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Iris Bry: atriz revelação de "As Guardiãs" fala do lado feminino da Primeira Guerra Mundial

por Roni Nunes, Sexta-feira, 08.06.18

Artigo originalmente postado no Sapo.

Por Roni Nunes

 

Iris Bry: atriz revelação de
 

Cada vez mais revisões históricas apelam para análises de aspetos tradicionalmente negligenciados pelos manuais de História e pelas abordagems artísticas em geral.

 

O realizador francês Xavier Beauvois (o mesmo do aclamado "Dos Homens e dos Deuses") propôs-se, em "As Guardiãs", que chegou às salas portuguesas, uma abordagem sobre um dos conflitos mais sangrentos de sempre, a Primeira Guerra Mundial (então conhecida como a Grande Guerra), pelo prisma não de quem foi para a frente de batalha, mas de quem ficou para trás: idosos, crianças e, principalmente, mulheres, a quem cabia assegurar o sustento, as duras lidas no campo e, pior que tudo, aguardar tempos intermináveis por notícias – que podiam ser as piores possíveis.

 

Estreado no último Festival de Toronto e a chegar esta semana às salas potuguesas, trata-se de uma proposta dramática cadenciada e equilibrada, visualmente construída ao pormenor (a fotografia é de Caroline Champetier), sobre a dura realidade dos tempos de guerra em geral, das mulheres em particular.

 

Um dos pilares dramáticos é a jovem atriz Iris Bry, que faz uma estreia de relevo e contracena à altura com veteranas como Nathalie Baye sem nunca antes ter pisado num “set” de filmagem. A sua personagem, Francine, mais do que o trabalho braçal executado de forma estoica na quinta, trará também desestabilização familiar.

 

Em Lisboa para antestreia, Iris Bry conversou com o SAPO Mag.

 

"As Guardiãs" é um filme sobre mulheres fortes que não têm muito tempo para lamentar as suas perdas ou dar atenção aos seus desejos. A sua personagem é um exemplo deste comportamento estoico.

 

 

É também um filme de mulheres que assumem um novo papel na sociedade francesa enquanto os homens estavam fora. A sua personagem tem um papel forte, nomeadamente quando diz que o filho terá o seu nome.

 

Sim, é muito importante. Naquela época havia muitas “filhas-mães”, mulheres que se encontravam sozinhas porque os maridos morriam e muitas famílias que se encontravam órfãs de pai, irmão, etc. Por isso é importante que ela lhe queira dar o seu nome e isso é absolutamente novo, uma vez que, até então, as mulheres tentavam dar um batismo aos seus filhos de forma a que não carregassem um nome “problemático”. No caso do filme é absolutamente excecional uma mulher que não só educa o seu filho sozinha, mas que, ainda mais, quer dar-lhe o seu nome, com tudo o que isso implica em termos de condição social.

 

Foi o seu primeiro projeto. Como foi a sua entrada?

 

Isso tudo foi bastante grandioso, porque nunca tinha postos os pés num “plateau” de cinema. Não sabia o que era, não conhecia a hierarquia do mundo do cinema.  Não sabia dizer o que, numa rodagem, faz o assistente de câmara, o editor… Não tinha noção nenhuma e de repente encontro-me numa “set” com um grande realizador e uma equipa de altíssimo nível, que incluía Caroline Champetier e Anaïs Romand – uma das maiores especialistas francesas de figurinos de época. Foi grandioso e deixei-me levar pela experiência, queria deixar-me surpreender, descobrir. Nos primeiros dias tentei compreender como é que funcionava e é incrível para alguém habituado às cadeiras do cinema encontrar-se do outro lado e dizer ‘Ah, afinal é assim que funciona. Muito bem…’. Foi verdadeiramente novidade em estado puro.

Iris Bry em Lisboa

 

Como é que foi trabalhar com a Nathalie Baye?

 

Foi muito agradável, porque a Nathalie é alguém muito simples, calorosa e simpática. No início foi muito impressionante e depois, bastante depressa, tivemos algumas conversas entre cenas, um pouco fúteis da vida de todos os dias… É parvo de dizer, mas depois torna-se uma colega de trabalho, no sentido em que trabalhamos juntas pelo filme. Sim, é Nathalie Baye, mas partilhamos coisa tão estranhas – como quando apanhamos estrume as duas [risos]. Este tipo de ações no filme que fazem com que tenhamos uma ligação muito simples às coisas. Afinal, estávamos o tempo todo numa quinta de tamancos…

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por Roni Nunes às 23:44

Juliana Rojas ("As Boas Maneiras"): "Os filmes de terror são naturalmente subversivos"

por Roni Nunes, Segunda-feira, 14.05.18

Artigo originalmente postado no Sapo.

Por Roni Nunes

  

"As Boas Maneiras" está a ser lançado em DVD e na plataforma Filmin após uma aclamada exibição no festival IndieLisboa, pretexto para o SAPO Mag conversar com a corealizadora Juliana Rojas sobre esta inspirada recriação do mito do lobisomem.
 
Realizadora de
 

Se a cinematografia brasileira, diferente da política, anda em alta, "As Boas Maneiras" inscreve-se sem dificuldades entre os mais belos e sofisticados exemplares a sair do país nos últimos tempos. O filme conta a história de uma mulher rica e solitária (Marjorie Estiano) que contrata uma “baby sitter” (a portuguesa Isabél Zuaa) para tomar conta do filho que ainda está por nascer.

 

Esse é o ponto de partida para uma estranha e visualmente requintada parábola que utiliza velhos mitos góticos para uma abordagem sobre as dicotomias da sociedade brasileira atual. O filme, premiado no Festival de Locarno, foi realizado por Juliana Rojas e Marco Dutra, responsáveis por outra aventura num híbrido de géneros, “Trabalhar Cansa”, estreado em Cannes há sete anos.

 

Entre os novos projetos, Marco Dutra inicia em breve as filmagens do seu novo trabalho, “Todos os Mortos”, realizado em parceria com Caetano Gotardo, enquanto “Cidade em Campo”, projeto apenas de Juliana Rojas, está na fase de captação de financiamento.

 

Em Lisboa, "As Boas Maneiras" teve uma antestreia acalorada e divertida no Capitólio, no âmbito do IndieLisboa, e o SAPO Mag aproveitou a presença da cineasta para conversar sobre o filme, agora é lançado em DVD e na plataforma Filmin após ter estreado em algumas salas portuguesas a 3 de maio.

 

Para começar gostaria que falasse do visual do filme. Há todo um cuidado para recriar um cenário que pode ser chamado de “gótico”. Ao mesmo tempo, São Paulo surge reconhecível nos seus edifícios e nos tipos de construções dos bairros…

 

Durante a preparação eu e o Marco trabalhámos de forma muito intensa com o Rui Poças [diretor de fotografia] e o Fernando Zuccolotto, o diretor de arte, no sentido de desenvolver a identidade visual do filme. Nós queríamos esse visual de fábula para São Paulo mas, apesar deste cenário “fantástico”, queríamos um equilíbrio, não pretendíamos perder a referência da cidade real. Isto porque o filme também fala sobre questões que tem a ver com a geografia dela, os bairros e a relação entre centro e periferia.

 

No filme é colocada a questão do rio como um divisor…

 

Isso existe. A região central concentra mais riqueza. No filme é estilizado, mas existe a “marginal” que separa o centro do bairro. O que fizemos foi dar a isso uma aparência mais lúdica. Fizemos muitas experiências com cores, tentando perceber quais eram mais adequadas para cada universo e, ao mesmo tempo, trabalhámos com o Eduardo Schaal as paisagens através do "matte painting", um recurso que era muito usado pelos estúdios nos anos 60 e 70. Basicamente pintava-se à mão uma paisagem de fundo para criar uma ideia de extensão. Preferimos este método, apesar da forma realista como a tecnologia hoje permite criar novos mundos. A diferença é que antes pintava-se sobre um vidro ou no próprio cenário, hoje faz-se no computador. É interessante, pois cria uma artificialidade, um estranhamento na imagem.

 

 

Uma coisa que é notável é a forma como conseguem equilibrar na narrativa elementos insólitos vindos da animação ou do musical sem cair nas facilidades da paródia.

 

Bom, não faríamos uma paródia pois gostamos muito destes géneros. De qualquer forma, nós não pensámos nisto como uma fórmula enquanto fazíamos o filme. Estávamos sempre a investigar durante as filmagens, agindo por instinto e sem saber se iria dar certo. Só tivemos mais certezas já na fase de montagem, só aí fomos encontrando o equilíbrio e o tom para dosear cada sequência e como trabalhar a música e a parte gráfica. Guiámo-nos pelas emoções da personagem de Isabél Zuaa para transitar pelos diferentes géneros ao longo do filme.

 


Os filmes fantásticos de horror têm naturalmente de explorar criativamente outros limites, tem de querer romper tabus. A matéria-prima é o subconsciente, por isso é um cinema mais subversivo. Talvez venha daí a visceralidade de que fala. É um cinema que procura o risco e a subversão, tem um propósito político ou filosófico. Os filmes do [George] Romero, por exemplo, são políticos, falam do mal-estar da humanidade e dos conflitos sociais. “Drácula” aborda a sexualidade, o corpo, traz uma metáfora sobre questões profundas do ser humano.


De resto acho que está a melhorar, embora ainda exista um certo preconceito. É algo histórico: quando estivemos em Locarno houve uma retrospetiva sobre Jacques Tourneur, que era um cineasta de filme B e só hoje está a ter reconhecimento artístico. Tinha um trabalho maravilhoso de construção de “extra-campo”, de fotografia…

 

Ainda assim, ele e o Val Lewton foram dos menos injustiçados em relação a alguns outros da [estúdio] Universal, por exemplo.

 

Sim, mas era considerado “filme B”. Ele trabalhava sobre os cenários de outros filmes maiores. Depois incomoda-me um pouco que, no ano passado, tenham aparecido conceitos como “pós-horror”, o que denota um preconceito da crítica no sentido de que, se é bom e é de terror, tem que ter outro nome para designá-lo. Para ser sofisticado, de arte, tem que ser “pós-horror”. Já nos atribuíram esse rótulo e não gosto. Fazemos filmes de género.

 

Também incluíram uma cena de transformação… São curiosas atualmente as possibilidades da tecnologia. Na altura de “Um Lobisomem Americano em Londres” [1981], algo assim foi um marco na história dos efeitos especiais.

 

Assistimos muitos filmes de lobisomens para ver como eram representados. E percebemos que os filmes com efeitos mecânicos eram mais fortes. “Um Lobisomem Americano em Londres” era um destes casos e é muito forte até hoje. Mesmo que já não seja tão realista para os padrões atuais, tem um grande impacto emocional. O problema da computação gráfica é que ela está sempre em desenvolvimento e o que foi feito há dez anos parece falso hoje em dia.

 

Por exemplo, o “Parque Jurássico” tem partes que hoje parecem falsas, mas os efeitos mecânicos, como o daquela pata do dinossauro ao lado do carro, ainda é incrível. Nós percebemos isso mas, ao mesmo tempo, havia coisas que queríamos fazer que era impossível com efeitos mecânicos. A parte dos efeitos foi trabalhada com os nossos parceiros de produção franceses, que ajudaram também a decidir quando era melhor CGI ou maquilhagem. Mas o que era fundamental era transmitir uma ideia de humanidade e o sentimento da dor da transformação.

 

Nas fantasias de terror góticas há muito um vilão "estrangeiro", que vem de terras "exóticas", como Drácula… A vossa "criatura" vem, pelo contrário, do interior da sociedade que retratam e, de certa forma, de dentro de cada um.

 

Na questão da lenda do lobisomem o mais interessante é a dualidade da criatura, que é humana e se transforma num animal. Ele vive neste conflito de ter que equilibrar as duas partes, o que corresponde a uma dualidade que tem todo o ser humano, a instintiva e animal e a racional…

 

Daí a necessidade das "boas maneiras"…

 

Exato! E que é precisamente aquilo que os nossos personagens não têm [risos]. É um título irónico, eles estão fora das regras da sociedade, cada um à sua maneira. Em todas as camadas do filme quisemos falar destas dualidades – centro vs periferia, ricos vs pobres, etc. Estes mundo chocam e a tensão vem desta oposição.

 

Marco Dutra e Juliana Rojas com o prémio ganho no Festival de Locarno

 

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por Roni Nunes às 19:40

«7 Days in Entebbe» (Operação Entebbe), por Roni Nunes

por Roni Nunes, Quinta-feira, 29.03.18

Crítica originalmente postada em C7nema.

 

 

José Padilha consagrou-se com Tropa de Elite, um registo em modo "ação" balizado por inúmeras considerações morais e imbróglios temáticos. No universo exclusivamente do cinema, a sua estreia com capitais internacionais, Robocop, não pode ser considerado um verdadeiro projeto autoral – no sentido que exigências comerciais e de produção condicionaram o que ele eventualmente poderia ter acrescentado à uma releitura do clássico de Paul Verhoeven.

 

Operação Entebbe mete-se por terrenos (muito) pantanosos. Reconstrói um episódio real, o sequestro de um avião da Air France, em 1976, por dois ativistas alemães, ligados à organização Baader-Meinhof (interpretados pelas estrelas do elenco – Rosamund Pike e Daniel Brühl) e um grupo de palestinianos. Com uma decisão algo insólita, eles usam como base para as suas negociações um aeroporto de Uganda, país então dominado pelo muito louco e imprevisível Idi Amin (Nonso Anozie). O governo de Israel desenvolve então a Operação Thunderbolt, uma das mais notórias da sua história.

 

A ênfase é menor na ação do que na tentativa de criar personagens envoltos em dilemas difíceis. Em termos morais, o argumento tenta o equilíbrio quase impossível em conciliar o discurso revolucionário e a suas ações, e as decisões de homens de Estado presos entre a política e o fator humano – todos embrulhados em escolhas de grandes consequências.

 

No mundo dos "terroristas", Padilha faz um esforço q.b., ainda que titubeante, para entender e aceitar a lógica revolucionária dos anos 70. No século XXI, ironicamente um tempo desesperadamente órfão de crenças universalistas coletivas (só a extrema-direita ainda parece tê-las), é necessário um esforço para não ridicularizar a fé ingénua de um pequeno editor alemão (Brühl) no sequestro de um avião em nome da justiça da causa palestiniana.

 

 

A terrorista de Pike é mais ambígua, mas mal construída, resultando ineficaz o drama da personagem vivida por uma atriz deliberadamente desornamentada de sua fulgurante presença física (de Gone Girl, por exemplo). Já o drama do soldado israelita (Ben Schnetzer) e sua namorada dançarina (Zina Zinchenko) retomam os tormentos do capitão Nascimento ("polícia tem família"), mas terminam por não passar de um cliché pouco relevante.

 

De qualquer forma, o facto de ser uma coprodução europeia (envolve a Working Title e o StudioCanal) torna viável que Padilha e companhia elevem o tema do terrorismo a um patamar mais sério do que às fábulas de propaganda de Hollywood – onde o mundo se divide entre bons e maus, estes últimos facilmente catalogáveis em rótulos de marketing estilo "eixo do mal".

 

O espinhoso conflito israelo-palestiniano é enfocado através de dois homens de Estado. De um lado está o belicoso Shimon Peres (futuro moderado na vida real) em modo simpatético (vivido por Eddie Marsan) e de outro Isaac Rabin (interpretado por Lior Ashkenazi) que assume o tom conciliador que seria intolerável no mundo cá fora (fora do âmbito cronológico do filme, viria a ser assassinado por radicais israelitas). Uma nota ainda para Benjamin Netanyahu nos créditos finais, embora aí seja necessário ressaltar a falta de coragem à produção, dentro da sua própria lógica, para referir-se àquilo que foi a sua política de atrocidades.

 

A dança, coreografia de Ohad Naharin e representação da Batsheva Dance Companhy, confere uma graça especial ao filme – unindo sua força simbólica (os dançarinos que se despem de trajes ortodoxos) com as suas possibilidades cinemáticas (as trajetórias paralelas entre o espetáculo artístico e o militar).

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por Roni Nunes às 19:56

"No Intenso Agora" – um poema estupendo e o fim das utopias

por Roni Nunes, Quinta-feira, 22.03.18

Entrevista feita durante o Festival de Berlim em 2017 e originalmente postada no C7nema.

 

 

Um lindo crepúsculo chuvoso sobre o complexo de vidro que rodeia as salas do CinemaxX. A estreia mundial de No Intenso Agora, no Festival de Berlim, tem um teatro a abarrotar. O filme termina, os aplausos são entusiasmados; alguns estão tocados pela delicada teia urdida a partir de comoventes filmes familiares que funcionam como testemunhos oculares de momentos coletivos dramáticos – cozidos com a leitura das imagens feitas em off pelo cineasta.

 

João Moreira Salles fala com o público. Que está interessado: No Intenso Agora fala de muita coisa, cabe um mundo nas suas duas horas de projeção. Mas é muito mais do que os fragmentos da Revolução Cultural chinesa, o Maio de 68 francês, a invasão da Checoslováquia pelos russos no mesmo ano.

 

No dia a seguir à sessão na Berlinale, Moreira Salles conversou com o C7nema.

No Intenso Agora está em exibição no cinema Ideal a partir de hoje. 

 

O MAIS ROMÂNTICO DOS SONHOS REVOLUCIONÁRIOS

 

 

De todas as fantasias revolucionárias retrospetivas, a imagem do Maio de 68 é das mais duradouras."É a mais romântica", diz o cineasta. Fragmentos do filme: em Paris os estudantes tiram a voz aos mais velhos, filhos de burgueses batem-se nas ruas com as tropas de choque enviadas pelos seus pais; a Paris Match paga uma viagem a Daniel Cohn-Bendit e torna a revolução num adereço de marketing; estudantes e operários falam de alturas diferentes; nunca se entenderão. As imagens são poderosas: no fim de uma greve, uma operária traída.

 

O realizador assinala: "O maio de 1968 envolve uma nostalgia, é o mais romântico, com as suas palavras de ordem, a poesia, é deslumbrante. Mas, na verdade, nos Estados Unidos e na Checoslováquia ele foi mais rico, tinham mais coisas em jogo. E foi mais corajoso, teve mais consequências. O maio de 1968 francês foi socialmente conservador, as mulheres estão em segundo plano e os negros estão ausentes".

 

Tampouco estudantes e operários concordaram em apertar as mãos. "Houve uma única passeata em que, pela primeira e última vez, estudantes saíram em passeata com a organização sindical. Estes, no entanto, disseram que não apertariam a mão de Cohn-Bendit, ele que fizesse passeata em outro lugar".

No filme, Cohn-Bendit encontra a glória e é consumido por ela - agora é o maior intelectual francês, Jean-Paul Sarte, quem o entrevista. O pensador está espantado com a falta de um programa dos estudantes.

 

"Sartre dizia a eles: vocês têm que ter um programa, uma direção. Quando não se tem ganha-se algumas coisas – a vitalidade, a espontaneidade, a alegria, a irmandade, mas perde-se noutras, que é a capacidade de impactar de verdade", reflete.

 

Tudo terminará numa "acordo sórdido" a envolver questões salariais, dirá um anónimo.

 

TANQUES EM PRAGA: O FIM DE TODAS AS ESPERANÇAS

 

 

A História é algo móvel. A escolher um momento para o fim de todas as esperanças, Salles optaria pela invasão de Praga pelos tanques soviéticos. Este é mostrado por comoventes imagens familiares, colhidas através de arquivos de preservação do país. "O material que encontramos sobre esta altura é um achado", lembra.

 

O cineasta analisa: "Podemos afirmar que a experiência de 68 acaba aí. Aí temos um país socialista esmagando uma experiência progressista de um país que não queria necessariamente emigrar para a esfera do Ocidente. Quando aquilo ocorreu a juventude que tinha saído às ruas em 68 em nome de um socialismo mais progressista percebeu que não havia caminho, não havia jeito."

 

Os russos já tinham apoiado os sindicatos franceses a acabarem com as greves e encerrarem os tumultos. Fidel contribui com a pá de cal: "Cuba apoiou a invasão. Fidel naquele momento ainda era a grande luz no sentido da revolução libertária. Ele diz que moralmente era indefensável, mas politicamente a invasão de Praga era necessária. Aí as pessoas se deprimem, a ideia de socialismo acaba".

 

UM PONTO DE CHEGADA: BRASIL, 2013

 

 

O filme restringe-se ao ano de 1968. Pergunto ao cineasta o significado simbólico deste fim de ideia utópica para o Brasil, um país com muito a conquistar.

"Sob um certo aspeto abandonar a utopia foi uma coisa boa. Sob um certo ponto de vista, a utopia é um "não-lugar", algo onde você nunca vai chegar. É bom o fim desta ideia, temos que lidar com coisas possíveis, palpáveis. As manifestações que ocorreram no Brasil em 2013, por exemplo, eram anti-críticas, conservadoras, que desqualificam a política. Diziam 'partido político não!'. Mas o que você vai pôr no lugar? Essa via abre espaço para a Bolsonaros *".

 

 

* Referência a Jair Bolsonaro, política brasileiro com estilo e discurso semelhantes ao de Donald Trump.

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por Roni Nunes às 19:55

"Há Quem as Prefira de Véu": Filme satiriza Islão, iranianos, franceses e a esquerda

por Roni Nunes, Domingo, 31.12.17

Artigo originalmente postado no SAPO. 

 

POR RONI NUNES

 

Uma das estreias da semana nas salas portuguesas usa o caldeirão efervescente da sociedade francesa para rir de toda a gente.
 
 

Se a sociedade francesa é um caldeirão efervescente, a realizadora estreante Sou Abadi resolveu juntar todas as peças e rir de toda a gente. Não o chega a fazer de forma temerária: a comédia "Há Quem as Prefira de Véu", que chega esta semana às salas de cinema portuguesas, termina por ser mais agridoce do que sarcástica. Mas há tiros suficientes para todos os lados.

 

Leila (vivida por Camélia Jordana, uma famosa cantora de música “pop” em França) é uma descendente de árabes liberal à moda ocidental. O namorado Armand (Félix Moati) é francês e são ambos universitários.

 

O conflito: a órfã Leila recebe a visita do irmão mais velho Mahmoud (William Lebghill), vindo de um campo fundamentalista do Iémen e devidamente convertido. Este está em modo patriarcal: agora é ele que manda. Namorado francês, nem pensar. Nem que, para isso, tenha que enclausurar a irmã em casa e Armand, para vê-la, tenha que lá chegar escondido numa burka e a fazer-se passar por mulher. Resulta até demasiado...

 

O título original (“Cherchez la Femme”) remete para uma velha fórmula dos policiais: se um investigador quer descobrir a origem de um crime, procure primeiro por uma mulher. Há sempre uma na raiz do problema. Já o título internacional inglês (“Some Like it Veiled”) faz menção a outro aspeto do filme – a relação com o clássico de Billy Wilder “Some Like it Hot” (em Portugal “Quanto mais Quente Melhor”) – com as suas confusões, reviravoltas e um homem disfarçado de mulher.

 

As personagens e seus desmazelos são devidamente exageradas: Mahmoud chega a perseguir a irmã com um machado, enquanto a mãe de Armand (Anna Alvaro), herdeira das moribundas ideologias revolucionárias, posa seminua para a “causa iraniana” (seja o que isso for). Assim, com traço grosso, dá para ironizar os absurdos do Islão e os caminhos inconsequentes de um ideal de esquerda moribundo.

 

Atualmente a França vive uma crise de identidade, com os seus milhões de descendentes vindos do mundo árabe, uma extrema-direita muito ativa e, pelo meio, uma classe média numa desorientação total de princípios. Sou Abadi juntou tudo isso em "Há Quem as Prefira de Véu" para chegar a algumas piadas hilariantes.

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por Roni Nunes às 00:49

Militância, beleza, intensidade: "120 Batimentos por Minuto" e uma entrevista com Robin Campillo

por Roni Nunes, Sexta-feira, 08.12.17
O vencedor do Grande Prémio do Júri no Festival de Cannes estreia esta semana em Portugal. O SAPO conversou com o artista por detrás de um dos mais intensos filmes do ano.
 
 

Após o Festival de Cannes, o céu tornou-se o limite: "120 Batimentos por Minuto" alinha uma longa fileira de prémios (o Grande Prémio em Cannes é o seu momento maior), nomeações a outros (incluindo a indicação francesa para os Óscares de Melhor Filme em Língua Estrangeira) e consensos críticos por todo o lado.

 

Mas quem conversa com o seu artesão, Robin Campillo, dificilmente encontrará um homem deslumbrado pelo seu ego. Esbanjando simpatia, o cineasta recebeu o SAPO Mag no café do Cinema Ideal para uma conversa séria sobre um filme sério. Mas tal como a (muito) relativa leveza que apresenta no tratamento dos temas difíceis que escolhe (também lhe foi lançada essa questão), o serão acabou em risadas.

 

Campillo tem motivos para celebrar. Em relação à sua curta passagem por Lisboa, o cineasta garantiu que terá pelo menos um dia para conhecer a cidade. Vem dia após dia a apresentar o seu filme por diversos locais: daqui segue para a Ucrânia e, depois, para a Eslovénia. Nada mau para uma produção independente. “Não me posso queixar!”, diz.

 

O discreto aborrecimento da burguesia

 

"120 Batimentos por Minuto" narra o dia-a-dia de um grupo de ativistas no início dos anos 90. O objetivo da associação Act Up era alertar a sociedade para a terrível situação das pessoas atingidas pela epidemia da SIDA.

 

De resto, o filme mostra os bons tempos onde se incomodava o cidadão bem estabelecido com sangue falso (mas com excelente aparência de verdadeiro), com multidões atirando-se ao chão para barrar os carros dos indiferentes ou criando coreografias de protesto com o hino “pop” “Smalltown Boy”. Campillo ajuda e faz um protesto-homenagem aos seus mortos "tingindo" o Sena de vermelho.

 

Um longo trecho é abertamente proselitista: há uma associação ativista e uma ação correspondente – embora mais por desespero e com objetivos práticos do que buscas utópicas de revolução político-social.

 

Militância à anos 60? “Sim, adoro [Jean-Luc] Godard, mas percebi que o seu cinema era inepto para lidar com a epidemia, pois não vemos pessoas doentes nos seus filmes”. Já Bernardo Bertolucci estava mais atento ao entrelaçar entre o universo íntimo/privado e a política… com a palavra, Robin Campillo.

 

Como foi o seu envolvimento com a Act Up e de que forma isso contribuiu para o filme?

 

Juntei-me a Act Up em 1992, 12 anos depois do início da epidemia ou, pelo menos, da chegada dela aos "media" franceses. A partir dos meus 20 anos era apenas um jovem “gay” com muito medo do que lia nos jornais e fiquei sem sexo durante sete anos. Entrei para a Act Up porque decidi que tinha que fazer alguma coisa. Nós estávamos numa posição bizarra, havia amigos que desapareciam durante meses em hospitais, toda a gente estava apartada umas das outras.


Claro que toda a gente já tinha ouvido falar de homossexuais que morriam, prostitutas, viciados, mas não havia de facto comunicação entre as pessoas e estava com raiva disto tudo. Quando soube que o meu primeiro namorado tinha morrido juntei-me a Act Up alguns meses depois. Descobri um grupo que era extremamente divertido, havia tanto júbilo porque as pessoas estavam felizes por estarem juntas, podiam partilhar as suas experiências e tentar acordar a sociedade para o que estava a passar. Perguntava-me ‘Onde está a doença’? Porque o grupo era bastante saudável.

 

No filme até esquecemos muitas vezes que se tratavam de pessoas doentes…

 

Era mesmo assim! Claro que eram pessoas jovens e é natural que houvesse energia, mas quando as pessoas estão a morrer não é assim tão linear…

 

 

Na altura o tema da SIDA era muito marcante, mas hoje já não é tão falado. Por que decidiu abordar o assunto?

 

Fiz o filme em certa medida por motivos egoístas. Não pensei na situação da epidemia nos nossos dias. Quando estava a rodá-lo percebi que era importante fazer o filme agora pois escolhi estes jovens atores e a maioria deles eram ‘gays’ que não tinham relação com a epidemia de 25 anos atrás. Eles não faziam qualquer ideia do que tinha acontecido. Um deles, por exemplo, nunca tinha feito um teste de HIV! Para mim isso era incrível e disse ‘Tem de fazer’! Ao mesmo tempo, não queria fazer um filme histórico. Queria pôr o espectador como se ele estivesse no presente, como se tudo isso estivesse a acontecer agora.

 

O filme lembrou um pouco certos trabalhos dos anos 60, como alguns do Godard ou do Bertolucci. Tinha isso em mente quando fez o filme?

 

Sim, claro, certamente tinha isso em mente. Adoro Godard e também os primeiros filmes de Bertolucci. É muito interessante, era um grande fã de Godard no início dos anos 80. Mas com isso da epidemia percebi que o cinema dele não era apto a abordar esse assunto, precisamente porque não vemos pessoas doentes nos seus filmes. Aliás, em toda a "Nouvelle Vague" só temos pessoas saudáveis.

 

Neste caso estamos a falar de pessoas doentes, o que é muito diferente. A única obra desta época a retratar algo assim é o de Agnés Varda, “Cleo de 5 à 7” (“Duas Horas na Vida de uma Mulher”, de 1962). É engraçado porque aquilo que o filme mostra é exatamente o que eu estava a viver nos anos 80, o facto de existir algo enorme como uma guerra distante que vem se aproximando cada vez mais. O filme dela é belíssimo e é exatamente nisto que estava a pensar.

 

Queria acrescentar uma coisa sobre o maio de 68 em França. Na altura, as pessoas tinham certamente expectativas grandiosas, com os seus discursos de esquerda, maoístas, etc. Mas nas universidades francesas a luta foi muitas vezes por algo mais simples – que era contornar o facto de que homens e mulheres tinham que estudar em alas separadas. Esta é uma das histórias secretas do maio de 68 [risos]. Isso para dizer que a vida íntima está muito próxima da política e da luta coletiva. Digo isto porque essa dimensão não se encontra em Godard, mas já se encontra mais em, como citou, Bertolucci.

 

A abordagem frontal de temas relativos à homossexualidade tornou-se uma conquista do cinema contemporâneo. Ao mesmo tempo assiste-se pelo Ocidente ao regresso do discurso conservador.

 

Essa é uma questão interessante. Quando era muito jovem, no final dos anos 70, via-me a mim mesmo como uma espécie de "dandy" “gay” – era “cool”, pensava em Jean Genet, Oscar Wilde…

 

Por causa da SIDA descobri, talvez como muitos outros homossexuais, que tudo isso eram parvoíces porque a nossa vida não significava grande coisa para o resto da nossa sociedade. O nossos amores e histórias eram nada. Foi como se a epidemia tivesse posto toda a gente de regresso ao armário, já não tínhamos a via de ser “gay” como um "dandy", transformou-se numa maldição e tornou-nos as pobres vítimas de uma epidemia. A primeira sensação foi de raiva.

 

Em tempos recentes foi a questão do casamento homossexual a despertar uma segunda onda de homofobia. Percebemos que a igualdade não era para nós. Parece-me que foi mais importante em França do que aqui, os debates foram muito duros e surgiram argumentos retrógrados baseados nos acontecimentos de 20 anos atrás. Também houve ativismo – um milhão de pessoas foram às ruas contra o casamento ‘gay’.

 

Havia um ‘background’ religioso nos protestos?

 

A religião estava lá, mas tenho que dizer que, apesar da maioria deles serem católicos, nós sabemos que a maioria dos católicos é a favor do casamento "gay". Claro que estavam lá muitos, mas eles não representam todos os outros. O que acabamos por descobrir depois de todos estes anos é que tudo tem a ver com ser discreto. Pode ser homossexual se for discreto. Retrocedemos, depois do Act up identidade ‘gay’ voltou ao debate político.

 

Tal como em “Eastern Boys”, que abordava a questão da prostituição masculina, este também tem um tema forte. Apesar disto, são filmes cheios de vitalidade, nada deprimentes…

 

Sim, tem razão. Tem a ver com o facto de que nunca me senti tão vivo. No caso de"120 Batimentos por Minuto", estava na Act Up que, como disse, representava um momento de libertação para todos – isso independente de estarem pessoas a morrer. Nós éramos bons a viver a vida, em ir a festas, não estávamos preocupados em ter um bom emprego e a planear uma carreira. Foram as últimas luzes dos anos 70.

 

 

A esta altura o filme coleciona prémios e elogios. Como lida com isso? Sente-se pressionado para desenvolver um novo projeto?

 

Em relação a um novo filme, se não encontrar algo que realmente queira, não vou fazer nada.

 

Mas já tem alguma ideia?

 

Tenho duas, mas neste momento não tenho os direitos para fazer as adaptações, portanto tenho de esperar… Mas não farei se não estiver inspirado o suficiente. Não tenho medo disto.

 

Para mim, a pressão está noutro lado. Realmente queria ir a Cannes, queria muito que o filme chegasse lá. Mas quando um filme é exposto, sou exposto como realizador. Não é fácil. Não gosto disto e quando estava em Cannes foi duro para mim. Não preciso ser reconhecido pelo que faço. Se não recebesse prémios estaria tudo bem, o público e os críticos já tinham gostado, então OK, já ficávamos por aí [risos].

 

E ainda pode ganhar um Óscar…

 

Exato, é uma loucura saber disto. Só o facto de pensar que posso ter de subir ao palco para agradecer deixa-me doente [risos]. Sei por exemplo que, como aconteceu nos César [com “Eastern Boys”], teria de ir à cerimónia e isso deixa-me doente por causa do medo do palco. Tenho medo de ser filmado, de ser visto em público. Se estiver com mais alguém já é mais fácil. Sei que isso é estúpido, mas é real. Quero a estatueta, mas não ser eu a ir recebê-la….

 

Pode fazer como o Marlon Brando e mandar uma índia…

 

[risos] Poderia fazer isso! Bom, tinha pensado em algo mais modesto, como mandar o meu irmão ou um sósia [risos]. Outra ideia é dizer ao produtor para fazer o discurso, do estilo ‘você foi tão importante, você merece!’

 

Bom, é melhor não dizer isso publicamente, caso contrário não ganha…

 

Sim e a culpa é sua! [risos].

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por Roni Nunes às 14:32

"Táxi Sófia" e outras geografias: mosaico da nova Bulgária nas salas portuguesas

por Roni Nunes, Domingo, 03.12.17

Artigo postado em SAPO Mag.

 

"Táxi Sófia" é um raro exemplar do cinema do Leste europeu a chegar ao circuito comercial português.
 
 

"Táxi Sófia" é um raro exemplar do cinema do Leste europeu a aportar no circuito comercial português. Estreado na secção A Certain Regard do Festival de Cannes, o filme traz um pouco da vida na capital da Bulgária num ritmo vertiginoso.

 

Trata-se de uma espécie de filme-mosaico e chega a lembrar o polaco “11 Minutos”, de Jerzy Skolimowsky. E que registo propõe Stephan Komandarev, cineasta já com um currículo internacional assinalável?

 

Estilisticamente, trata-se de enfatizar movimento e sufoco, apertando os ângulos dentro de carros, priorizando planos médios e valendo-se, em muitos momentos, de cortes rápidos. O resultado é isso: um Bulgária convulsa – cuja forma está ao serviço de retratar as situações que o demonstram.

 

Tudo se passa na vida dos motoristas de táxi da cidade. Eles conhecem gente capacitada desesperada para emigrar, para se suicidar, a viver na miséria; lidam com uma juventude sem rumo, vingam-se de algozes antigamente confortáveis sob o comunismo e que agora dão lições sobre os “valores europeus”. A ligar um pouco isto tudo está um taxista desesperado que assassinou um banqueiro.

 

 

O tema não é espantoso: os filmes do Leste europeu que têm chegado ao Ocidente, vindos de países como Roménia, Polónia, Rússia, não variam ao mostrar uma espécie de mistura indigesta entre as ruínas do velho mundo comunista e a selvajaria capitalista, sob a sua vertente dominante no momento – a neoliberal. O que liga estes universos é a corrupção.

 

Neste momento, o realizador termina um documentário no qual realiza um episódio ao lado de quatro outros cineastas de diferentes países do Leste europeu. Cada filme terá em torno de 30 minutos e representa as diferentes visões de cada um sobre um episódio fulcral da era comunista e das crenças no socialismo – o Maio de 68 na antiga Checoslováquia.

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por Roni Nunes às 12:40

Entrevista "Verão Danado": Míssil sensorial de Pedro Cabeleira atinge cinemas portugueses

por Roni Nunes, Sexta-feira, 01.12.17

Postado por Roni Nunes em SAPO Mag.

 
 

Enquanto o inverno toma forma em Portugal, o circuito comercial de cinema recebe o verão interminável da juventude na proposta de estreia de Pedro Cabeleira: "Verão Danado" tem agradado um pouco por todo lado, no Festival de Locarno aos que já o viram por cá em antestreia. A ver se espalha as suas andorinhas à base de MD pela noite polar da distribuição/exibição em terras lusas.

 

Chico (Pedro Marujo, também em estreia) sai da terrinha para estudar em Lisboa. Na sua última vinda a capital conhece o universo dos “ravers”. Anda de festa em festa. Mais ou menos deslumbrado, de vez em quando ressacado – por vezes despreparado para a dinâmica volátil da noite. E é isso.

 

Diz o cineasta, não totalmente a sério: “Gosto da noção da odisseia, do sujeito que sai da terra para uma grande aventura. Os “MDs” são como as sereias a acenar para ele...!”

 

Pedro Cabeleira escolheu músicas do DJ Nigga Fox e ritmos “afrobeat” para embalar os seus jovens – até garantir um brilhante momento-surpresa com o DJ Mr. Gee. Uma poesia do século XXI não poderia vir de um poeta.

 

Foi uma descoberta fortuita na pós-produção”, diz. “De repente percebi que aquele poema tinha tudo a ver com filme e fiquei arrepiado”.

 

 

De personagens ilustres há Nuno Melo, numa pequena participação gravada quatro meses antes do ator falecer.

 

Ele havia entrado no meu filme de conclusão da universidade. Mais uma vez disse que não tinha dinheiro para pagar, mas ele aceitou na mesma. Era uma pessoa incrivelmente bem disposta”, assinala.

 

De resto, será um hino à geração do hedonismo-que-vazio-horrível-dentro-de-mim? Também isso. Mas há mais sereias nesta odisseia com os seus longos e violentos momentos de festa. “Se era para mostrar uma festa tinha que ser uma a sério”, diz o anfitrião.

 

O realismo orgânico e os blocos da criação

 

Se a graça da criação é reinventar sobre o que já existe, os caminhos de Pedro Cabeleira já andam por aí há tempos. Trata-se daquele realismo orgânico com personagens-que-podiam-ser-o-nosso-vizinho que tem em autores como Richard Linklater a sua via “mainstream” e na epidémica docuficção o seu reduto festivaleiro.

 

Em “Verão Danado”, a dinâmica entre composição visual, diálogos e interação entre personagens é complexa. O realizador explica: “A ideia era trabalhar por blocos, o ponto de partida foram quatro ou cinco blocos que tivessem intensidade dramática ou sensorial – de achar que momentos tinham impacto cinematográfico.”

 

Assim, “dois blocos relacionam-se com as duas festas, outro sobre a situação com a rapariga onde queria filmar rostos, um quarto com a ideia da terra natal, simbolizando um personagem que sai para a capital, e o jogo de futebol – para mostrar uma relação de amizade e euforia sem drogas. A composição dos personagens veio a seguir”.

 

A juventude e o verão “never ending”

 

O filme como um todo apresenta-se como uma metáfora própria do estado de juventude, com a sua ideia de presente eterno.

 

Diz Pedro Cabeleira: “A ideia é que aquilo pode parecer uma espécie de um verão interminável, 'never ending', de festa em festa. Isto porque, de repente, há ali uma rotura com uma ideia de rotina. O Chico sempre foi uma pessoa rotinada, teve os pais, depois a escola, foi para a universidade. De repente ele fica órfão porque as instituições desaparecem e se ele não arranjar um emprego, este estado pode-se prolongar ‘ad eternum’. É um período muito característico da vida das pessoas e senti que pode ser algo muito violento, um choque, um período de transição muito estranho”.

 

 

A liberdade do imediato

 

De qualquer forma não há em Verão Danado" uma crítica moralizante em torno destes jovens.

 

Não queria mostrar isso de uma forma destrutiva, há uma energia naquelas pessoas, naquele período da vida, uma liberdade que não se volta a ter. Eles não estão agarrados a nada material, ninguém tem dinheiro, eles não estão a planear viagens ou ir à praia. Só querem estar ali, o que é uma coisa bonita e específica daquele período. Claro que é muito romântico a ideia de viver assim para o resto da vida o que, dado a forma de organização do nosso sistema social, é completamente impossível”.

 

O eterno vazio da juventude pós-moderna

 

Esse tempo “infinito” expõe também a fragilidade das novas gerações.

 

Hoje em dia queremos demasiado. Os nossos avós e antes deles estavam concentrados em pôr comida na mesa. Os nossos pais já se preocupavam em ter uma casa própria, um carro, pôr os filhos na universidade. Já a nossa geração quer ser extraordinária, não conseguimos perceber o quão privilegiados somos por termos nascido nesse tempo. Desejar ser extraordinário pode-nos colocar numa insatisfação permanente”, avança Pedro Cabeleira.

 

Da mesma forma, o filme não é meramente sobre o uso de drogas – embora elas estejam fortemente conectadas com um dos seus temas centrais, o hedonismo.

 

As drogas aqui potenciavam uma série de possibilidades em termos de cenografia e realização. O MD, por exemplo, possibilita aquela sequência de 20 minutos onde posso brincar com o som. Já para os personagens é uma forma de refúgio de uma coisa qualquer, lidam constantemente com um vazio que tem que preencher. A droga garante satisfação imediata”.

 

 

O baile de máscaras e a desfragmentação da identidade

 

Num dado momento, Chico diz que se encontrasse aquelas pessoas fora do ambiente da festa não as reconheceria.

 

Pedro Cabeleira explica: “O que acontece nestas festas é uma abstração da questão da identidade: às vezes as pessoas adquirem outra 'persona', uma oportunidade de se mostrarem de maneira não o podem fazer durante o dia. É como um baile de máscaras moderno, encontrar aquelas pessoas de outra forma seria estranhíssimo”.

 

“Verão Danado” é o primeiro filme distribuído em sala pela plataforma Filmin e estreou esta semana.

 

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por Roni Nunes às 22:27

"Lucky", digno epitáfio para Harry Dean Stanton

por Roni Nunes, Quinta-feira, 30.11.17

Postado por Roni Nunes em SAPO Mag.

 

"Lucky" é o penúltimo de Harry Dean Stanton, o eterno ator de "Paris, Texas", falecido em setembro deste ano, aos 91 anos.

 

A seguir ainda entrou como secundário em “Frank and Ava”, obra ainda sem lançamento comercial, mas aqui em "Lucky" ele é o protagonista: todo o filme gira em torno dele e, em mais do que um instante, o realizador John Carroll Lynch reconheceu o projeto como sendo uma homenagem.

 

O personagem-título vive sozinho numa pequena cidade dos Estados Unidos. Tem uma rotina de exercícios, fala com toda a gente – do café, da mercearia, do bar. Daí para um retrato algo melancólico da velhice é um passo – mais ainda quando o protagonista, num dado momento, se dá conta da sua situação e é obrigado a entrar num processo de aceitação.

 

O SAPO Mag conversou com John Carroll Lynch, que esteve em Lisboa para antestreia portuguesa. Mais conhecido por uma longa carreira como ator, que inclui a série “American Horror Story” e filmes como "Zodiac" e, mais recentemente, "O Fundador", como secundário de Michael Keaton, esta sua estreia como realizador agrada pela simplicidade e por um belo simbolismo estabelecido a meio do filme. Este vai resultar numa cena emocionante perto do fim – sobre a qual o próprio fala com emoção.

 

E quem também apareceu para a “homenagem” foi David Lynch – interpretando um idoso que quer deixar os seus bens para uma tartaruga… Ou melhor, para um cágado.

 

 

Um ponto de viragem na história é simbolizada por uma afirmação do protagonista: existe uma diferença entre estar sozinho ou viver na solidão.

 

Acho que isso permite ao filme trabalhar a questão de quando uma pessoa subitamente se sente solitária. Ele estava sozinho e isso nunca foi um problema para ele. A solidão é que é nova, o sentimento de ter de enfrentar tudo apenas por ele mesmo. É diferente. Quando ele estava na Marinha, no navio, ele não estava sozinho, ele estava enfrentando alguma coisa, mas estava conectado às outras pessoas.

 

Nas circunstâncias após a sua queda, ele já não sente estas conexões. Foi uma das questões que achei fascinante no argumento. Na nossa essência enquanto seres humanos estamos fundamentalmente sozinhos, mas não tem de ser assim.

 

Também adotou uma visão não-religiosa na sua abordagem de questões como a vida e a morte. Há a cena em que filma uma igreja, Harry Dean Stanton surge na imagem, pensamos que ele vai entrar, mas ele segue em frente… E, depois, claro, há todo aquele discurso sobre o vazio…

 

Em primeiro lugar, essa foi uma adaptação do guião em função das crenças do próprio Harry Dean. Era o que ele pensava, ‘ninguém está no comando, nós não somos nada’. Em termos dramáticos achei poderoso. Quando era jovem e participava num programa de apoio conheci um padre que tinha uma fé enorme. Ele estava a morrer, sabia isso, e tinha 100% de fé que ia para o céu. Ele ‘sabia’ que ia ver o seu salvador. Lucky está a enfrentar esse processo sem a mesma crença – não há ressurreição, não há reencarnação. Há vida e morte, é tudo.

 

Dramaticamente é algo poderoso – isso independente das minhas convicções pessoais. Neste sentido, não compactuo com o absoluto ateísmo de Harry Dean, tal como não tenho a fé do padre que citei. Fico numa zona cinzenta entre as duas coisas.

 

O que sei é que é algo que vou ter que enfrentar, mais cedo ou mais tarde. Era o que acontecia ao personagem – é algo que acontece hoje ao meu pai, por exemplo, que tem 86 anos. Temos que enfrentar sempre isso, podemos esquecer-nos, a minha mente consegue esquecer isso, mas claro que chega a altura em que temos que encarar a nossa finitude.

 

Como acha que o próprio Harry Dean Stanton lidava com isso? Acha que ele tinha medo?

 

Na altura em que estávamos a trabalhar juntos ele já tinha um diagnóstico de cancro. Mas Harry Dean, apesar disto e de já ter 90 anos, estava numa forma estupenda. Claro que, no final, ele estava exausto, foi imenso trabalho. Não sei o que ele pensou quando ficou doente.

 

Por razões que têm a ver com o filme, mas também com o que se passa fora dele, há um momento tocante quando Harry Dean Stanton rompe a quarta parede.

 

É um belo momento. Veio já no instante final da pré-produção, quando um dos produtores e coargumentista, Drago Sumonja, deu a ideia – inspirada numa cena de “Smokey and the Bandit” [“Os Bons e os Maus”, de 1977], quando Burt Reynolds olha para a câmara, ‘para nós’ e depois vai embora.

 

Na altura gostei muito da ideia – pensei ‘temos algo aqui’. Mais tarde, quando a vi no ‘set’, fiquei petrificado. O filme teve a sua estreia no South by Southwest e o público ficou eletrizado. Penso que criamos um momento muito emocionante. Harry faleceu 14 meses depois de ter gravado aquilo. Isso faz-me pensar na capacidade indefinida de uma cena se estender no tempo. Ainda hoje sinto-o muito presente quando penso naquele momento.

 

 

Como o conheceu e como o projeto tomou forma?

 

Conheci Harry Dean socialmente anos antes do projeto. O primeiro convite que tive foi como ator – e disse que ‘sim, ponham-me na lista’. O projeto só arrancou mais tarde e aí convidaram-me para realizador pois sabiam que queria fazer isso e achavam que era uma peça de ator. Depois de três meses de trabalho no argumento com Drago e Logan Sparks, ele ficou cada vez melhor. Quando as filmagens começaram, sentia-me confiante, todo o filme estava no papel.

 

Pretende continuar a fazer filmes como realizador?

 

Certamente. Sou principalmente um ator, gosto demasiado disto para o deixar de ser. Mas gostaria de fazer um novo filme como realizador – até para ver o que aprendi com este. Não acredito que uma única experiência seja suficiente para aprendermos muito. Melhorei como ator repetindo diversas vezes o processo e é o que quero fazer aqui.

 

Mas já tem algo específico?

 

Sim, eu e um escritor estamos a trabalhar num projeto, mas também estou aberto a outras possibilidades. Não sei se este será, necessariamente, o primeiro. Tento empregar uma ideia inspirada em Robert Altman, li sobre os seus métodos de produção. É algo como ‘cozinhar alguma coisa enquanto espera alguém aparecer ao telefone com algo já cozido”. Mas há uma ideia principal na qual estamos a trabalhar. Acho que vai ser muito bom, gosto bastante dela.

 

É sua primeira vez em Lisboa?

 

Sim, é a minha primeira vez em Portugal e infelizmente não terei tempo para conhecer Lisboa. Também já percebi que tampouco é uma cidade para dois dias. É o tipo de lugar que discutirei com a minha esposa a possibilidade de passarmos aqui um mês.

 

Não gosto de viajar em ‘sightseeing’, o que me interessa é conhecer os cafés, os restaurantes, a vizinhança por períodos de, pelo menos, duas ou três semanas. As cidades não são compostas apenas de lindos edifícios com aqueles que já pude observar em Lisboa – com a sua belíssima arquitetura e toda a sua História. Não é uma cidade para dois dias e certamente não será a última vez que venho cá.

 

"Lucky" está em exibição nas salas portuguesas.

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por Roni Nunes às 22:45

Estreia em Portugal o filme vencedor da Palma de Ouro em Cannes

por Roni Nunes, Quinta-feira, 23.11.17

Publicado por Roni Nunes em SAPO Mag

 

O sueco “O Quadrado” já está nas salas e será dos filmes mais próximos de uma comédia a vencer o Festival de Cannes.
 
 

"O Quadrado" aterrou na Croisette em “tempo de compensação”: o muito metódico realizador Ruben Östlund levou uns consideráveis cinco meses para editá-lo e fez alterações até pouco antes do evento. Antes já lá iam 70 dias de filmagens – apenas um “take” por dia.

 

Foi muito estressante”, revelou após ganhar a Palma de Ouro. “Queria muito concorrer, queria muito ganhar. Quem diz que não se importa com prémios está a mentir!”, acrescentou o realizador, que já causara choque com "Força Maior", vencedor da secção "Un Certain Regard" de Cannes em 2014.

 

 

E do que trata uma obra com este estranho nome? A “story line” não é relevante: os desenlaces do quotidiano do diretor de um museu de arte contemporânea de Estocolmo (vivido por Bang Claes) estão ao serviço de uma ideia. Ou, se se preferir, várias delas – onde um mosaico reúne pequenos acontecimentos que estão sistematicamente a testar os limites da indiferença do Grande Museu Burguês em que se transformou a sociedade europeia e, por extensão, do espectador. A existir um grande tema a englobar tudo seria o dos publicitários do filme: “Até que ponto vai a sua indiferença?”.

 

Uma vítima corriqueira das sátiras pelo mundo fora é o universo das artes – principalmente o das instalações contemporâneas que tanta causam perplexidade na “audiência comum”, mais à vontade com as velhas formas do século XIX e daí para trás. O cineasta, que já expôs no mesmo circuito que critica, diz: “Visitei museus de arte em várias cidades e todos se parecem iguais. Perderam completamente a conexão com o mundo em que vivemos”.

 

Esse vazio transferiu o verdadeiro poder de choque para o “marketing” – ou não estivessem as duas áreas, desde sempre, andado em simbiose. Em "O Quadrado", o tema eclode de forma literalmente explosiva depois de uma equipa de promoção fazer um vídeo para a instituição – sempre segundo cálculos “científicos” para torná-lo viral no YouTube.

 

Como toda a proposta totalizante que se propõe fazer o “retrato de uma época”, o realizador corre os seus riscos mas têm menos hipótese de ser considerado pretensioso do que Paolo Sorrentino. A comparação não é vã: em alguns momentos o filme lembra uma versão "cómico-trash" de “A Grande Beleza”, com os planos fixos a substituir as gruas do italiano. Enquanto esse preferia a poesia, o sueco opta por destroçar todos os “statements”, os momentos de pretensão ou que cheirem a solenidade, com ruídos sonoros e interrupções bizarras. Os longos planos fixos servem para isso: dar ênfase ao discurso para depois sabotá-lo.

 

Já o velho surrealismo como forma de provocação é retirado das gavetas “buñuelianas” para chocar, incomodar, debochar. Num encontro romântico, marcado pela apatia sexual e pelo egocentrismo masculino, um chimpanzé passeia-se pelo local; observa desenhos, pinta os lábios. E, claro, há aquele momento pelo qual o filme será sempre lembrado se o resto for esquecido: o ser “primitivo” (Terry Notary) que irrompe para aterrorizar a fina nata da elite sueca num jantar. E de onde surgiu tal criatura (e o seu ator)? Do YouTube, claro!

 

Muito mais cabe dentro deste "quadrado" do que o descrito neste artigo: cabe ao espectador escolher o caminho da Confiança e testar os seus limites.

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por Roni Nunes às 19:55


Comentários recentes

  • Cleber Nunes

    Sem dúvida é um filme que me despertou interesse ...