterações estão impregnadas de uma base filosófica e experimental.
Jake Meginsky e Neil Young viram estrear em Roterdão essa obra que, de toda a secção IndieMusic, é das que mais tentam fazer jus, em termos de linguagem cinematográfica, a um homem que conjuga em si a rebelião com a forma. O filme desenrola-se entre iconografia sugestiva (máscaras e estátuas, africanas ou pré-Clássicas), passagens em preto-e-branco, cortes abruptos, uso do "split screen", performances a solo e um repouso no jardim onde Graves aparece pela primeira vez manifestando as suas filosofias.
"Milford Graves Full Mantis" exprime ainda, com longas filmagens amadoras feitas durante acontecimentos remotos, os seus conceitos inventando uma nova forma de artes marciais ou tentando atingir a emoção de crianças autistas no Japão com uma performance visceral.
Uma descoberta que o deixa particularmente satisfeito é o álbum “Heart Recordings”, onde um médico gravou os batimentos do coração. Graves fez os seus próprios: há de ser um dos primeiros momentos musicais saídos de uma experiência com um eletrocardiograma. Isso para estipular que se os batimentos do coração não são ordenados, porque é que a percussão haveria de ser?
Depois dos médicos de "A Rapariga Santa", os filmes sobre as pessoas "comuns" de Lucrecia Martel agora escolhem uma dentista, Verónica (María Onetto) como protagonista. Nas suas classes médias, pequenos dramas podem esconder grandes tragédias, bem como um estatuto social fossilizado. Neste caso, a sua heroína conduz por uma pequena estrada interior sem movimento. Quando vai atender o telemóvel sente que o carro choca com algo que ela não distingue. Pelo espelho retrovisor vê um cão morto; mas no vidro do carro estão marcas de pequenas mãos humanas.
Num filme de Martel essa premissa de “thriller” certamente não significa que haverá uma narrativa linear e algo semelhante ao que já se encontra às dúzias no cinema comercial. Mesmo assim, esse fio condutor serve para levar o filme – que, no entanto, enriquece noutra perspetiva.
O início é representativo: no momento do acidente, a câmara não larga Verónica. Não há planos gerais para situá-la num espaço abrangente nem tampouco um olhar subjetivo. O que ela vê permanece fora de campo, mas "como" ela vê é o que interessa. Pois este é o início de um processo de desintegração mental e simbólica. Em sintonia com o título do filme, a protagonista vai entrando num estado de desfragmentação da identidade e os outros vão quase impercetivelmente tomando as decisões por ela. Ao mesmo tempo, a perceção do mundo exterior vai sendo alterada – ao ponto de não saber se o que eventualmente viu ou viveu realmente aconteceu (conforme sugerido no último terço).
A situação também evolui ao ponto de ela ter dificuldade em reconhecer-se: enquanto todos parecem notar o mau estado do seu cabelo (uma metáfora recorrente nos filmes da realizadora), ela tenta uma transformação e um rejuvenescimento quando aparece com ele colorido e com novo penteado.
No todo a alteração é para pior: Martel retoma pressupostos de "O Pântano" e com os seus signos de fossilização (há uma cena brutal com um animal morto na cozinha) ligados também à questão social resume o tema num diálogo sugestivo. Quando Verónica vai visitar uma tia com Alzheimer e a sua casa infestada de "mortos" – espíritos que por lá "transitam", esta última diz: “Se vocês os ignorar, eles vão embora. Eu preferia a modernidade. Aqui você move-se e tudo à volta guincha".