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Convidados internacionais debatem Cinema e Arquivo na Cinemateca

por Roni Nunes, Quarta-feira, 18.04.18

Artigo originalmente postado no Sapo.

Por Roni Nunes

 

Cinemateca recebe evento internacional sobre relações entre cinema e arquivo
 

Muitos convidados, entre cineastas, investigadores, programadores e arquivistas, vão estar presentes no Laboratório “O que é o Arquivo?”, que decorre entre os dias 18 e 20 de abril, sempre a partir das 18h, na Cinemateca Portuguesa.

 

O evento é dedicado ao tema das relações entre cinema e arquivo. Conforme explicou ao SAPO Mag uma das programadoras, Susana Nascimento Duarte, "o ponto de partida deste Laboratório são as relações entre o cinema e o arquivo face à nossa experiência contemporânea das imagens. Na época das técnicas de reprodução digital, o arquivo deixa de ser um espaço restrito e separado de preservação da memória para se tornar uma realidade fluída em devir permanente a que todos podemos aceder, para depositar e partilhar materiais, mas também para os produzir e recompor".

 

Na base do debate está a enorme evolução tecnológico ocorrida nos últimos anos, que condicionou de diversas formas a preservação da memória e a sua utilização.

 

"Estamos perante um grande arquivo digital, potencialmente infinito, que se estende a todas as esferas da vida, onde os gestos de apropriação e reelaboração de materiais e imagens ‘em segunda mão’ se tornaram banais. Quais os efeitos desta nova paisagem digital no cinema e no seu próprio arquivo? Que novas formas críticas e criativas pode tomar o cinema no contexto da cultura e do arquivo digital contemporâneos?", questiona.

 

Para debater estas e outras questões são propostas três mesas de trabalho, em três dias consecutivos, orientadas segundo temas como apropriação, arqueologia e programação.

 

O conjunto dos eventos inclui o visionamento de filmes, seguido de intervenções dos participantes. Entre outros estarão presentes nomes como os de Jonathan Beller, Christa Blümlinger, Susana de Sousa Dias, Jürgen Bock, Manuel Mozos e Nuno Lisboa.

 

Já entre os filmes estão obras como "Perfect Film", de Ken Jacobs (1986), "A Movie", de Bruce Conner (1958), uma versão de "YouTube Trilogy", de James Benning (2010), "Arbeiter verlassen die Fabrik", de Harun Farocki (1995), "The Pixelated Revolution", de Rabih Mroué (2012, imagem em baixo), "Journal No. 1 - An Artist’s Impression", de Hito Steyerl (2007), "Found, Found, Found", de Dirk de Bruyn (2014), "Black Code/Code Noir", de Louis Henderson (2015) e "Pieces and Love all to Hell", de Dominic Gagnon (2011).

 

A entrada para as sessões de filmes, palestras e debates é gratuita – com exceção da sessão de hoje às 21h30. Todos os eventos têm tradução em língua portuguesa e o programa completo pode ser consultado em arquivomunicipal.cm-lisboa-pt. O evento resulta de uma parceria entre a Câmara Municipal de Lisboa, Arquivo Municipal de Lisboa, Videoteca e a Cinemateca.

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por Roni Nunes às 18:43

Plataforma Filmin faz retrospetiva dedicada a Roberto Rossellini

por Roni Nunes, Quinta-feira, 12.04.18

rome.jpg

 

 Por ocasião da 11ª Festa do Cinema Italiano, e em colaboração com o projeto ICON - Independent Cinema Online da Europa Criativa, Filmin acolhe uma retrospetiva do mestre do Neo-Realismo Italiano, Roberto Rossellini.

 

São dez títulos, alguns dos quais inéditos em Portugal que estão disponíveis a partir de hoje para todos os subscritores de Filmin sem custos adicionais, assim como via aluguer individual para os não subscritores a 2,95€ por filme. 

Os filmes da retrospetiva são:

Roma, Cidade Aberta (1945)


 

Enquanto Roma é ocupada pelos Nazis, cruzam-se histórias de vida. Entre as personagens, encontram-se Pina, Francesco e Manfredi, líder do movimento da resistência romana. O padre Pietro ajuda a resistência, transmitindo as suas mensagens e auxiliando o movimento financeiramente. A Gestapo captura o padre e interroga-o, tentando convencê-lo a trair a sua causa. Roma, Cidade Aberta é considerado um exemplo fulcral do Neo-realismo, formando juntamente com Libertação e Alemanha, Ano Zero a chamada “Trilogia Neo-Realista”.

Libertação (1946)


 

Libertação é segundo filme da “Trilogia Neo-Realista” de Rossellini. Dividido em seis episódios, o filme tem lugar durante a Segunda Guerra Mundial. No primeiro episódio, uma rapariga siciliana trava amizade com um soldado americano. No segundo, um napolitano rouba as botas a um soldado americano. No episódio seguinte, uma prostituta de Roma encontra um soldado que tinha conhecido no dia da Libertação e no quarto episódio uma enfermeira inglesa deambula por Florença à procura de um amor antigo. Um judeu e um protestante passam a noite num mosteiro no quinto episódio e no último episódio as tropas americanas são vítimas da ferocidade dos Nazis.



Alemanha Ano Zero (1948)


 

O filme segue Edmund, um rapaz que vive na cidade de Berlim, destruída pela Segunda Guerra Mundial. Para ajudar a sua família, Edmund tem que pensar em várias formas de arranjar comida e sobreviver. Um dia, encontra um antigo professor e Edmund espera que ele o ajude de alguma forma. Porém, não é isso que acontece.



O Amor (1948)


 

O filme é composto por dois segmentos. O primeiro, “Una voce umana”, é inspirado na obra “La voix humaine” de Cocteau e mostra uma chamada telefónica de uma mulher abandonada pelo seu amante. O segundo segmento, “Il Miracolo”, conta a história de uma agricultora, seduzida por um estranho. Quando engravida, a mulher acredita que foi graças ao poder do Espírito Santo.



Stromboli (1950)


 

Karen é uma refugiada. De modo a poder ficar em Itália, ela casa-se com um marinheiro da ilha de Stromboli, na Sicília. Rapidamente, o facto de ambos terem mentalidades diferentes cria conflitos entre o casal. Odiada pelos habitantes da ilha e praticamente ignorada pelo marido, Karen procura forças para sobreviver nesse contexto. Este é o filme que marca a primeira colaboração entre Rossellini e Ingrid Bergman.



A Máquina de Matar Pessoas Más (1952)


 

Graças ao que pensava ser uma revelação do seu santo protector, o fotógrafo Celestino Esposito descobre que a sua câmara tem um poder especial: um simples clique pode fazer desaparecer os homens maus. Mais tarde, descobre que isso não acontecia devido ao poder do santo mas sim ao próprio Diabo.

O Medo (1954)


 

Irene Wagner, mulher do professor e cientista Albert Wagner, tem mantido um caso amoroso com Erich Baumann, longe do conhecimento do marido. No entanto, Irene é surpreendida quando Johann Schultze, a ex-namorada de Erich, descobre o caso e começa a chantageá-la.

Viagem em Itália (1954)


 

Os Joyce são um casal inglês interpretado por Ingrid Bergman e George Sanders que viaja para Itália com o objectivo de ver uma propriedade perto de Nápoles, recentemente herdada. Rossellini transforma a história de um casal aborrecido a viajar por Itália numa história sobre crueldade e cinismo, à medida que o casamento destas duas personagens se desintegra.

India, Terra Mãe (1959)

 

 

"India Matri Bhumi" foi a obra que marcou a rutura de Rossellini com o cinema narrativo tradicional, sendo o filme percursor dos seus futuros trabalhos para a televisão. O filme procura mostrar "outros modos de vida e de pensamento", perscrutando as castas e as religiões que formam o povo indiano, mas interrogando-as sempre em relação com a natureza e com a dimensão espiritual subjacente. Destaque-se a fórmula lapidar com que, à época, Godard afirmou a sua importância: "India engloba o cinema mundial, tal como as teorias de Riemann e Planck englobam a geometria e a física clássicas". A invenção de um cinema "total". Já Truffaut, defendeu "India Matri Bhumi" como "um poema livre, fora do tempo e do espaço".


A Força da Razão (1971)


 

Maio, 1971. Roberto Rossellini entrevista Salvador Allende poucos meses antes das eleições que o elegeram Presidente do Chile, onde apresenta o programa de governo à opinião pública mundial, aproveitando da notoriedade do entrevistador e onde demonstra consciência dos riscos que sabe que está a correr também como ser humano, tendo em contra forças reacionárias firmes em fazer de tudo para impedir que realize os seus planos. Esta entrevista foi transmitida na televisão italiana RAI pouco depois do assassínio do Presidente Allende. 




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por Roni Nunes às 20:02

Família, política, Sérvia: o vencedor da iniciativa Scope 100

por Roni Nunes, Quinta-feira, 12.04.18

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Os 100 cinéfilos portugueses que foram seleccionados para participar na segunda edição da iniciativa SCOPE 100 em Portugal, e que tiveram a oportunidade de ver e avaliar 5 filmes europeus, elegeram The Other Side of Everything (Druga Strana Svega) de Mila Turajlic como o grande vencedor.

 

The Other Side of Everything (Druga Strana Svega) é um filme onde, através da porta trancada do apartamento da sua mãe em Belgrado, a realizadora sérvia Mila Turajlic nos revela a história da sua própria família e a tumultuosa herança política do seu país.

 

Um dos documentários europeus mais aclamados de 2017, o filme esteve na selecção oficial do Festival de Cinema de Toronto e foi o vencedor do grande prémio do IDFA (International Documentary Film Festival Amsterdam), considerado um dos maiores e mais conceituados certames de cinema documental do mundo.

 

A CinemaBOLD irá agora trabalhar em conjunto com a comunidade de cinéfilos que participaram na escolha deste filme de forma a preparar a sua estreia em Portugal. A SCOPE 100 é uma iniciativa de âmbito Europeu apoiada pelo programa Europa Criativa da União Europeia e foi desenvolvida pela FESTIVAL SCOPE (França) e a GUTEK FILM (Polónia), em colaboração com as distribuidoras AEROFILMS (República Checa), ARTHAUS (Noruega), CINEFIL CO (Hungria), FOLKETS BIO (Suécia), KINO PASAKA (Lituânia), POTEMKINE (França), e em Portugal a ALAMBIQUE/Cinema BOLD.

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por Roni Nunes às 19:52

Nova geração da crítica portuguesa diz que "o cinema não morreu"

por Roni Nunes, Sexta-feira, 26.01.18

Artigo originalmente postado no Sapo.

 

Uma das plataformas “online” mais representativas da atual crítica portuguesa, À Pala de Walsh, acaba de lançar um livro – reunindo material de cinco anos de reflexões sobre a 7ª arte. Justamente, intitula-se “O Cinema não Morreu”.

 

A frase já foi muitas vezes proferidas por Jean-Luc Godard, ícone inspirador confesso do grupo; pode ter-se esvaído de significado real, mas não de evocar um caráter de “tragédia iminente”.

 

O livro é lançado pela Linha de Sombra, também sede da livraria que opera nas instalações da Cinemateca Portuguesa e onde a obra pode ser adquirida. No Porto, está à venda na livraria Flâneur.

 

Na entrevista, preferem esconder no anonimato as contribuições individuais: Carlos Natálio, Luís Mendonça e Ricardo Vieira Lisboa assinam coletivamente tudo que o fica dito a seguir…

 

Qual a razão para o livro se chamar "O Cinema não Morreu"?

  

Jean-Luc Godard, que é, de certo modo, uma figura totémica para qualquer crítico de cinema e, em particular, para muitos de nós ,“walshianos”, já declarou várias vezes a morte do cinema – na verdade em tantas ocasiões que a expressão já se transformou numa “blague” sem grande peso funerário.

 

Ainda assim, quisemos que a nossa primeira publicação em formato de livro celebrasse o cinema na sua vivacidade histórica, mas especialmente contemporânea, já que “O Cinema Não Morreu” é também o título do capítulo do livro dedicado à produção cinematográfica mundial dos últimos cinco anos.

 

Isto porque o cinema continua a ser a arte que nos emociona, que nos instiga a escrever, que nos transporta e nos eleva. Nessa medida, ele hoje está muitíssimo vivo – pelo menos em cada um de nós, os espectadores – e tanto maior quanto a disponibilidade de quem assiste e quer redescobri-lo na sua máxima vibração.

 

No entanto, o livro não se chama “O Cinema Vive” nem “Viva o Cinema”. Há um não no título, como que se prognosticasse uma qualquer doença. "O Cinema Não Morreu", mas pode estar em vias de... – há um “ainda” que se anuncia. Nesse caso, cada um de nós, que escreve sobre filmes e que os vê num regime ora compulsivo, ora compulsório, seremos os cantores alegres da sua morte. Quando o cinema morrer diremos “paz à sua alma”, mas enquanto isso não acontece, celebre-se a sua vida!

 

 

Queria que falassem um bocado sobre como surgiu "À Pala de Walsh", como é que decidiram fazer um "site" e o motivo para este nome.

 

No início do ano de 2012, o João Lameira, que tinha um blogue chamado “Na Paragem do 28”, entrou em contacto com o Carlos Natálio e com o Luís Mendonça com a ideia de criar um “site” de cinema que congregasse um pouco as iniciativas que cada um mantinha nos seus espaços individuais. Todos nós já escrevíamos sobre cinema com regularidade, mas cada um no seu canto, com o seu público.

 

O propósito inicial foi o de criar um “site” com produção de conteúdo que, ao mesmo tempo que ia beber algumas das características da comunicação social dita institucional, tentava aproveitar a liberdade existente no digital. Isto até porque à data existiam muito poucos “sites” de cinema em Portugal e os que existiam tinham esta obsessão pelo cinema “mainstream” norte-americano. Nós queríamos ser um pouco mais ambiciosos e trabalhar no legado de grandes mestres do pensamento crítico sobre cinema, como era o caso de Serge Daney, Manny Farber, Bénard da Costa, entre outros.

 

A equipa, à qual se juntou o nosso benjamim, o Ricardo Vieira Lisboa, começou a reunir-se para delinear o que seria esse “site”: que rubricas teria, com que frequência publicaríamos textos, quem faria o quê, como organizaríamos a edição, o seu estilo formal, o que é que queríamos fazer e o que é que não queríamos que acontecesse. Discutimos muito, tínhamos planos megalómanos, pensávamos muito em poder viver um dia disto, da crítica. Hoje ainda pensamos nisso, mas menos…

 

Então chegamos finalmente ao nome do espaço. Depois de muitas hipóteses absurdas ficámos com “À pala de Walsh”, que é um trocadilho entre a expressão "à pala", como algo que é feito sem receber dinheiro, gratuitamente – como é o caso deste projeto –, e a pala que tapava um dos olhos cegos de um dos cineastas que todos gostávamos muito, o norte-americano Raoul Walsh.

 

Interessa ainda salientar que, ao longo destes quase cinco anos, o projeto se metamorfoseou um pouco desde a sua ideia original. O que foi pensado por ser algo com uma equipa mais ou menos fechada com rubricas muito estanques, que pudesse ser facilmente designada como uma redação digital de um órgão de comunicação social exclusivamente dedicado ao cinema, foi sendo transformado numa grande comunidade cinéfila digital.

 

Essa coletividade congrega hoje muitas vozes, formações, registos de escrita e pensamento que se unem em torno deste desejo de não deixar que as imagens que passam pelos nossos olhos, de lá saem sem um “feedback” qualquer, um retorno reflexivo. Hoje o "À pala de Walsh" é um pouco isso: um grande filme sobre cinema, a muitas mãos e, sobretudo, a muitos olhares.

 

 

Qual a expectativa em relação ao livro?

 

A primeira expectativa passa por fazer chegar a voz - ou o olhar - de uma nova geração de críticos ao maior número possível de leitores. Com isso, queremos que a crítica “online” possa ganhar uma outra dignidade. Quando dizemos "leitores" também falamos de colaboradores e mesmo de nós, cofundadores e coeditores.

 

Podemos dizer que este livro ajudou-nos a ter uma noção mais clara do trabalho que temos desenvolvido nos últimos cinco anos. Perspetivamos, por isso, um livro que permita dar a ler de outro modo o “site” aos leitores, editores e colaboradores por igual. Portanto, esperamos que “O Cinema Não Morreu” torne o "À pala de Walsh" ainda melhor, mais exigente, consigo e com os filmes.

 

A outra expectativa passa pelo estímulo à reflexão sobre a importância da crítica e, é bom frisar, da crítica livre, implicada e criadora. A maioria de nós trabalha nesse espaço intermédio entre a investigação e a criação artística. É fundamental entender o exercício crítico como ato de criação e vice-versa.

 

Ocorre-nos, nesse sentido, o caso de Godard, que nunca distinguiu o seu período de crítico do seu período de realizador. Ele chegou mesmo a considerar uma entrevista que fez a [Michelangelo] Antonioni, na sequência de “O Deserto Vermelho” [1964], como um filme entre filmes. Isto numa altura em que Godard já era um notabilíssimo realizador e havia aparentemente abandonado o ofício da crítica – o ofício talvez, mas a função crítica nunca abandonou de facto. Também para ele as imagens são - e parafraseamos – “complementos de ideias”.

 

Neste livro de uma imagem apenas - a fotografia magnífica da autoria da nossa fotógrafa, a Mariana Castro, que serve de separador dentro do livro – procuramos que as ideias se tornem eloquentes "complementos das imagens" para o leitor.

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por Roni Nunes às 22:06

Guillermo del Toro e a defesa da arte de contar histórias

por Roni Nunes, Sábado, 13.01.18

Meu primeiro "post" de 2018 não é uma entrevista minha, mas trechos de uma belíssima feita pela jornalista Carmen Cocina para o "El País" (link abaixo) com Guillelmo del Toro.

 

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O mexicano, presença provável nos Oscars 2018, acaba de receber o Globo de Ouro na categoria e fala sobre o filme "A Forma da Água", que estreia em Portugal e no Brasil a 1 de fevereiro. O enredo narra a história da relação entre uma empregada doméstica e um anfíbio humanóide fruto de uma experiência de um laboratório americano no contexto da Guerra Fria.

 

Uma das coisas mais agradáveis da conversa é perceber o conhecimento e a clarividència do cineasta não só em termos de História do Fantástico como da situação atual. No primeiro caso, destaquei alguns trechos que salientam a defesa do cinema de género e da arte de contar histórias contra o fetichismo estilístico de parte da crítica profissional. O filme alcança para o cinema fantástico um prémio pouco habitual - o Leão de Ouro no Festival de Veneza.

 

O restante da entrevista, de resto imperdível no que concerne à sua análise da sociedade e da política atual, pode ser conferida integralmente no "link" abaixo:

(https://brasil.elpais.com/brasil/2018/01/02/cultura/1514913445_655632.html?%3Fid_externo_rsoc=FB_BR_CM)

 

"O gênero nos deu algumas das imagens primigênias e primordiais do cinema: Nosferatu, o Frankenstein de James Whale, Lon Chaney... O cinema nasce com duas vocações: a da crônica, encarnada pelos Lumière, e a de fábula, por Méliès. Inevitavelmente, ambas se combinam. Tolkine expressou uma máxima preciosa em seu ensaio Sobre Contos de Fadas: 'É preciso fazer o mundo suficientemente reconhecível para nos ancorar em uma realidade e suficientemente mágico para nos transportar para fora dela'.

 

"O género de terror apresenta desde suas origens uma cisão: a visão pró-estrutura, em que o monstro, o outro, se apresenta como um agente do além que causa medo, e a visão pró-anarquia, em que é um mensageiro que desperta empatia, nos conectando a uma realidade terrenal. Existem filmes xenófobos, onde se teme o que vem de fora, e existem filmes integradores, em que o monstro é o mais humano do elenco. Ninguém torce pelos aviões em "King Kong", todo mundo aposta no gorila. Acho que essa segunda opção se encaixa melhor com minha forma de entender o mundo".

 

(Sobre a influência de "O Monstro da Lagoa Negra"):

"Começou quando eu tinha seis anos. Vi na televisão, essa criatura nadando por baixo de Julie Adams e seu maiô branco. Eu me apaixonei pelos dois e pela ideia desse amor: queria que acabassem juntos, coisa que não aconteceu. De modo que ficou gravada em minha cabeça a ideia de corrigir esse erro cinematográfico [risos]"

 

 

 

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por Roni Nunes às 15:11

"Há Quem as Prefira de Véu": Filme satiriza Islão, iranianos, franceses e a esquerda

por Roni Nunes, Domingo, 31.12.17

Artigo originalmente postado no SAPO. 

 

POR RONI NUNES

 

Uma das estreias da semana nas salas portuguesas usa o caldeirão efervescente da sociedade francesa para rir de toda a gente.
 
 

Se a sociedade francesa é um caldeirão efervescente, a realizadora estreante Sou Abadi resolveu juntar todas as peças e rir de toda a gente. Não o chega a fazer de forma temerária: a comédia "Há Quem as Prefira de Véu", que chega esta semana às salas de cinema portuguesas, termina por ser mais agridoce do que sarcástica. Mas há tiros suficientes para todos os lados.

 

Leila (vivida por Camélia Jordana, uma famosa cantora de música “pop” em França) é uma descendente de árabes liberal à moda ocidental. O namorado Armand (Félix Moati) é francês e são ambos universitários.

 

O conflito: a órfã Leila recebe a visita do irmão mais velho Mahmoud (William Lebghill), vindo de um campo fundamentalista do Iémen e devidamente convertido. Este está em modo patriarcal: agora é ele que manda. Namorado francês, nem pensar. Nem que, para isso, tenha que enclausurar a irmã em casa e Armand, para vê-la, tenha que lá chegar escondido numa burka e a fazer-se passar por mulher. Resulta até demasiado...

 

O título original (“Cherchez la Femme”) remete para uma velha fórmula dos policiais: se um investigador quer descobrir a origem de um crime, procure primeiro por uma mulher. Há sempre uma na raiz do problema. Já o título internacional inglês (“Some Like it Veiled”) faz menção a outro aspeto do filme – a relação com o clássico de Billy Wilder “Some Like it Hot” (em Portugal “Quanto mais Quente Melhor”) – com as suas confusões, reviravoltas e um homem disfarçado de mulher.

 

As personagens e seus desmazelos são devidamente exageradas: Mahmoud chega a perseguir a irmã com um machado, enquanto a mãe de Armand (Anna Alvaro), herdeira das moribundas ideologias revolucionárias, posa seminua para a “causa iraniana” (seja o que isso for). Assim, com traço grosso, dá para ironizar os absurdos do Islão e os caminhos inconsequentes de um ideal de esquerda moribundo.

 

Atualmente a França vive uma crise de identidade, com os seus milhões de descendentes vindos do mundo árabe, uma extrema-direita muito ativa e, pelo meio, uma classe média numa desorientação total de princípios. Sou Abadi juntou tudo isso em "Há Quem as Prefira de Véu" para chegar a algumas piadas hilariantes.

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por Roni Nunes às 00:49

10 Filmes a não perder na Mostra de Cinema Ibero-Americano

por Roni Nunes, Terça-feira, 05.12.17

Artigo postado em SAPO Mag.

 

Roni Nunes

 

A Mostra de Cinemas Ibero-Americanos – No Escurinho do Cinema decorre entre 4 e 16 de dezembro no cinema São Jorge, em Lisboa. O evento junta 41 filmes e o SAPO Mag falou com um dos programadores, Carlos Nogueira, para destacar 10 que são imperdíveis.
 
 

Conjugando filmes de género e cinema de autor, a Mostra de Cinemas Ibero-Americanos – No Escurinho do Cinema exibirá 41 projetos ibero-americanos entre 4 e 16 de dezembro no cinema São Jorge, em Lisboa. O evento vem da parceria entre a Casa da América Latina, organizadora de uma mostra anual dedicado ao cinema ibero-americano, e a Câmara de Lisboa, que integrou o certame nas comemorações da Lisboa Capital Ibero-Americana da Cultura.

 

Para além de projetos francamente acessíveis, como o uruguaio “El Candidato”, sátira sobre o mundo da política, o evento faz quase um inventário dos grandes festivais internacionais direcionados ao cinema de autor – com predominância de títulos estreados em Berlim, San Sebastián, Sundance, Roterdão e Cannes.

 

O SAPO Mag conversou com um dos programadores da Mostra, Carlos Nogueira, sobre a organização especial desta edição pelo facto do certame se incorporar ao evento Lisboa Capital Ibero-Americana da Cultura.

 

Conforme salienta o programador, existem pelo menos duas excelentes razões para os espectadores em busca de diversidade: “O cinema ibero-americano está a atravessar uma excelente fase e, além disto, raramente estreiam nas salas portuguesas”, diz.

 

A projeção internacional vem do início do século XXI.

“No caso argentino vem desde Lucrecia Martel e Lizandro Alonso. Logo a seguir vieram os uruguaios, com filmes como 'Whisky', seguido pelos mexicanos e nomes como os de Carlos Reygadas e Amat Escalante e, certamente, os chilenos.  Eles pareciam surgidos do nada e vinham acompanhados por muitos outros, revelando um viveiro de criatividade, que ainda se mantém”, afirma Nogueira.

 

O enorme currículo internacional dos títulos escolhidos, a maioria saídos dos grandes festivais internacionais de cinema, parece marcar o festival com o selo do cinema de autor, mas não é bem assim: “Existe também cinema de género. Quisemos agradar todo o tipo de público e fornecemos informações para que as pessoas escolham o estilo que mais lhe agrada. Mas há, certamente, um gosto pelo cinema mais experimental e o desejo de destacar as cinematografias independentes dos países”.

 

Quanto ao título, obviamente extraído de um célebre “standard pop” de Rita Lee, o programador explica que ele parte da busca de um título mais atrativo para o público. “Certamente é uma referência lúdica, pois se atentarmos à poesia da canção tudo o que ela diz é para sair fora do cinema, faz-se de tudo, menos ver o filme!”, brinca.

 

UM VISLUMBRE SOBRE A PROGRAMAÇÃO COM 10 FILMES A NÃO PERDER:

 

AQUÍ NO HA PASADO NADA

 

Com uma carreira internacional iniciada em Sundance e Berlim, a obra compõem uma trilogia do realizador chileno Alejandro Fernandez Almendras sobre a Justiça. O primeiro, “Matar un Hombre”, foi eleito o Melhor Filme do IndieLisboa em 2015. Segundo Nogueira, o filme foi escolhido para sessão de abertura da Mostra por ser ao mesmo tempo acessível e intenso. Foi inspirado no caso Larraín, um mediático acontecimento no Chile em 2013 e que envolveu o filho de um senador. Em última análise, serve para debater o papel da Justiça no universo dos poderosos, que raramente se veem tentados a obedecer a lei.

 

LA FAMÍLIA

 

Estreado na Semana da Crítica, no Festival de Cannes, é uma obra venezuelana sobre a relação entre pai e filho. Eles estão em fuga após o segundo ter morto outro jovem. Como pano de fundo nesta obra de estreia de Gustavo Rondón Córdova, está o quotidiano de um país marcado pela violência.

 

VERÃO SATURNO

 

A participação portuguesa no evento ao lado da coprodução com o Brasil em “Joaquim”. A curta-metragem de Mónica Lima compõe uma sessão com “La Família” e foi revelado na programação dos curtas de Vila do Conde. Segundo o curador foi uma grata surpresa, mostrando um drama urbano sobre um músico de 35 anos prestes a desistir da carreira. Tem participação de Joana de Verona.

 

IXCANUL

 

“Vulcão” na linguagem indígena, trata-se de um surpreendente filme saída da Guatemala para o cirtuito de festivais internacionais a partir de Berlim, 2015. Conforme Nogueira, o título da obra refere-se às dificuldades de uma comunidade nos confins mantanhosos do país que sonha com uma vida melhor para lá dos vulcão – por outras palavras, o “eldorado” da terra do Tio Sam.

 

LA LUZ INCIDENTE

 

Obra argentina que o programador considera das mais acessíveis da Mostra ao grande público. Trata-se de um drama sobre uma mulher que, após a morte do marido, perde a vontade de viver. Conhece, no entanto, outro homem – ao mesmo tempo que tenta reconstruir a famíia.

 

LA RECONQUISTA

 

O representante espanhol será outro dos projetos mais palatáveis. Realizado por Jonás Truebe, parte de uma premissa romântica: com 15 anos dois adolescentes vivem um romance. Encontram-se 15 anos depois, em Madrid, e tem a hipótese de reviver aqueles momentos.

 

EL INVIERNO

 

Carlos Nogueira refere-se a este “belíssimo” filme de estreia de Emiliano Torres com mais um daqueles que investe na desconstrução dos géneros clássicos – neste caso estabelecendo uma espécie de “western” em plena Patagónia. O enredo trata de um conflito entre um velho e um jovem capataz numa quinta, onde surgem velhos temas do “western”, como a passagem do tempo e a substituição da velha geração e os seus valores pela novidade.

 

EL CANDIDATO

 

Representante uruguaio, exibindo uma sátira mordaz ao universo da política ao retratar a vida de um candidato nas eleições para o presidente do país. Com uma visão muito realista, mostra os bastidores da campanha, com uma equipa de “marketing” a construir uma personagem de ficção que nada tem a ver com qualquer ideologia. Com grande sentido de humor, o filme faz um retrato cáustico da hipocrisia na política. O realizador Daniel Heller é um dos mais famosos atores do Uruguai e colaborador frequente do cineasta argentino Daniel Burmán.

 

JOAQUIM

 

Promete o seu “quê” de polémica essa abordagem histórica de Marcelo Gomes, um dos talentos do cinema brasileiro do século XXI, sobre Tiradentes. Trata-se da revisita a um dos mitos históricos do país ao tornar-se símbolo de um dos mais icónicos movimentos da colónia contra a Metrópole portuguesa no século XVIII. Tem coprodução da Ukbar e participação de Nuno Lopes, entre outros atores portugueses. “É uma excelente oportunidade para conhecermos um pouco mais da história portuguesa no além-mar”, diz Nogueira.

 

LA DEFENSA DEL DRAGÓN

 

Escolhido para a Sessão de Encerramento, o projeto colombiano estreou na Quinzena dos Realizadores, no Festival de Cannes. O enredo gira em torno de três velhos amigos que perambulam pelo centro de Bogotá. Um acontecimento os obrigará a sair de sua rotina de negação dos seus falhanços. A realizadora Natalia Santa inspirou-se num clube de xadrez existente na cidade, onde também se confrontam a modernidade e a recusa em aderir a ela.

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por Roni Nunes às 20:01

"Táxi Sófia" e outras geografias: mosaico da nova Bulgária nas salas portuguesas

por Roni Nunes, Domingo, 03.12.17

Artigo postado em SAPO Mag.

 

"Táxi Sófia" é um raro exemplar do cinema do Leste europeu a chegar ao circuito comercial português.
 
 

"Táxi Sófia" é um raro exemplar do cinema do Leste europeu a aportar no circuito comercial português. Estreado na secção A Certain Regard do Festival de Cannes, o filme traz um pouco da vida na capital da Bulgária num ritmo vertiginoso.

 

Trata-se de uma espécie de filme-mosaico e chega a lembrar o polaco “11 Minutos”, de Jerzy Skolimowsky. E que registo propõe Stephan Komandarev, cineasta já com um currículo internacional assinalável?

 

Estilisticamente, trata-se de enfatizar movimento e sufoco, apertando os ângulos dentro de carros, priorizando planos médios e valendo-se, em muitos momentos, de cortes rápidos. O resultado é isso: um Bulgária convulsa – cuja forma está ao serviço de retratar as situações que o demonstram.

 

Tudo se passa na vida dos motoristas de táxi da cidade. Eles conhecem gente capacitada desesperada para emigrar, para se suicidar, a viver na miséria; lidam com uma juventude sem rumo, vingam-se de algozes antigamente confortáveis sob o comunismo e que agora dão lições sobre os “valores europeus”. A ligar um pouco isto tudo está um taxista desesperado que assassinou um banqueiro.

 

 

O tema não é espantoso: os filmes do Leste europeu que têm chegado ao Ocidente, vindos de países como Roménia, Polónia, Rússia, não variam ao mostrar uma espécie de mistura indigesta entre as ruínas do velho mundo comunista e a selvajaria capitalista, sob a sua vertente dominante no momento – a neoliberal. O que liga estes universos é a corrupção.

 

Neste momento, o realizador termina um documentário no qual realiza um episódio ao lado de quatro outros cineastas de diferentes países do Leste europeu. Cada filme terá em torno de 30 minutos e representa as diferentes visões de cada um sobre um episódio fulcral da era comunista e das crenças no socialismo – o Maio de 68 na antiga Checoslováquia.

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por Roni Nunes às 12:40

Estreia em Portugal o filme vencedor da Palma de Ouro em Cannes

por Roni Nunes, Quinta-feira, 23.11.17

Publicado por Roni Nunes em SAPO Mag

 

O sueco “O Quadrado” já está nas salas e será dos filmes mais próximos de uma comédia a vencer o Festival de Cannes.
 
 

"O Quadrado" aterrou na Croisette em “tempo de compensação”: o muito metódico realizador Ruben Östlund levou uns consideráveis cinco meses para editá-lo e fez alterações até pouco antes do evento. Antes já lá iam 70 dias de filmagens – apenas um “take” por dia.

 

Foi muito estressante”, revelou após ganhar a Palma de Ouro. “Queria muito concorrer, queria muito ganhar. Quem diz que não se importa com prémios está a mentir!”, acrescentou o realizador, que já causara choque com "Força Maior", vencedor da secção "Un Certain Regard" de Cannes em 2014.

 

 

E do que trata uma obra com este estranho nome? A “story line” não é relevante: os desenlaces do quotidiano do diretor de um museu de arte contemporânea de Estocolmo (vivido por Bang Claes) estão ao serviço de uma ideia. Ou, se se preferir, várias delas – onde um mosaico reúne pequenos acontecimentos que estão sistematicamente a testar os limites da indiferença do Grande Museu Burguês em que se transformou a sociedade europeia e, por extensão, do espectador. A existir um grande tema a englobar tudo seria o dos publicitários do filme: “Até que ponto vai a sua indiferença?”.

 

Uma vítima corriqueira das sátiras pelo mundo fora é o universo das artes – principalmente o das instalações contemporâneas que tanta causam perplexidade na “audiência comum”, mais à vontade com as velhas formas do século XIX e daí para trás. O cineasta, que já expôs no mesmo circuito que critica, diz: “Visitei museus de arte em várias cidades e todos se parecem iguais. Perderam completamente a conexão com o mundo em que vivemos”.

 

Esse vazio transferiu o verdadeiro poder de choque para o “marketing” – ou não estivessem as duas áreas, desde sempre, andado em simbiose. Em "O Quadrado", o tema eclode de forma literalmente explosiva depois de uma equipa de promoção fazer um vídeo para a instituição – sempre segundo cálculos “científicos” para torná-lo viral no YouTube.

 

Como toda a proposta totalizante que se propõe fazer o “retrato de uma época”, o realizador corre os seus riscos mas têm menos hipótese de ser considerado pretensioso do que Paolo Sorrentino. A comparação não é vã: em alguns momentos o filme lembra uma versão "cómico-trash" de “A Grande Beleza”, com os planos fixos a substituir as gruas do italiano. Enquanto esse preferia a poesia, o sueco opta por destroçar todos os “statements”, os momentos de pretensão ou que cheirem a solenidade, com ruídos sonoros e interrupções bizarras. Os longos planos fixos servem para isso: dar ênfase ao discurso para depois sabotá-lo.

 

Já o velho surrealismo como forma de provocação é retirado das gavetas “buñuelianas” para chocar, incomodar, debochar. Num encontro romântico, marcado pela apatia sexual e pelo egocentrismo masculino, um chimpanzé passeia-se pelo local; observa desenhos, pinta os lábios. E, claro, há aquele momento pelo qual o filme será sempre lembrado se o resto for esquecido: o ser “primitivo” (Terry Notary) que irrompe para aterrorizar a fina nata da elite sueca num jantar. E de onde surgiu tal criatura (e o seu ator)? Do YouTube, claro!

 

Muito mais cabe dentro deste "quadrado" do que o descrito neste artigo: cabe ao espectador escolher o caminho da Confiança e testar os seus limites.

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por Roni Nunes às 19:55

Retrospetiva Abel Ferrara: travessia no inferno («Bad Lieutenant», 1992)

por Roni Nunes, Quinta-feira, 23.11.17
  • Publicado por  Roni Nunes em C7nema.

  

 

Certos elementos do universo de Ferrara unem-se para uma jornada apoteótica em busca de redenção. Em algum momento a falência de qualquer limite moral transforma-se numa busca desesperada de referências. Salvação rima com religião; mas a remissão através do espírito, a ser possível, só o é depois de uma longa travessia no inferno.

 

O “lieutenant” sem nome do título (Harvey Keitel) começa a sua trajetória com uma aposta: como se não tivesse nada a perder, arrisca nos jogos da final do campeonato de basebol. Não é que ele corra riscos sem utilizar uma base “científica”: “A série tem de durar sete jogos. Sabes quanto se gastou em publicidade, o dinheiro que ganham as televisões em anúncios, os patrocínios para os jogadores? Há muitos interesses nisto”. O espectador vai acompanhar as oscilações da sua sorte ao longo de todo o filme. Num enredo fragmentado como as ações do protagonista, será essa, eventualmente, a “storyline” detetável.

 

 

Além do jogo a quantias irresponsáveis há drogas – de todos os tipos, para fumar, para “snifar”, para injetar. Não há moralidade ou sentimentalismo mas antes um tipo de adição que se metamorfoseia num facto do quotidiano. Ele  droga-se porque sim. Com a autodestruição sabe ele lidar – aconselhado até por um traficante que o crack. pode matá-lo. Resposta óbvia: “Agora dás conselhos, é? Mas que raio de comerciante és tu?

 

Mas o “mau tenente” vai muito além dos limites da responsabilidade por si e pela sua família negligenciada. A apresentação das suas credenciais passa por extorsão (a dois assaltantes apanhados em flagrante), uma longa e deliberadamente repugnante sequência de assédio a duas adolescentes e roubo de drogas de um cadáver. Como faz Ferrara para manter no limite da simpatia do espectador um personagem execrável como este é quase um mistério.

 

 

Além dos dealers, junkies e homicidas do costume há freiras. Sempre existiram nos seus filmes, mas aqui passam de ícone metafórico para protagonistas – primeiro como a vítima da profanação suprema: a violação de uma delas (Frankie Thorn) dentro da igreja. Segundo o laudo médico, com lacerações acrescidas pelo uso de um crucifixo. Os diálogos são duros: um policial propõe uma recompensa de 50 mil dólares pela captura dos criminosos. O “lieutenant” fuzila: “Deixa isso para a Igreja Católica. Há violações todos os dias. Não há que pagar 50 mil dólares porque estas miúdas andam vestidas de pinguim”. E, certamente, “a igreja é uma máfia”. Curiosamente, quando a sua “sorte” parece começar a mudar ele diz que “não tem medo de nada porque foi abençoado. Sou a porra de um católico!”.

 

As religiões ocidentais (católicas, protestantes, calvinistas) tenderam sempre a massacrar o homem perante Deus. Ferrara propõe através de uma adicta (Zoe Lund, coautora do argumento), num momento filosófico à base de heroína, que humanos são como vampiros “obrigados a consumir-se até que não reste mais nada além do apetite”.

 

 

Por fim, o argumento troca as voltas ao protagonista e ao espectador após conceder-lhe um justificável desejo de vingança pelo que fizeram à freira. Ele diz-lhe: “Como consegue perdoar estes canalhas? Eles queimaram cigarros sobre si. Acorde para a realidade!”. Resposta: “Aqueles tristes e revoltados rapazes vieram ter comigo como os necessitados. E como a maioria dos necessitados, foram mal-educados. Como todos os necessitados, eles tiraram. Jesus transformou a água em vinho. Eu devo transformar o sémen amargo em esperma fértil. O ódio em amor. E, quem sabe, assim salvar as suas almas.

 

Estão concedidas ao mau tenente (e ao espectador…) todas as possibilidades para um renascimento – nem que seja enquanto mártir.

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por Roni Nunes às 19:48


Comentários recentes

  • Cleber Nunes

    Sem dúvida é um filme que me despertou interesse ...