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Paulo Sacramento: "Não podemos aceitar as perdas civilizatórias em curso no Brasil"

por Roni Nunes, Quinta-feira, 16.05.19

Artigo originalmente postado em C7nema. 

 

 

 

O cineasta vê similaridades entre o que se passa no Brasil e a narrativa do seu filme, O Olho e a Faca. O filme está em Competição no FESTin e é exibido na próxima quinta-feira no Cinema City Alvalade (Av. Roma, 100). Em entrevista ao C7nema, falou sobre a complexidade das filmagens, as vicissitudes do seu protagonista e o dramático momento da política brasileira – afirmando que não se pode "...aceitar passivamente as perdas civilizatórias que estão em curso atualmente no Brasil".

 

Com um forte sentido de exploração do espaço, O Olho e a Facapromove um inédito "passeio" dramático por uma estação petrolífera. É onde se desencadeia o drama de um protagonista (vivido por Rodrigo Lombardi) que, depois de uma promoção, começa a ver os fios da sua vida "ideal" ruir. Estes afetam os seus laços de camaradagem no trabalho e os conflitos da vida doméstica quando está "em terra".

 

É a segunda longa-metragem de ficção do cineasta, cujo primeiro trabalho, Riocorrente, foi selecionada para o Festival de Roterdão, e O Homem da Grade de Ferro, documentário de 2003, venceu dois prémios no Festival de Tribeca.

 

Há momentos em O Olho e a Faca que sugerem um registo quase documental sobre uma estação petrolífera. De onde veio o interesse por esse cenário/ambiente?

 

Desde o início do projeto eu buscava um ambiente de grande impacto visual, que traduzisse o resultado positivo do esforço racional e pragmático do homem em seu trabalho. Encontrei na plataforma de petróleo um lugar ideal, que pude trabalhar como um microcosmo: um lugar ao mesmo tempo muito diferente e específico, mas onde transcorre um drama passível de ocorrer a qualquer homem comum. A plataforma é dessa maneira um pano de fundo luxuoso para a história de nosso personagem, mas que acrescenta ao filme camadas simbólicas e visuais de muita importância.

 

 

O filme regista alguns belos movimentos de câmera que envolvem uma circulação pela plataforma. Como foi a montagem visual destas cenas?

 

Filmar na plataforma foi um enorme desafio porque existem dezenas de regras de segurança que não podem ser quebradas sob nenhuma hipótese. A própria presença de uma equipe de filmagem em um ambiente desses, com a produção de petróleo em pleno funcionamento, é inusitada e quiça inédita. Eu sabia que pelas próprias limitações técnicas o tom dessa parte do filme seria diferente das filmagens realizadas em terra, mas não queria optar por algo óbvio como por exemplo uma câmera balançando nas mãos do operador. Ao contrário, decidi levar um Steadicam para lá que ficou todo o tempo conosco (obrigado ao grande operador Eric Catelan). Isso nos permitiu "deslizar" com a câmera livremente por toda a plataforma e passar a sensação ao espectador de fazer parte daquele cotidiano, sentindo a própria respiração da plataforma como algo normal e familiar.

 

Um dos temas que marcam o conflito no filme é o forte sentido de coletividade num grupo laboral – no caso específico o de uma plataforma petrolífera.

 

Sim, foi muito importante primeiro construir um grupo com forte laços de amizade e confiança entre si para depois romper esses laços e criar o sentimento de abandono e solidão do personagem principal. Tratava-se de ter um material sólido para desconstruir, e nesse sentido a relação de trabalho e interdependência dos petroleiros veio muito a calhar para nossa história.

 

O outro conflito envolve a personalidade do protagonista, que você vai mostrando como alguém que está sempre a adiar as decisões até que tudo começa a desmoronar...

 

Exato, trata-se de uma personagem que acredita que as coisas vão se resolver por si mesmas, que a estabilidade é o estado por excelência das coisas e que o equilíbrio se restabelece naturalmente com o tempo. Mas sua inoperância, ou melhor, sua incapacidade de agir leva-o cada vez mais a um beco sem saída. O filme narra a dificuldade dessa personagem de enxergar a derrocada de seu mundo ideal, derrocada que se dá a partir de uma notícia aparentemente boa: uma promoção em seu trabalho.

 

Já tem novos projetos?

 

O Olho e a Faca foi um projeto que demandou um esforço muito grande para ser realizado, sete anos. Nesse período o Brasil se transformou e a própria atividade cinematográfica hoje se vê em xeque frente a um futuro de pouco ou nenhum investimento estatal na esfera federal. É um momento de cautela e reflexão, de compreender nosso papel nesta nova ordem e de como reconstruir nossa trajetória. Vejo em meu país uma similaridade simbólica muito grande com a narrativa do próprio filme. Precisamos todos abrir nossos olhos, olhar e compreender o que se passa, e não apenas aceitar passivamente as perdas civilizatórias que estão em curso atualmente no Brasil.

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por Roni Nunes às 00:36

“Exploitation” à brasileira: ascensão e queda da Boca do Lixo

por Roni Nunes, Domingo, 09.09.18

Artigo originalmente postado em C7nema.

Roni Nunes & Hugo Gomes

 

Tiago Monteiro l Foto.: Sabrina D. Marques

 

O MOTELx decorre em Lisboa e o cinema brasileiro volta a estar em pauta: neste sábado Morto não Fala, destacado pelo festival como um dos grandes do evento, traz a estreia na direção de Dennison Ramalho, antigo colaborador do mítico Zé do Caixão.

 

O C7nema aproveita a ocasião para uma belíssima conversa com Tiago Monteiro, professor do curso de Produção Cultural do Instituto Federal do Rio de Janeiro, que esteve no festival no ano passado para uma “masterclass” que falava, justamente sobre a preservação da cultura popular e onde se sobressaía a história muito particular da “exploitation” à brasileira.

 

Esta manifestou-se através de uma indústria comercialmente bem-sucedida entre os anos 70 e o início da década de 80, que ficou associada à uma zona degradada do centro de São Paulo, onde circulavam pequenos criminosos e prostitutas, designada por Boca do Lixo. Essa produção, que atingia milhares de espectadores, foi sempre muito mal tratada pela intelectualidade brasileira e só nos últimos anos têm merecido uma reavaliação académica.

 

Em primeiro lugar, porque lhe interessou essa investigação sobre a Boca do Lixo?

 

É uma pergunta curiosa: a minha supervisora no pós-doutoramento, momento onde surgiu essa investigação a partir de uma tese sobre o horror no cinema brasileiro, dizia que se ela estivesse investigando ‘comédia romântica argentina’, por exemplo, ninguém faria a pergunta. As pessoas questionam que tipo de curiosidade leva a alguém a interessar-se por esse tipo de cinema.

 

A Mulher que Inventou o Amor (Jean Garret, 1979)

 

Eu nasci em 1982, numa época na qual o cinema brasileiro começava a atravessar período de crise, que o afasta do seu público e que lega para posteridade o estigma de cinema ruim, de baixa qualidade, que só tem sexo e calão. Tirando os filmes dos Trapalhões, ele não tinha circulação expressiva. Ao mesmo tempo esses filmes da Boca do Lixo, que eu não sabia o que era, passavam na televisão, mas sempre de madrugada, tinham uma aura clandestina. Eles tinham um apelo erótico e eram uma espécie de rito de passagem por serem proibidos pelos pais, eram filmes que eu não podia ver.

 

Depois, quando se estuda mais, uma pessoa começa a separar mais o discurso entre aquilo que o senso comum classifica como ruim e de baixa qualidade e aquilo que tem, logo à partida, um valor histórico apenas por ter sido feito e dizer algum coisa sobre o período no qual isso aconteceu. Aí eu comecei a desenvolver um interesse por esses temas que a historiografia tradicional queria varrer para debaixo do tapete.

 

Esse processo de silenciamento vai por vários lados, ou seja, não só as pessoas não têm conhecimento desse tipo de produção como não existem lançamentos em DVD ou qualquer tentativa de preservação da memória audiovisual dessa produção.

 

Mas não existe, em geral, preservação do cinema brasileiro dos anos 70 e 80 – mesmo no caso das produções da Embrafilme, por exemplo…

 

Sim, mas os da Embrafilme de alguma forma acabam sobreviver um pouco mais ao tempo e alguns chegam ao DVD por força de terem sido produzidos e distribuídos por uma entidade oficial. Era um órgão do governo forte no tempo da ditadura nos anos 70 que não só produzia como também distribuía filmes e supervisionava a exibição … São mais fáceis de se encontrar, não significando que estejam legitimados. O problema é que os produtores da Boca não faziam parte desse grupo da Embrafilme, antes pelo contrário.

 

A imprensa então nem sequer referia esses filmes?

 

A imprensa referia, mas era para falar mal, o que ainda piorava a situação. Havia uma espécie de preconceito. Alguns filmes são tecnicamente muito precários, eu não estou entrando no mérito da qualidade dos filmes. Mas havia um certo discurso, um senso comum, que deslegitimava esses filmes em função da origem e do público para os quais eram destinados.

 

Ou seja, os realizadores eram populares, não tinham formação intelectual, académica, começavam como técnicos e depois iam aprendendo até tornarem-se realizadores. Eles queriam fazer um cinema voltado para um público que vinha do mesmo lugar que eles: as classes populares.

 

Amor, Palavra Prostituta (Carlos Reichenbach, 1982)

 

Então, cada vez que saía um filme da Boca, a imprensa ‘caía em cima’, dizendo que eram grosseiros, mal acabados e atribuindo-lhes o rótulo de pornochanchada – que não se justificava. Tecnicamente, esse é um formato que era inspirado nas comédias eróticas italianas dos anos 60 e não eram “porno”, no máximo “softcore”. Muitos também não eram comédias e havia muitas propostas completamente diferenciadas, mas a repetição deste discurso terminou por levar que fossem invariavelmente rotulados de apelativos e de querer ganhar dinheiro a qualquer custo.

 

Essa é uma ideia bizarra, porque todas as indústrias, como a de Hollywood ou a italiana dos anos 60, querem “ganhar dinheiro a qualquer custo”…

 

Mas acho que em países que como o Brasil a nossa identidade audiovisual para o mundo se fundamentou no conceito de “cinema de autor”. Eu não gosto deste rótulo e desta separação por duas razões: em primeiro lugar fica parecendo que não é possível a perspetiva autoral na indústria e em segundo que cinema de autor ou de arte não tem pretensões comerciais, que não está inserido numa lógica de mercado. O que se tenta fazer hoje em dia é identificar na trajetória de alguns autores da Boca um olhar que pode ser chamado de autoral e que articula outras preocupações que vão além da mera pretensão comercial.

 

Esse rótulo de “pornochanchada” destruiu a ideia de se levar a sério a história do cinema brasileiro…

 

O nome pornochanchada surgiu num momento muito específico para nomear um tipo de comédia urbana erótica calcada na Itália. Eram filmes em episódios com histórias picantes, mas não eram pornográficos. Aliás, o primeiro filme de sexo explícito no Brasil só surge em 1983. Já o termo ‘chanchada’ vinha das comédias produzidas nos anos 40 pela Atlântida. A imprensa começa a recorrer a este termo para nomear todo e qualquer tipo de filme que tinha esse apelo mais popular, independente de ser cómico, o que frequentemente não eram.

O Escorpião Escarlate (Ivan Cardoso, 1990)

 

Há uma declaração do Cláudio Cunha, um realizador da Boca, muito ilustrativa a esse respeito. Ele contava que cada vez que ‘lançava um filme que era um drama vinha a crítica e chamava de ´pornodrama´. Aí eu fazia um filme que se passava no ambiente da ‘disco’ e chamavam de pornodiscoteca. Eu estava tão farto disto que decidi fazer mesmo um filme pornográfico’. Então ele fez Oh! Rebuceteio!(risos). Que, aliás, é ótimo, um filme muito engraçado, muito bem acabado, feito numa época em que as pessoas pensavam que o sexo explícito pudesse render algo mais em termos de arte. É o último filme dele, de 1984.

 

No final dos anos 70 os filmes ficam mais gráficos. No início dos anos 80 começam a aparecer filmes como Império dos Sentidos (Império da Paixão no Brasil) e Calígula e a censura estava no fim. Então o que estava reprimido começa a circular. Eles estreavam no Brasil quando medidas judiciais, quando um advogado dizia que aquilo era ‘arte’ e não se poderia proibir. Então quando se abriu a porta para o primeiro muitos vieram a seguir.

 

Mas aí os exibidores perceberam que estava dando dinheiro e já não queriam apenas “sugestão”, mas sexo explícito mesmo. Entre 1983 e 1984 há uma enxurrada deles. Mas assim como surge também rapidamente se esgota: passada a demanda reprimida, perde-se o interesse. E aí a Boca começa a entrar em crise, pois fica sem ter para onde ir uma vez que, depois de passar cinema pornográfico, você já não consegue voltar a exibir outro tipo de cinema.

 

Quando os “blockbusters” começam a tomar conta do mercado há produtores de baixo orçamento, como Roger Corman, que usaram outras alternativas, como o VHS. Na Boca não se pensou nisto?

 

Não, mas aí eu acho que isso tem a ver com o défice tecnológico do Brasil na época. O VHS entra no país alguns anos depois dos Estados Unidos. De qualquer foi uma série de fatores que dita o fim da Boca – entre as quais o facto do consumo de filmes pornográficos que persistiu ser de filmes americanos. Os exibidores concluíram que era mais barato comprar produtos prontos dos Estados Unidos.

 

Além disto a própria Embrafilme entra em crise – muito também em função de má gestão, de falta de cobrança de resultados aos produtores que recebiam dinheiro

 

Mais tarde os cinemas do centro das grandes cidades começam a fechar, surgem as ’salas multiplex’ e, no início dos anos 90, o presidente Fernando Collor de Mello põe a ‘pá de cal’ na produção audiovisual brasileira – que ficou sem existir durante alguns anos.

Material promocional de Excitação (Jean Garrett, 1976)

 

Esse processo nos anos 80 é mundial, todos os centros de produção entram em crise e Hollywood toma conta de tudo.

 

Carlos Reichenbach (*importante cineasta brasileiro), que também produziu na Boca, tinha uma perspetiva mais alargada sobre isso: ele defendia que o fim da Boca era uma estratégia das ‘majors’, porque os filmes brasileiros, por mais precários que eles fossem, atraíam o público. E muitas vezes ganhavam dos filmes americanos em termos de bilheteira.

 

Entre 1975 e 1982, por exemplo, é comum encontrar obras que levavam entre 3 e 5 milhões de espectadores às salas. Hoje em dia é muito raro um filme nacional atingir esses valores – a maioria dos bem-sucedidos fica em torno de 100 mil. Era uma quantidade de público muito expressiva.

 

Há um movimento académico, mais crítico, tentando resgatar essa produção no Brasil?

 

Acho que sim, está em sintonia com o que tem acontecido por aí. A própria questão de haver uma produção académica sobre terror já é relevante. Há pessoas que cresceram vendo esse tipo de filme que eventualmente chegaram à Academia, que é um lugar legitimado, e começam a olhar e a dizer: ‘mas por que eu tenho que só discutir o Glauber Rocha e o Manoel de Oliveira’? Esses filmes também existiram, eles têm sentido histórico – independente da questão da qualidade. Existe um esforço das novas gerações de investigadores de legitimar teoricamente essa produção.

 

O que eu acho que falta mais nesse momento é uma preocupação não só com o armazenar o espólio, como com investimento na restauração, possibilitando que ele circule e seja preservado. Os negativos vão se perder e se não houver um pensamento no sentido de digitalizar, produzir versões melhoradas, tudo o que vai restar são as cópias em muito mau estado que por vezes se encontram por aí. Não sou contra que se ganha dinheiro com isso, mas que se ganha corretamente e não simplesmente comercializando produtos sem qualidade alguma.

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por Roni Nunes às 19:00

MOTELx: “nós adoramos monstros, demónios e o mal”- Andy Nyman e Jeremy Dyson

por Roni Nunes, Sábado, 08.09.18

Artigo originalmente postado em C7nema. 

 

Ghost Stories, que será exibido no sábado (08/09) no âmbito da edição em curso do Motelx, recupera as narrativas episódicas do cinema inglês – na tradição dos “portmanteaus” de clássicos comoDead of Night e as histórias da Amicus dos anos 60.

 

Realizado por Andy Nyman e Jeremy Dyson a partir de uma peça de sucesso encenada por eles próprios, envereda pelas tradicionais histórias de fantasmas pelas quais as ilhas são pródigas desde o final do século XVIII e traz o “hobbit” Martin Freeman como um dos protagonistas.

 

O filme, eventualmente um dos mais fortes candidatos ao prémio do público do festival, gira em torno de uma investigação promovida por um especialista em desmitificar fenómenos paranormais (Andy Nyman) que tem pela frente três casos “insolúveis” para tentar resolver.

 

Nyman, que estará no cinema São Jorge para uma “masterclass” depois do filme, falou com o C7nema e esclareceu, entre outras coisas, questões cruciais como por que os ingleses gostam de “assustarem-se uns aos outros”...

 

Existe um aspeto tradicional nas histórias de fantasmas que também abordam no filme que relaciona os fantasmas com uma dimensão moral, uma expiação do passado.

 

Certamente. Um dos aspetos das histórias de fantasmas que nos fascinava é sua moralidade, que é profundamente judaico-cristã. Um dos erros frequentes que as pessoas que não gostam de histórias de terror cometem é pensarem que elas são guiadas pela subversão, por noções destrutivas. Na realidade a maior parte delas traz uma posição profundamente moral. Se você peca, você paga – e um preço bem alto.

 

 

Diferentes personagens no filme põe a questão de que o “cérebro vê o que ele quer”. Isso significa que vocês preferem uma abordagem psicológica em vez de uma sobrenatural?

 

Bom, isso é uma questão complexa. No caso dos personagens de Ghost Stories a rota é, de facto, uma abordagem psicológica. Mas outras histórias trazem diferentes versões. Nós adoramos a ideia de monstros, demónios e do mal. Vendo como eles enquadram o nosso trabalho é um forte impulso e nós queríamos explorá-lo. Monstros irreais num mundo real: é delicioso!

 

Em termos visuais vocês trazem elementos mais contemporâneos, como o uso de objetos inanimados e monstros como manifestações de terror. Como vocês conceberam essa parte?

 

Nós sabíamos que queríamos contar uma história clássica. Muitas das nossas influências vêm de daí. Nós estávamos mais interessados em criar um tipo de medo que vai aos poucos tomando conta e não deixa o espectador escapar. Neste sentido, deste o primeiro frame nós o informamos de que alguma coisa está profundamente errado!

 

O cinema inglês tem a tradição dos portmanteaus, conforme iniciada com Dead of Night e particularmente explorada pela Amicus. Esse tipo de estrutura estava presente na peça ou vocês escolheram especialmente para o filme?

 

A peça de Ghost Stories seguia uma estrutura similar – três histórias que eram contadas individualmente mas estavam inextricavelmente ligadas. Nós adoramos a herança britânica dos “portmanteaus” e “Dead of Night” é de longe o melhor e serviu de guia para nós. Ele funciona tão bem porque os protagonistas da história são muito fortes. A ligação entre as histórias não são apenas um artifício, ela tem um papel importante.

 

Os ingleses sempre adoraram e difundiram pelo mundo histórias de fantasmas. Por que você acha que isso acontece? 

 

É estranho, não? Essa nossa herança fantasmagórica… Talvez isso venha da história pagã do nosso país. Uma coisa que nós esquecemos no mundo globalizado dos nossos dias, onde estamos tão conectados, é que a Inglaterra é apenas uma pequena ilha, apartada de todo o mundo… e chove imenso! Claro que então nós gostamos de assustarmos uns aos outros!

 

Como foi a entrada de Martin Freeman no projeto?

 

Nós sabíamos que para o papel precisaríamos uma estrela com um perfil internacional, mas também teria de ser britânico e um ator com que fosse bom em drama e comédia. Martin foi o primeiro nome que nós pensamos. Eu tinha trabalhado com ele num filme chamado ‘The Eichiman Show’ e sabia o quão brilhante ele era. Nós enviamos o argumento ao seu agente e felizmente ele adorou e entrou no projeto. A sua performance é simplesmente incrível.

 

Vocês têm novos projetos?

 

Jeremy e eu estamos a trabalhar no nosso próximo argumento, que é muito excitante. Eu também filmei alguns projetos que serão lançados no próximo ano – como uma série da BBC com a Netflix chamadaWanderlust, com Toni Colette, e outra da Amazon, Hanna, e o novo da Renée Zellweger sobre a Judy Garland, Judy, e por fim, um papel num filme da Disney, Jungle Cruise. Têm sido uns tempos ocupados…

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por Roni Nunes às 17:21

Motelx: “Extirpar a sexualidade das mulheres sempre foi o alvo da caça às bruxas”, diz Lukas Feigelfeld

por Roni Nunes, Quarta-feira, 05.09.18

 

Artigo originalmente postado em C7nema.

Por Roni Nunes

 

Hagazussa – A Heathen's Curse é exibido na próxima quinta-feira no âmbito da Competição do Motelx e o C7nema conversou com o realizador austríaco Lukas Feigelfeld sobre este imponente registo passado nos Alpes, tendo como pano de fundo histórico um tempo em que bruxas eram queimadas e "goblins" assombravam as montanhas...

 

O filme conta a história de Albrun (Aleksandra Cwen na versão adulta), que vive num lugar remoto dos Alpes austríacos. Por alguma razão ela herda da mãe o "carimbo" de bruxa ("hagazussa" é uma palavra germânica antiga para designar a palavra) e é ostracizada pela comunidade próxima. Vivendo com seu bebé quase em completa solidão, inserida num vasto cenário magnificamente filmado por Feigelfeld, cuja formação inicial veio da fotografia, ela experimenta terrores reais ou imaginados enquanto sente lentamente o seu mundo mental ruir.

 

Hagazussa é a primeira longa-metragem do cineasta, que cresceu na região que retrata mas realizou seus estudos de cinema na Alemanha. Sua média-metragem Interferenz passava-se no mar, onde o tema da solidão já era uma das suas premissas essenciais. Este projeto, que teve uma montagem financeira tão difícil quanto as suas filmagens em meio as intempéries imprevisíveis das montanhas, chega a Portugal depois de um sólido trajeto no circuito dos festivais – começando por Sitges. Não há previsão de estreia por cá e, portanto... só no Motelx!

 

 

Sempre houve uma conexão implícita entre a sexualidade feminina e a bruxaria, algo que você também explorou no seu filme...

 

As mulheres acusadas de bruxaria na Idade Média eram principalmente crentes em religiões naturais ou no paganismo, tinham uma mente mais aberta, viviam mais apartadas da sociedade ou simplesmente não eram cristãs que se restringiam ao código moral da igreja católica. Naturalmente que as perseguições estavam conectadas com experiências de liberdade sexual e, no caso das mulheres, manifestações de qualquer tipo de sexualidade eram consideradas erradas, pervertidas ou próprias de bruxas. Extirpar a sexualidade das mulheres era um alvo primordial dos seus perseguidores nestes tempos.

 

Muitas vezes as mulheres eram acusadas de ter relações com o diabo e queimadas por isso. Essas acusações vinham muitas vezes de vizinhos que viam-nas tendo sexo com um "diabo invisível", o que significava, essencialmente, que estavam se masturbando. Então a história era distorcida e ela era queimada. Explorar esses temas e os elementos essenciais da caça às bruxas era muito importante para criar a personagem de Albrun.

 

Você gosta de explorar nos seus filmes temas como o da solidão. Por que esse assunto parece fasciná-lo?

 

Eu sou fascinado pela vida interior das pessoas. Há tanto por explorar. A solidão, especialmente em casos extremos, pode favorecer nos humanos o surgimento de características mentais muitas estranhas ou particulares.

 

No caso de Hagazussa, elas são importantes para o desenvolvimento da psicose da protagonista. A forma como ela é confrontado com o "mundo humano", a sociedade da aldeia, sua crueldade e falsidade, é crucial para fazer com que, de alguma forma, ela se torne a bruxa que todos dizem que ela é.

 

No meu novo projeto, ainda em fase de escrita, os personagens principais também vão viver algum tipo de solidão, embora desta vez minha ideia seja explorar o tema situando-os numa cidade grande e povoada.

 

 

Existe uma tradição literária, vinda de Ann Radcliffe e das irmãs Bronte, onde a mulher é o centro da história e os seus dilemas interiores estão interligados com o ambiente natural. No caso do cinema, Val Lewton e Jacques Tourneur exploravam essa conexão nos anos 40. Você teve alguma dessas referências em mente quando desenvolveu o projeto ou apenas pensou em artistas mais recentes?

 

Eu não fui necessária e diretamente inspirado por essas fontes, mas também não por artistas mais recentes. A inspiração para desenhar a personagem de Albrun veio mais do contexto histórico e místico do local ela se encontra.

 

Depois de perceber o quanto isso tudo esta interligado, não apenas a superstição e as tradições desta área dos Alpes, mas também a luta e o sofrimento das mulheres, eu tente encontrar um entendimento sobre como uma pessoa como ela deve ter sido – alguém com uma capacidade de cometer uma to horrível, mas sofrendo de paranoia psicótica num tempo em que se acreditava que fantasmas e "goblins" perambulavam pelas florestas à noite...

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por Roni Nunes às 21:17

Iris Bry: atriz revelação de "As Guardiãs" fala do lado feminino da Primeira Guerra Mundial

por Roni Nunes, Sexta-feira, 08.06.18

Artigo originalmente postado no Sapo.

Por Roni Nunes

 

Iris Bry: atriz revelação de
 

Cada vez mais revisões históricas apelam para análises de aspetos tradicionalmente negligenciados pelos manuais de História e pelas abordagems artísticas em geral.

 

O realizador francês Xavier Beauvois (o mesmo do aclamado "Dos Homens e dos Deuses") propôs-se, em "As Guardiãs", que chegou às salas portuguesas, uma abordagem sobre um dos conflitos mais sangrentos de sempre, a Primeira Guerra Mundial (então conhecida como a Grande Guerra), pelo prisma não de quem foi para a frente de batalha, mas de quem ficou para trás: idosos, crianças e, principalmente, mulheres, a quem cabia assegurar o sustento, as duras lidas no campo e, pior que tudo, aguardar tempos intermináveis por notícias – que podiam ser as piores possíveis.

 

Estreado no último Festival de Toronto e a chegar esta semana às salas potuguesas, trata-se de uma proposta dramática cadenciada e equilibrada, visualmente construída ao pormenor (a fotografia é de Caroline Champetier), sobre a dura realidade dos tempos de guerra em geral, das mulheres em particular.

 

Um dos pilares dramáticos é a jovem atriz Iris Bry, que faz uma estreia de relevo e contracena à altura com veteranas como Nathalie Baye sem nunca antes ter pisado num “set” de filmagem. A sua personagem, Francine, mais do que o trabalho braçal executado de forma estoica na quinta, trará também desestabilização familiar.

 

Em Lisboa para antestreia, Iris Bry conversou com o SAPO Mag.

 

"As Guardiãs" é um filme sobre mulheres fortes que não têm muito tempo para lamentar as suas perdas ou dar atenção aos seus desejos. A sua personagem é um exemplo deste comportamento estoico.

 

 

É também um filme de mulheres que assumem um novo papel na sociedade francesa enquanto os homens estavam fora. A sua personagem tem um papel forte, nomeadamente quando diz que o filho terá o seu nome.

 

Sim, é muito importante. Naquela época havia muitas “filhas-mães”, mulheres que se encontravam sozinhas porque os maridos morriam e muitas famílias que se encontravam órfãs de pai, irmão, etc. Por isso é importante que ela lhe queira dar o seu nome e isso é absolutamente novo, uma vez que, até então, as mulheres tentavam dar um batismo aos seus filhos de forma a que não carregassem um nome “problemático”. No caso do filme é absolutamente excecional uma mulher que não só educa o seu filho sozinha, mas que, ainda mais, quer dar-lhe o seu nome, com tudo o que isso implica em termos de condição social.

 

Foi o seu primeiro projeto. Como foi a sua entrada?

 

Isso tudo foi bastante grandioso, porque nunca tinha postos os pés num “plateau” de cinema. Não sabia o que era, não conhecia a hierarquia do mundo do cinema.  Não sabia dizer o que, numa rodagem, faz o assistente de câmara, o editor… Não tinha noção nenhuma e de repente encontro-me numa “set” com um grande realizador e uma equipa de altíssimo nível, que incluía Caroline Champetier e Anaïs Romand – uma das maiores especialistas francesas de figurinos de época. Foi grandioso e deixei-me levar pela experiência, queria deixar-me surpreender, descobrir. Nos primeiros dias tentei compreender como é que funcionava e é incrível para alguém habituado às cadeiras do cinema encontrar-se do outro lado e dizer ‘Ah, afinal é assim que funciona. Muito bem…’. Foi verdadeiramente novidade em estado puro.

Iris Bry em Lisboa

 

Como é que foi trabalhar com a Nathalie Baye?

 

Foi muito agradável, porque a Nathalie é alguém muito simples, calorosa e simpática. No início foi muito impressionante e depois, bastante depressa, tivemos algumas conversas entre cenas, um pouco fúteis da vida de todos os dias… É parvo de dizer, mas depois torna-se uma colega de trabalho, no sentido em que trabalhamos juntas pelo filme. Sim, é Nathalie Baye, mas partilhamos coisa tão estranhas – como quando apanhamos estrume as duas [risos]. Este tipo de ações no filme que fazem com que tenhamos uma ligação muito simples às coisas. Afinal, estávamos o tempo todo numa quinta de tamancos…

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por Roni Nunes às 23:44

Juliana Rojas ("As Boas Maneiras"): "Os filmes de terror são naturalmente subversivos"

por Roni Nunes, Segunda-feira, 14.05.18

Artigo originalmente postado no Sapo.

Por Roni Nunes

  

"As Boas Maneiras" está a ser lançado em DVD e na plataforma Filmin após uma aclamada exibição no festival IndieLisboa, pretexto para o SAPO Mag conversar com a corealizadora Juliana Rojas sobre esta inspirada recriação do mito do lobisomem.
 
Realizadora de
 

Se a cinematografia brasileira, diferente da política, anda em alta, "As Boas Maneiras" inscreve-se sem dificuldades entre os mais belos e sofisticados exemplares a sair do país nos últimos tempos. O filme conta a história de uma mulher rica e solitária (Marjorie Estiano) que contrata uma “baby sitter” (a portuguesa Isabél Zuaa) para tomar conta do filho que ainda está por nascer.

 

Esse é o ponto de partida para uma estranha e visualmente requintada parábola que utiliza velhos mitos góticos para uma abordagem sobre as dicotomias da sociedade brasileira atual. O filme, premiado no Festival de Locarno, foi realizado por Juliana Rojas e Marco Dutra, responsáveis por outra aventura num híbrido de géneros, “Trabalhar Cansa”, estreado em Cannes há sete anos.

 

Entre os novos projetos, Marco Dutra inicia em breve as filmagens do seu novo trabalho, “Todos os Mortos”, realizado em parceria com Caetano Gotardo, enquanto “Cidade em Campo”, projeto apenas de Juliana Rojas, está na fase de captação de financiamento.

 

Em Lisboa, "As Boas Maneiras" teve uma antestreia acalorada e divertida no Capitólio, no âmbito do IndieLisboa, e o SAPO Mag aproveitou a presença da cineasta para conversar sobre o filme, agora é lançado em DVD e na plataforma Filmin após ter estreado em algumas salas portuguesas a 3 de maio.

 

Para começar gostaria que falasse do visual do filme. Há todo um cuidado para recriar um cenário que pode ser chamado de “gótico”. Ao mesmo tempo, São Paulo surge reconhecível nos seus edifícios e nos tipos de construções dos bairros…

 

Durante a preparação eu e o Marco trabalhámos de forma muito intensa com o Rui Poças [diretor de fotografia] e o Fernando Zuccolotto, o diretor de arte, no sentido de desenvolver a identidade visual do filme. Nós queríamos esse visual de fábula para São Paulo mas, apesar deste cenário “fantástico”, queríamos um equilíbrio, não pretendíamos perder a referência da cidade real. Isto porque o filme também fala sobre questões que tem a ver com a geografia dela, os bairros e a relação entre centro e periferia.

 

No filme é colocada a questão do rio como um divisor…

 

Isso existe. A região central concentra mais riqueza. No filme é estilizado, mas existe a “marginal” que separa o centro do bairro. O que fizemos foi dar a isso uma aparência mais lúdica. Fizemos muitas experiências com cores, tentando perceber quais eram mais adequadas para cada universo e, ao mesmo tempo, trabalhámos com o Eduardo Schaal as paisagens através do "matte painting", um recurso que era muito usado pelos estúdios nos anos 60 e 70. Basicamente pintava-se à mão uma paisagem de fundo para criar uma ideia de extensão. Preferimos este método, apesar da forma realista como a tecnologia hoje permite criar novos mundos. A diferença é que antes pintava-se sobre um vidro ou no próprio cenário, hoje faz-se no computador. É interessante, pois cria uma artificialidade, um estranhamento na imagem.

 

 

Uma coisa que é notável é a forma como conseguem equilibrar na narrativa elementos insólitos vindos da animação ou do musical sem cair nas facilidades da paródia.

 

Bom, não faríamos uma paródia pois gostamos muito destes géneros. De qualquer forma, nós não pensámos nisto como uma fórmula enquanto fazíamos o filme. Estávamos sempre a investigar durante as filmagens, agindo por instinto e sem saber se iria dar certo. Só tivemos mais certezas já na fase de montagem, só aí fomos encontrando o equilíbrio e o tom para dosear cada sequência e como trabalhar a música e a parte gráfica. Guiámo-nos pelas emoções da personagem de Isabél Zuaa para transitar pelos diferentes géneros ao longo do filme.

 


Os filmes fantásticos de horror têm naturalmente de explorar criativamente outros limites, tem de querer romper tabus. A matéria-prima é o subconsciente, por isso é um cinema mais subversivo. Talvez venha daí a visceralidade de que fala. É um cinema que procura o risco e a subversão, tem um propósito político ou filosófico. Os filmes do [George] Romero, por exemplo, são políticos, falam do mal-estar da humanidade e dos conflitos sociais. “Drácula” aborda a sexualidade, o corpo, traz uma metáfora sobre questões profundas do ser humano.


De resto acho que está a melhorar, embora ainda exista um certo preconceito. É algo histórico: quando estivemos em Locarno houve uma retrospetiva sobre Jacques Tourneur, que era um cineasta de filme B e só hoje está a ter reconhecimento artístico. Tinha um trabalho maravilhoso de construção de “extra-campo”, de fotografia…

 

Ainda assim, ele e o Val Lewton foram dos menos injustiçados em relação a alguns outros da [estúdio] Universal, por exemplo.

 

Sim, mas era considerado “filme B”. Ele trabalhava sobre os cenários de outros filmes maiores. Depois incomoda-me um pouco que, no ano passado, tenham aparecido conceitos como “pós-horror”, o que denota um preconceito da crítica no sentido de que, se é bom e é de terror, tem que ter outro nome para designá-lo. Para ser sofisticado, de arte, tem que ser “pós-horror”. Já nos atribuíram esse rótulo e não gosto. Fazemos filmes de género.

 

Também incluíram uma cena de transformação… São curiosas atualmente as possibilidades da tecnologia. Na altura de “Um Lobisomem Americano em Londres” [1981], algo assim foi um marco na história dos efeitos especiais.

 

Assistimos muitos filmes de lobisomens para ver como eram representados. E percebemos que os filmes com efeitos mecânicos eram mais fortes. “Um Lobisomem Americano em Londres” era um destes casos e é muito forte até hoje. Mesmo que já não seja tão realista para os padrões atuais, tem um grande impacto emocional. O problema da computação gráfica é que ela está sempre em desenvolvimento e o que foi feito há dez anos parece falso hoje em dia.

 

Por exemplo, o “Parque Jurássico” tem partes que hoje parecem falsas, mas os efeitos mecânicos, como o daquela pata do dinossauro ao lado do carro, ainda é incrível. Nós percebemos isso mas, ao mesmo tempo, havia coisas que queríamos fazer que era impossível com efeitos mecânicos. A parte dos efeitos foi trabalhada com os nossos parceiros de produção franceses, que ajudaram também a decidir quando era melhor CGI ou maquilhagem. Mas o que era fundamental era transmitir uma ideia de humanidade e o sentimento da dor da transformação.

 

Nas fantasias de terror góticas há muito um vilão "estrangeiro", que vem de terras "exóticas", como Drácula… A vossa "criatura" vem, pelo contrário, do interior da sociedade que retratam e, de certa forma, de dentro de cada um.

 

Na questão da lenda do lobisomem o mais interessante é a dualidade da criatura, que é humana e se transforma num animal. Ele vive neste conflito de ter que equilibrar as duas partes, o que corresponde a uma dualidade que tem todo o ser humano, a instintiva e animal e a racional…

 

Daí a necessidade das "boas maneiras"…

 

Exato! E que é precisamente aquilo que os nossos personagens não têm [risos]. É um título irónico, eles estão fora das regras da sociedade, cada um à sua maneira. Em todas as camadas do filme quisemos falar destas dualidades – centro vs periferia, ricos vs pobres, etc. Estes mundo chocam e a tensão vem desta oposição.

 

Marco Dutra e Juliana Rojas com o prémio ganho no Festival de Locarno

 

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por Roni Nunes às 19:40

IndieLisboa e o "hip hop" do Porto: a história que "não se consegue contar duas vezes"

por Roni Nunes, Sábado, 12.05.18

Artigo originalmente postado no Sapo.

Por Roni Nunes

 

IndieLisboa e o hip hop do Porto: a história que
 

É a longa história de um movimento que começou em alguns locais específicos do norte do país e depois cresceu. O documentário "Não Consegues Criar o Mundo Duas Vezes" mostra a história de miúdos, as suas convivências em locais específicos do grande Porto e gosto por uma música ainda desconhecida que vinha dos Estados Unidos, o hip hop. Vencendo resistências, nomes como os Mind da Gap (foto em cima) e Dealema (foto em baixo) inscreveram-se no panorama musical português.

 

Francisco Noronha e Catarina David contam essa história. O filme tem sessão única no festival IndieLisboa esta quinta-feira (3).

 

SAPO Mag: Ao longo do filme dão muita relevância aos espaços, aos locais onde se passaram as ações. A ideia é demonstrar que essas manifestações culturais estão profundamente ligada às paisagens humanas de um determinado local?

 

Francisco Noronha: Sim, essa ligação é evidente, é fundamental, ou seja, não se podem separar as duas coisas, sobretudo num tempo como o de criancice e de juventude como o que é retratado no filme. Quando somos miúdos toda a gente passa por isso, habitamos determinados locais e até há alguns nos quais passamos a maior parte do dia em vez de ser em casa. É um hábito bonito e se calhar nunca mais vamos fazer isso, passar assim tanto tempo na rua. Nesse sentido, sem dúvida que as duas coisas andam sempre ligadas, o filme é um documentário sobre o Porto, Matosinhos, Gaia e, ao mesmo tempo, sobre locais mais específicos dentro dessas cidades, como a Câmara Municipal de Matosinhos e o espaço à sua volta, as ruas de Gaia, à volta do Hard Rock, Cedofeita e outras ruas da baixa do Porto.

 

Catarina David: As ruas do Porto marcam muito isso, marcam o espírito onde as pessoas convivem, falam todos os dias e se identificam. Traz muitas memórias pessoais e vivências nesses próprios sítios.

 

SAPO Mag: Ainda sobre a questão do espaço, os vossos entrevistados destacam frequentemente o facto de serem do Porto e das diferenças em relação a Lisboa.

 

CD: É verdade que é preciso reforçar isso, falamos no filme sobre haver uma escola do Porto, um sotaque de lá. Quanto temos cidades com uma vida bastante diferente isto reflete-se nas suas pessoas, nos “rappers” e em todos os envolvidos nos estilos musicais que representam esse local. No Porto acaba por haver muito a necessidade de se afirmar um espírito “tripeiro” e de local, do estilo "isto é o nosso espaço, o nosso terreno". Lisboa é muito maior, muito metropolitano, por isso não existe essa coisa tão vincada. No Porto o grupo que começou isto lá acabou por ter esse convívio – algo que também se reflete nas músicas.

 

FN: Essas diferenças mostram a riqueza de um país, os seus dialetos, as suas cores, são saudáveis. Na altura eram maiores, mas hoje estão mais esbatidas como se percebe ao longo do filme. Há uma música em que os Mind da Gap falam sobre isso, "Norte Sul" que é lançada logo no "Sem Cerimónias", que é o primeiro álbum deles. Aqui já há, precisamente, um espírito de encontrar amizades e "boa onda" entre pessoas de sítios diferentes.

 

 

SAPO Mag: O hip hop e o rap tem uma grande tradição de cultura de rua nos Estados Unidos – ligados também a outras formas de expressão, como o grafite e o "breakdance". Em Portugal não havia nada assim até os artistas que retratam começarem a atuar. O título do vosso filme reflete esse momento criador, que não pode ser reinventado "tal como o 'big bang'"...

 

CD: Era não só uma coisa de memória, de gravar uma coisa importante como o início de um estilo musical importante para a malta jovem. Este momento criador era muito importante para quem estava envolvido nele. Eram miúdos que estavam a conhecer um estilo novo que vinha dos Estados Unidos, com pouco acesso a ele, o que também lhe conferia um ar misterioso, dava mais vontade de fazer pesquisas sobre isso e de partilharem com quem iam encontrando e que tinham os mesmos gostos.Acabavam por ter um "mini" movimento, uma "mini" cultura, à medida que iam conhecendo pessoas. Isso foi bom de se mostrar no documentário, eles arranjarem os primeiros espaços para tocarem, para pintar, a descobrir que aquela pessoa está a usar as mesmas roupas que eu. É uma construção de um grupo, de um género musical.

 

 

FN: A acrescentar que a ideia do "big bang" é uma ideia bonita e que também aparece no filme. Por isso também no nosso título procuramos recuar até esse momento fundador, mesmo que, historicamente, ele nunca possa ser extremamente exato. O título simboliza que não se podem repetir as coisas que acontecem em determinados momentos e elas são bonitas por isso mesmo. Não quer dizer que o que vem depois seja pior ou desiluda, simplesmente houve momentos que foram o início e que têm a sua própria beleza.

 

SAPO Mag: Também em Portugal havia uma diferença grande em relação aos Estados Unidos. A questão racial era menos importante e não era um movimento do gueto, eram jovens brancos, de classe média. A certa altura no filme alguém diz que às tantas já se rimava sobre "outros planetas" porque os temas dos problemas do bairro não eram tão relevantes...

 

FN: É uma questão interessante que se prende essencialmente com o facto de, no Porto, ao contrário de Lisboa, existir uma presença mais reduzida de comunidades africanas oriundas das antigas colónias portuguesas. Lisboa teve sempre mais presente essas comunidades que hoje já vão em duas ou três gerações; no Porto só começou esse movimento mais tarde. Em Lisboa o hip hop tem desde o início a grande marca da cultura negra, que pessoalmente admiro, que mais oiço. Por outro lado, mesmo sendo feito por um número maior de pessoas brancas no Porto, ele não deixa de ser um rap consciente, de rua, combativo, de intervenção. Também existe um olhar sobre os bairros sociais, tal como em Lisboa.

 

CD: Ao mesmo tempo que é feito por vozes representativas da classe média, são vozes representativas de gente que vive no bairro, são pessoas que passam essa mensagem cá para fora.

 

SAPO Mag: Por que acham que houve tanta resistência no início aos Mind da Gap e ao rap/hip hop português?

 

FN: O hip hop era um género novo e havia um grande preconceito – como ainda hoje há. Ainda há pouco tempo um músico português muito conhecido deu uma entrevista em que falava do rap como uma expressão artística que não era música. Este tipo de coisas hoje ainda se dizem, por incrível que possa parecer. Há 20 anos era mais difícil não só em Portugal, mas em toda parte, mesmo em países como Estados Unidos, Brasil, França. Os Mind da Gap sofreram esse preconceito porque, além disto, eram do Porto – numa altura onde imprensa e a antiga vanguarda estava representada em Lisboa. De qualquer forma, são águas passadas.

 

 

SAPO Mag: Em relação à aceitação posterior, para quem cresceu nos 80 e 90 há um certo desapontamento com o facto de que as tendências musicais e as atitudes que se interligavam com elas diluíram-se num "mainstream" globalizado. No final alguém pergunta: "hoje o hip hop está massificado. Mas não era isso que nós queríamos???". Como vêem essa relação entre identidade e massificação na cultura atual, do hip hop em particular?

 

FN: É algo comum a vários fenómenos, comum a toda a arte. Desde adolescentes que achamos que só nós gostamos e partilhamos algo com os amigos e, passado um mês, quando já toda a gente gosta, vamos começar a perder a identificação pessoal. É normal. Existe uma massificação do hip hop, que é hoje a música mais ouvida em "streaming" no mundo. As vendas ultrapassaram as do rock pela primeira vez na história norte-americana. É uma boa frase do filme essa que menciona. A massificação tem sempre esses dois lados – por um lado pode entristecer-nos um pouco e por outro lado tem a vantagem de podermos levar as coisas de que gostamos a todo o lado e mostrar a mais pessoas. Posso entristecer-me com uma situação ou outra, mas vivo bem com a massificação. Gosto do rap e se posso ouvi-lo em vários sítios fico feliz por isso.

 

CD: É uma questão complicada porque realmente há um aspeto positivo e outro negativo dessa massificação. Por um lado é bom sair à noite, por exemplo, e ouvir a música com que se identifica; por outro lado é uma quase banalização que parece tirar um bocado da magia da cultura e do movimento e da forma como as pessoas se agarravam ao hip hop no início. Essa identificação com o estilo, com o movimento, com o grafite, o "breakdance" e o DJ acaba por perder um pouco o encanto com a banalização.

 

SAPO Mag: Como foi a produção do filme? Levaram muito tempo a reunir as possibilidades de entrevistar estes músicos todos?

 

FN: O mais importante é que é um filme produzido inteiramente por nós, somos realizadores independentes. Demorámos cerca de um ano e meio entre começar e acabar – o que faz algumas pessoas ficarem surpreendidas. Neste período fizemos mais de 40 entrevistas, recolhemos material de arquivo, selecionámos material, passámos horas e horas a ouvir pedaços de áudio e a selecionar imagens para a montagem do filme. Foi um processo árduo, trabalhoso, muito cansativo, sendo que nenhum de nós esteve a trabalhar exclusivamente no filme. Temos outros trabalhos, outros projetos, fomos fazendo o filme conjugando com as nossas outras atividades, o que reduz o tempo de disponibilidade. Batalhámos muito para conseguir fazer o que fizemos. Mas isso também traz uma certa sensação de aragem, de liberdade e de amor feito por aquilo. Muito trabalhoso mas muito apaixonado.

 

CD: Nós temos este amor ao hip hop e acabamos por fazer isto com uma vontade muito grande e mesmo com essa luta que o Francisco mencionou, apesar disso acabamos por estar muito apegados a este projeto. Em relação às entrevistas destas pessoas, tivemos uma receção muito boa, achamos que é de valorizar a recetividade dos artistas para nos responderem e só nos apetecia ficar horas a falar com eles. Por isso ficámos com muito tempo de filmagens, o que tornou a edição muito complexa.

 

SAPO Mag: Por que acharam que era o momento de se fazer um retrato sobre o rap/hip hop no Porto?

 

FN: Todos os momentos são bons, não houve razão específica, temporalmente falando, foi no ponto da nossa vida em que entendemos que tínhamos reunindo as condições, o entusiasmo e a vontade para nos juntarmos e levarmos o projeto para a frente.

 

CD: Há uma vantagem, que nem foi escolha nossa: como é um assunto com o qual temos um certo à vontade, conseguimos ter alguma proximidade em termos de memória, de arquivo, de fotografias e de coisas que os envolvidos nos poderiam dar e que se calhar ficariam perdidas se fosse daqui a uns anos. Estão mais frescas na memória e foi mais fácil para eles passarem-nos isso agora.

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por Roni Nunes às 14:41

IndieLisboa: “Parte dos problemas do mundo vêm da interdição ao sexo”, diz Gustavo Vinagre

por Roni Nunes, Domingo, 06.05.18

Artigo originalmente postado em C7nema.

Por Roni Nunes

 

 

O filme brasileiro Lembro mais dos Corvos está em Competição no IndieLisboa. A primeira longa-metragem de Gustavo Vinagre, que já teve exibido uma curta no QueerLisboa, é uma conversa com a transsexual Julia Katharine – que fala do seu presente, de um passado de abusos e de como o cinema (o nome escolhido por ela é uma referência a Katharine Hepburn) salvou a sua vida.

 

Em entrevista ao C7nema o realizador falou sobre os tabus que vêm sendo derrubados e cercam a dramática história da sua protagonista em tempos onde não havia consciência de conceitos como pedofilia e “transgénero” – para além do método que lhe permitiu uma narrativa dinâmica dentro de uma proposta documental minimalista.

 

Há um momento em que a sua protagonista pergunta onde você queria chegar com o filme. Uma vez que há um interação entre você e a atriz, até que ponto você foi de facto construindo o filme na medida em que ele evoluía e até onde você tinha uma linha de chegada.

 

O filme tinha um argumento em que agrupei os assuntos que eu queria que fossem tocados. Claro, a Julia tinha totalliberdade para improvisar e criar outras coisas e até contar histórias que não estavam programadas. Mas se as anedotas variavam muito, eu tinha perguntas que a faziam voltar ao assunto estipulado. Era um argumento um tanto híbrido, às vezes com diálogos inteiros escritos, às vezes apenas com indicações para os assuntos ou improvisações. Eu intuía desde o princípio que o filme seria uma longa, isso conhecendo as histórias da Julia e a nossa relação.

 

Mas não poderia afirmar isso, estava aberto a experimentar e aceitar o risco de que se a única noite de gravação não rendesse, talvez o filme se tornaria uma curta-metragem, ou pediria um segundo dia de rodagem o que acho improvável tendo em vista que gosto de trabalhar criativamente em cima de regras autoimpostas. E, nesse caso, a regra era: uma personagem, uma locação, uma noite. O ponto de chegada era o amanhecer, essa cena que é totalmente encenada, e em que a Julia toma para si, de certa forma, a direção do filme, olhando para o novo dia que raia lá fora.

 

 

Há uma parte da narrativa dela que traz a perspetiva em primeira pessoa de coisas que hoje tem nomes como “abuso”, “pedofilia”, “transgénero”, mas que na época não era visto desta forma, estas palavras não eram usadas, não havia consciência.

 

Palavras extremamente necessárias para que as pessoas se sintam contempladas em seus traumas e também em suas identidades. Afinal, quando nomeamos as coisas, elas deixam de ser tão tabu e se tornam coisas palpáveis, para que possamos pensar sobre elas. A maneira como a Julia fala dos abusos que sofreu é extremamente necessária, pois complexifica o abuso para além de um maniqueísmo comum quando se toca no assunto.

 

Ainda na questão do conteúdo, a atriz aborda de forma aberta questões ligadas à sexualidade. Essa frontalidade diverge de um mundo lá fora (no Brasil, mas não só) que parece querer voltar atrás nas liberdades conquistadas no que diz respeito à tolerância…

 

Todos meus filmes abordam e incluem o sexo em suas narrativas. O sexo é parte da vida, e ele não pode ser apenas uma elipse, como é na maioria dos filmes. Acredito que grande parte dos problemas do mundo vem da naturalização da violência e da interdição extrema ao sexo e tudo ao redor dele.

 

É um filme também sobre cinema. Este foi uma forma da protagonista lidar com as dificuldades e então há aquela encenação com referência direta a Ozu…

 

O filme é uma homenagem a todas as pessoas que se salvaram através da arte, que puderem resistir um pouco mais à crueza da realidade devido a capacidade de sonhar aprendida no cinema ou em qualquer outro tipo de expressão artística.

 

 

Conseguiu construir uma narrativa dinâmica baseada num único personagem e um único cenário. Utilizou recursos simples, como o “zoom” e uma montagem com planos de diferentes ângulos. Como foi essa construção?

 

Essa construção veio, a princípio, do facto do filme ser, ou querer ser, uma homenagem a Portrait of Jason, de Shirley Clarke. Interessava-me muito fazer um filme emulando outro, especialmente em se tratando de documentário. Sinto que a referência é muito bem vista dentro da ficção, mas que o documentário, por supostamente tratar do "real", não permite tanto a referência. Afinal, como uma obra que supostamente mostra a realidade pode emular outra que também supostamente faz o mesmo?

 

Pensei que usar o mesmo dispositivo que outro trabalho, que é uma grande referência no mundo do cinema documental, pudesse embaralhar ainda mais as nuances entre ficção e documental, trazendo para a própria forma do filme o questionamento sobre ele. Faço filmes para que sejam postos em dúvida, por isso a maioria deles joga com a encenação, com a verossimilhança, com a dubiedade. Para mim, ésuper importante que o espectador duvide dele, pois duvidar do filme é duvidar da vida.

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por Roni Nunes às 13:40

Conhecendo o IndieLisboa

por Roni Nunes, Domingo, 29.04.18

Artigo originalmente postado em Cinema em Cena

 

 

Por Roni Nunes, em Lisboa

 

Todos os anos, em torno de 30 mil pessoas passam pelos diversos espaços onde acontece o IndieLisboa, o maior evento de cinema alternativo da capital portuguesa. A edição de 2018 ocorre entre 26 de abril e 6 de maio e, de acordo com a organização, foram selecionados 82 longas e 164 curtas-metragens de um total de 4.500 filmes recebidos. O Brasil estará presente com quatro projetos.

 

O Cinema em Cena conversou com uma das programadoras, Mafalda Melo (entrevista completa abaixo), sobre a participação brasileira no festival, os destaques para os pouco conhecedores de cinema português e as novidades em geral para a 15ª edição.

 

O festival exibe três seções competitivas: para além de uma dedicada à produção internacional e outra à nacional, há prémios distribuídos também na Silvestre, espécie de panorama genérico do cinema independente mundial. É aqui que se inclui “O Processo”, que passa por Lisboa antes de chegar ao Brasil na senda dos aplausos em Berlim e que promete angariar a simpatia (dado o perfil do público) dos espectadores portugueses.

 

Já o retrato da favela no feminino, conforme o olhar de Juliana Antunes em “Baronesa”, e o universo transsexual de Gustavo Vinagre em “Eu Lembro mais dos Corvos”, fazem ambos parte da Competição Internacional. Antunes foi assistente de realização de um dos projetos premiados no ano passado, “Arábia”, de Affonso Uchoa e João Dumans.

 

Por seu lado, a seção Boca do Inferno cumpre uma das tendências dos grandes eventos internacionais dos últimos anos que é a de incluir propostas mais viscerais, frequentemente ligadas ao cinema de terror. É onde está incluído “As Boas Maneiras”, de Marco Dutra e Juliana Rojas, que completam a participação brasileira no festival deste ano.

 

 Cena de "O Processo", de Maria Augusta Ramos

 

Menção ainda para outras três divisões da programação igualmente importantes: Herói Independente, que este ano inclui retrospetivas dedicadas à argentina Lucrecia Martel e ao veterano francês Jacques Rozier e que destacou, há alguns anos, a obra de Júlio Bressane, a sempre apetecível IndieMusic que, como o nome indica, direciona-se a trabalhos relacionados com música, e Director’s Cut, que exibe filmes que refletem sobre outros filmes já existentes.

 

CINEMA EM CENA: O IndieLisboa tem selecionado sempre cinema independente brasileiro, ajudando a que seja menos desconhecido em Portugal. Como tem sido essa relação ao longo dos anos e que pode dizer sobre os projetos selecionados para esta edição?

 

MAFALDA MELO: O cinema brasileiro tem estado em ebulição nos últimos anos, não só politicamente mas como movimento estético. O IndieLisboa tem prestado muita atenção a essa renovação e tem reforçado a sua presença em Portugal com o acompanhamento de cineastas desta nova geração. Aconteceu com Juliana Antunes, Gustavo Vinagre (ambos mostram a sua primeira longa-metragem em competição neste IndieLisboa), Kleber Mendonça Filho, Marco Dutra e Juliana Rojas, Leonardo Mouramateus, Ricardo Alves Jr., Gabriel Mascaro, Caetano Gotardo, entre tantos outros – a lista é infindável. 

 

Há também o cuidado de olhar para o passado do cinema moderno brasileiro, mostrar os seus alicerces: foi o caso de retrospectiva Julio Bressane, por exemplo. Hoje mais ainda, como festival que olha para o contexto em que se produzem os filmes - seja através do apoio à produção portuguesa, seja através de uma selecção que é também a voz de uma actualidade em constante agitação - é importante mostrar que estamos do lado certo. “O Processo”, de Maria Augusta Ramos, está do lado certo. São de referir, ainda, as diversas parcerias que temos com festivais e programadores no Brasil, que nutrimos ao longo destes 15 anos e às quais queremos dar continuidade.

 

 "As Boas Maneiras", de Marco Dutra e Juliana Rojas

 

Um dos filmes exibidos é “O Processo”. Há uma curiosidade enorme em relação a este filme – principalmente pelas questões políticas. A política no Brasil tem sido muito comentada em Portugal. O que pode adiantar sobre o filme em si e que tipo de debate acha que o filme pode proporcionar aqui em Portugal?

 

“O Processo” é um mundo de possibilidades para um festival de cinema que pretende ter uma voz interventiva. A selecção do filme pareceu-nos óbvia no momento em que o vimos, não só pelo seu inestimável valor fílmico, mas também porque em Portugal temos vivido a turbulência política no Brasil de forma muito próxima. A morte de Marielle Franco e de Anderson Pedro Gomes desencadeou vigílias em 6 ou 7 cidades pelo país. Não me recordo de um tipo de mobilização solidária com outro país que tenha sido vivida de forma semelhante nos últimos anos, penso que nem o impacto dos atentados em França, país onde reside a maior comunidade emigrante portuguesa, gerou tamanha solidariedade, revolta, comoção.

 

A exibição de “O Processo” durante o festival ajuda-nos a dar continuidade ao debate e a refletir sobre uma questão essencial: como pode o Brasil regredir até uma nova era de militarização do estado? É urgente parar este processo que escalou gravemente a partir da destituição de Dilma Rousseff, o “golpe”, que Maria Augusta Ramos documenta de forma extraordinária no filme.

 

Na mesma via, o cinema português não é bem conhecido no Brasil. O que pode dizer sobre os projetos selecionados para o IndieLisboa este ano?

 

Penso que o cinema português viaja cada vez mais, também até ao Brasil. As coproduções e colaborações são frequentes (no IndieLisboa 2018 apresentamos uma colaboração, “Russa” de Ricardo Alves Jr. e João Salaviza) e as internacionalizações de filmes portugueses têm crescido enormemente. Mas, para quem não está tão familiarizado com o cinema português diria que a competição nacional e as sessões especiais são um excelente panorama de um excelente ano de cinema português.

 

Iremos mostrar os filmes absolutamente marcantes de André Gil Mata (“A Árvore”) ou Susana Nobre (“Tempo Comum”), proporcionar a descoberta da voz de Paulo Carneiro (“Bostofrio, où le ciel rejoint la terre”) regressar ao fabuloso universo de André Santos e Marco Leão (Self Destructive Boys), Filipe Melo (Sleepwalk), Sérgio Tréfaut (Raiva) ou Edgar Pêra ("O Homem Pikante - Diálogos com (Alberto) Pimenta"), para citar apenas alguns dos 49 filmes portugueses que integram a programação do festival.

 

Por fim, pediria que destacasse algumas das novidades da edição deste ano em termos gerais.

 

O IndieLisboa volta a apontar o foco para nomes consagrados do cinema de autor mundial e a revelar um conjunto alargado de novos e promissores autores. Esta mistura constitui uma das características mais importantes do festival desde a sua origem, tal como a igual importância dada a longas e curtas-metragens e à abolição de quaisquer fronteiras de gênero. No fundo, há uma liberdade intrínseca aos filmes selecionados, que percorre também o gesto de programação e a forma como o festival é pensado. Um festival livre, de cinema livre.

 

Esta edição volta, portanto, a fortalecer as suas já reconhecíveis características: uma seleção desafiante; a (re)descoberta de autores através de retrospetivas essenciais, este ano dedicadas a Jacques Rozier e Lucrecia Martel; uma programação noturna de concertos e festas que estende a experiência em sala e põe os filmes a dialogar com a música, com os artistas, com os convidados e com o público; um conjunto de atividades que complementam os filmes e abrem (mais ainda) espaço para debate; uma programação especialmente dedicada a crianças e jovens. 

 

E uma grande novidade: a criação de um Festival Center, um centro nevrálgico para a indústria onde decorrem as Lisbon Screenings, laboratórios, encontros, “masterclasses” e outros eventos para o público profissional.

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por Roni Nunes às 14:56

IndieLisboa: em busca do "ser português" numa aldeia em Trás-os-Montes

por Roni Nunes, Sábado, 28.04.18

Artigo originalmente postado no Sapo.

Por Roni Nunes

 

IndieLisboa: o Portugal antigo sobrevive numa aldeia de Trás-os-Montes
 

"Bostofrio – Où le Ciel Rejoint la Terre", filme de estreia do realizador Paulo Carneiro, tem sessões no IndieLisboa nos dias 28 de abril (Culturgest) e 4 de maio (cinema São Jorge).

 

O “Bostofrio” do título é o nome de uma pequena aldeia entre as montanhas no Nordeste de Portugal. Pertence ao concelho de Boticas e Paulo Carneiro, assistente de realização de dois filmes de João Viana, foi até lá. A ideia era procurar as suas origens paternas – ir ao encontro das memórias de um avô que não conheceu e não perfilhou os filhos. Mais do que isso, no entanto, embrenhou-se por outras ideias: um retrato, ainda que simbólico, das dicotomias do que é “ser português”…

 

Antes disto, no entanto, foi duro o périplo pelos segredos e tabus que ainda cercam o povo local, à partida muito reticente em mexer no passado.

 

“Quero lá saber do teu avô!”, diz a primeira entrevistada, dando ao início do filme uma forma anedótica. O realizador, no entanto, decidiu manter a conversa com a sua pouco interessada interlocutora. "Sim, ela tem essa maneira de falar, mas há um carinho ali, que se pode notar. E claro que ela sabe que está a ser filmada", recordou.

 

Essa introdução dá um retrato das reticências que cineasta terá de vencer para avançar no percurso. É algo que remete às origens: a vida na pequena localidade nunca foi fácil. "Se for preciso são os teus melhores amigos, ficam zangados se não fores à casa deles, se não comeres qualquer coisa lá. Mas há uma forma rude que vem de um ambiente muito hostil. É algo que dá para ver no filme, é uma população isolada, cercada de montanhas. Cerca de 30 pessoas vivem lá", explica.

 

 

Suspense orgânico

 

Pôr as pessoas à vontade era essencial para abordar segredos e tabus do passado. Foi como se conseguiu criar um suspense orgânico na medida em que a organização do material segue a ordem cronológica em cerca de 80%. Munido de mais conhecimentos revelados por um entrevistado, Paulo Carneiro conseguia aumentar o alcance da conversa a seguir. "O caminho para o final é completamente documental", salienta.

 

Muitos planos são fixos e registam de longe as conversas. É uma questão de pragmatismo de produção tanto quanto de desejo estético. "Sabia que não ia ter tempo para preparar as entrevistas", conta o cineasta, que teve um mês para ficar no local depois de ganhar uma Bolsa para Jovens Criadores do Estado. "Assim, aparecer no filme era também uma forma de ir fazendo o registo ao mesmo tempo que os ajudava a esquecer que estavam sendo filmados".

 

Já em termos estéticos, a ideia era "mostrar que, apesar dos planos serem fixos, havia movimento. Há uma tentativa de criar uma ‘mise-en-scène’ onde tem sempre algo em movimento". Os conceitos são da História Oral, tendência historiográfica que privilegia os depoimentos em primeira pessoa.

 

"Acredito piamente numa história para além da escrita e esta é uma ideia que continuará a ser explorada num dos meus próximos projetos. Aqui queria preservar as falas de Trás-os-Montes, que são belíssimas, com as suas expressões típicas, tenho uma relação de afetividade com este vocabulário. Também li muito Miguel Torga, que escreve bastante sobre a região”, recorda.

 

 

Em busca do “ser português”

 

Desde o início a ideia foi homenagear o pai, uma espécie de sobrevivente de uma época dura. Nascido na pequena aldeia, foi declarado como tendo "pai incógnito", criado pela mãe com problemas psíquicos e ajudada por uma tia num altura de miséria e superstição.

 

Com a faceta pessoal do projeto, no entanto, cruza-se um outro conceito – o das dicotomias ligadas à uma ideia de "ser português". A da existência de um Portugal antigo, com os seus tabus sexuais, a miséria económica e onde os problemas mentais eram vistos como uma espécie de "possessão demoníaca".

 

"Certamente há um paralelismo entre o céu e a terra, o místico e o terreno, Deus e o demónio, especialmente quando percebi que as pessoas ligavam o passado da minha avó a algo infernal. Assim, o resultado final deixou de ser apenas uma procura pessoal minha e tornou-se noutra coisa", concluiu.

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por Roni Nunes às 14:57


Comentários recentes

  • Cleber Nunes

    Sem dúvida é um filme que me despertou interesse ...