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Festa do Cinema Italiano – entrevista: ricos x pobres em « La Guerra dei Cafoni»

por Roni Nunes, Terça-feira, 17.04.18

Artigo originalmente postado em C7nema.

 

Por Roni Nunes

 

 

A Festa do Cinema Italiano encerrou em Lisboa, mas continua pelo país afora ao longo de abril e maio. O C7nema aproveita para destacar mais uma entrevista feita no âmbito do festival, onde os refletores vão para os realizadores de um dos filmes da Competição, La Guerra dei Cafoni.

 

A iniciar com uma cena simbólica falada em grego bizantino (!) para significar a opressão através dos tempos, os realizadores  Davide Berletti e Lorenzo Conte, aventuram-se por uma fábula de origem literária. Na história, todos os verões um grupo de meninos bem-vestidos e senhores do castelo digladiam-se com a escumalha inculta e miserável – os cafoni do título. A opressão é óbvia – até que um elemento desestabilizador surge a meio do enredo para complicar as contas.

 

Conforme explicaram ao C7nema, Davide Berletti e Lorenzo Conte, o projeto nasceu de um feliz encontro com o livro homónimo do escritor italiano Carlo D’Amici. “Depois de um filme anterior dedicado à máfia de Apulia (sul da Itália), considerada a quarta máfia italiana, estávamos á procura de uma história diferente, menos sombria, mais solar, ancestral e que, de certa maneira, nos pudesse fazer sentir outra vez crianças”, dizem.

 

A obra de D’Amici  remete, em primeiro lugar, a um retorna às origens. “O livro direciona o leitor àqueles verões intermináveis da infância, àquelas atmosferas mágicas e rarefeitas – àquele tempo suspenso quando a escola acaba a escola mas os pais continuam a trabalhar e ficamos abandonados a nós mesmos. O livro representa uma profunda análise sobre crescimento e descoberta. Ficamos fascinados com a ideia de prosseguir meninos. Depois tudo muda”.

 

 

O retrato universal da aldeia

 

Se a frase de Tolstoy  virou cliché (“se queres ser universal começa por pintar a tua aldeia”), os cineastas a levaram ao pé da letra. La Guerra dei Cafoni aposta numa perspetiva universal sobre a opressão, mas o faz com um acento muito local – na verdade com sete dialetos!

 

Tentamos de facto juntar especificidades muito locais com temas universais. É aquilo que estamos sempre a fazer dentro do nosso cinema, mesma que ele seja todo passado na nossa região, a Apulia. No caso dos dialetos, eles revelaram uma riqueza e uma simplicidade linguística impressionantes – ao mesmo tempo que a análise das estruturas de poder aplica-se a qualquer sociedade do mundo”.

 

A cena inicial mostra um assassinato brutal a um menino que tentava roubar água no poço do “Senhor”. “A cena do prólogo foi feita com diálogos em grego bizantino, já desaparecido. Era falado nos lugares originais da nossa História, utilizamo-lo como um ato fundador da luta de classes, senhores contra pobres. Essa guerra, mesmo com mudanças, sempre existiu e sempre existirá”.

 

 

A guerra do “ter” substituí a luta do “ser”

 

Uma dos aspetos fundamentais desta alteração é dada pela entrada em cena de Cuggino (“primo” em italiano), vivido por Angelo Pignatelli. Ele passa a ser automaticamente o líder dos cafoni – ambicioso, destemido e ligeiramente mais culto. Mas nada de idealismo revolucionário: o “primo” assemelha-se mais ao líder de um gangue.

 

Cuggino é magistralmente interpretado por Pignatelli e é um dos personagens chave da história, o elemento não harmónico, aquele que radicaliza, que desafia. Ele é idealista, mas só no sentido que tem um plano bem preciso, bem claro, de conquistar o poder, de sair do papel do pobre e do explorado. Ao contrário dos seus primos, ele é um mecânico, trabalha em oficinas e começa a ter dinheiro para alcançar os seus objetivos – não desdenhando para isso da violência”.

 

Ele representa a nova sociedade do país a partir dos anos 70. “Outro aspeto fundamental do romance que nos interessou foi a visão histórica sobre os anos 70, que marcou o fim da luta de classes assim como foi entendida durante todo o século XX. Foi quando a guerra do ‘ser’ transformou-se na lua para ‘ter’. A dinâmica passa a ser o de ganhar os pertences dos donos – no caso do filme a mota, o ‘flipper’, e a rapariga, namorada do chefe da classe dominadora”.

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por Roni Nunes às 19:46

Festa do Cinema Italiano - entrevista: «Easy» e uma viagem “nada facile”

por Roni Nunes, Sábado, 14.04.18

Artigo originalmente postado em C7nema.

Por Roni Nunes

 

 

O filme esteve em Competição na Festa do Cinema Italiano cuja fase lisboeta termina hoje (12/04) e que segue pelo país afora nas semanas seguintes. O realizador Andrea Magnani discorreu ao C7nema sobre o complicado processo de realização do filme e sobre a criação das várias situações cómicas e caricatas exibidas neste singular ‘road movie’.

 

Do interior de casa para a imensidão, do trajeto conhecido do quarto para a cozinha para as paisagens desconhecidas da remota Ucrânia – frequentemente sem direções e sem entender ninguém. Esse é o processo de Isidoro (o Easy do título, vivido por Nicola Nocella). Após 14 anos deprimido e a viver com a mãe, viciado em pílulas e comida, ele subitamente é atirado numa missão decididamente impossível para alguém como ele.

 

Seu irmão, um empresário meio suspeito, pede-lhe que vá à Ucrânia entregar o cadáver de um operário ilegal morto acidentalmente – jogando este inadaptado social numa trajetória às voltas com um caixão pela imensidão gelada do Leste europeu. São os elementos que fornecem a Magnani boas possibilidades para uma comédia dramática no seu filme de estreia.

 

A produção: uma viagem nada “facile

 

Easy tem o subtítulo de “un viaggio facile facile” – fazendo referência ao irmão na hora de pedir o favor ao protagonista. Antes das odisseias do sorumbático Isidoro, no entanto, Magnani por seu lado viveu as suas próprias peripécias e responde assim à pergunta de se as filmagens também foram “facile facile”.

 

Na verdade foi exatamente o oposto. Comecei a escrever o filme há oito anos atrás. Estávamos quase a começar as filmagens no verão de 2014 mas, no entanto, havia iniciado a guerra na Ucrânia no inverno de 2013. Nem sabíamos naquela altura se haveria filme, pois o governo do país congelou todo o dinheiro. Também desconhecíamos se a nossa coprodutora ucraniana receberia a sua parte e chegamos a pensar que tínhamos perdido o projeto. Mas, passados dois anos, tudo voltou a funcionar. Apesar de ser um filme de baixo custo, fazer um ‘road movie’ nunca é barato e estou muito agradecido ao nosso produtor na Ucrânia, pois graças a ele conseguimos terminar um filme que não foi nada ‘facile, facile’”.

 

A parceria surgiu de um projeto internacional de “workshops” na Grécia e os produtores gostaram muito de uma história que referia a um país oriental da Europa, mas sem determinar qual era. “Eles me convenceram a visitar a Ucrânia para ver se ela servia para o filme. E o país preencheu os requisitos, tinha exatamente o que eu queria, um lugar para a personagem sentir-se desorientada, sem os seus pontos de referência. Ao mesmo tempo tinha um grande potencial em termos de paisagem, como as fábricas antigas da antiga União Soviética”.

 

Andrea Magnani

 

Conexão Ucrânia-China-Geórgia

 

Pelo caminho para uma pequena cidade da Transilvânia, Easy encontra uma polícia aduaneira húngara com elevado sentido de humor, um motorista da Geórgia muito simpático (pelo menos até ele fazer a vida negra ao homem), uma família chinesa com o negócio em declínio e até um padre ucraniano decido a largar a batina para tocar numa banda.

 

Diz Magnani: “Existe uma só personagem principal, era só isso que eu pretendia. Eu não queria ninguém a acompanha-lo durante todo o filme, por isso “envolvi-o” com um caixão, com “alguém” que não poderia falar com ele, não lhe responderia. Mas claro que, como em qualquer ‘road movie’, temos encontros durante a viagem e aí eu quis focar em pessoas que estivessem num processo de mudança, como a minha personagem – que está a deixar a sua vida antiga e a iniciar uma nova. É o caso da família chinesa cujo restaurante está agora fora da rota dos camionistas, está a falir, ao mesmo tempo que a avó está a morrer. Ou do padre que quer ser cantor. Todas elas vivem processos de mudanças e eu estava a pensar nisso quando criei as personagens”.

 

E por que um personagem tão depressivo? “Bom, é assim na vida real. Ao mesmo tempo, numa abordagem cómica temos o preto, o branco e uma série de cinzentos – podemos estar depressivos sem deixar de encontrar momentos irónicos. Era que eu queria para contar uma história – meu desejo era fazer uma comédia com toques poéticos e dramáticos”.

 

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por Roni Nunes às 23:04

Festa do Cinema Italiano 2018: L'Intrusa

por Roni Nunes, Sábado, 14.04.18

Artigo originalmente postado no Sapo.

Por Roni Nunes

 

11ª Festa do Cinema Italiano - Filme do dia:
 

O realizador Leonardo Di Constanzo investiga novamente fatores aparentemente secundários do crime organizado no seu país.A sua primeira longa-metragem, “L'intervallo”, que circulou em Portugal no circuito dos festivais em 2012, falava de dois adolescentes que perambulavam por um local onde um deles era prisioneiro e aguardava a chegada de mandatários da máfia.

 

Em “L’Intrusa” trata-se de uma mulher, Giovanna (Raffaella Giordano), que faz um trabalho com artes para as crianças no sentido de demovê-las do mundo do crime. A sua comunidade, no entanto, é abalada pela vinda da polícia, que prende um homicida que estava lá escondido. Um dos efeitos colaterais dos seus atos são a esposa, Maria (Valentina Vannino) e os filhos pequenos, deixados para trás em condições precárias. Mas os familiares do rapaz morto pelo criminoso não a querem lá e ela passa a ser a “intrusa” – um elemento desestabilizador.

 

A máfia é um espectro que plana sobre o quotidiano, nunca irrompendo de forma violenta, mas sempre condicionando a vida dos presentes e pondo-os em dilemas e encruzilhadas difíceis de resolver. A simplicidade eficaz da técnica de di Constanzo gera filmes pouco ruidosos, pouco espalhafatosos, mas agradáveis e sugestivos, na medida em que vão construindo a teia sobre os protagonistas - intercalando acontecimentos com momentos mortos e simbolismos simples, como a chuva que surge para "lavar" a presença da intrusa.

 

Todo o conflito joga-se neste limite - ético/moral, de solidariedade, de fidelidade aos princípios – uma vez que Giovanna criou um grupo disposto a acolher todas as crianças e romper o que chama de ciclo criminoso. Mas é a única a perceber a amarga luta pela sobrevivência física e psíquica da intrusa, que se defende de forma hostil – tanto mais importante porque ela recusa-se a ser acolhida no seio da família e da proteção mafiosa a que teria “direito”. Mais um belo trabalho de di Constanzo.

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por Roni Nunes às 22:58

Festa do Cinema Italiano: "The Place"

por Roni Nunes, Quinta-feira, 12.04.18

Artigo originalmente postado no Sapo.

Por Roni Nunes

 

11ª Festa do Cinema Italiano - Filme do dia:
 

Como uma espécie de consultório de psicanálise, "The Place" é o lugar dos pecados inconfessáveis. Em vez de um divã, no entanto, a "vítima" lida com a face inexpressiva e cansada de Valério Mastrandea – a viver uma personagem com um pé no fantástico, dada a sua natureza indeterminada. Será Deus? "Como eu sei que você não é o diabo?", pergunta alguém. Resposta: "Não sabe".

 

Essencialmente, o que ele faz todos os dias, sempre numa mesa de café, é trocar favores. Com ele está um gigantesco livro de anotações: conforme a dimensão do pedido é determinado o valor da exigência. Quanto maior o desejo, mais terrífico é o que pedinte terá de fazer – mais longe terá que ir… Estas almas penadas, obviamente bem representativas da humanidade em geral, sucedem-se umas às outras no café, esperançosas, desesperadas, repugnadas com elas próprias ou com o "proponente".

 

Uma destas pessoas é uma simpática velhota que terá de explodir uma bomba para fazer regredir o Alzheimer do marido. É dela o diálogo que resume o tema de "The Place": "Existe algo de horrível em todos nós e aqueles que não são forçados a encará-lo têm muita sorte. Estou velha, quase consegui evitá-lo, mas o meu demónio apareceu mesmo no final…".

 

Há necessidades mais simples: um homem que quer apenas passar a noite com a modelo emoldurada nas paredes da sua oficina. Há outras gigantescos, como a freira que quer voltar a "sentir a presença de Deus", um homem que quer salvar o filho de uma doença grave ou um cego que quer ver. Para estes, não há clemência: o preço a pagar é inacreditavelmente alto. Sem apelo.

 

Os velhos pactos faustianos ganham uma dimensão mundana e, como tal, mais aterradora: não se tratam de propostas etéreas, como vender a alma por conhecimento e pagar num lugar vago como o Inferno. Em "The Place", "aqui se faz, aqui se paga". Ou melhor: aqui se deseja, aqui se paga…

 

E como se sentiria essa espécie de Deus a testemunhar, todos os dias, as iniquidades humanas? Segundo o filme, cansado, muito cansado. Num dado momento, a empregada de balcão aparentemente inocente (Sabrina Ferilli, de "A Grande Beleza") propõe-lhe um "jogo do sério". O resultado lembra a famosa frase de Nietzsche: "se olhar para dentro do abismo, o abismo olhará dentro de você". Ela foge.

 

O personagem de Mastrandea é menos um ser "nobre" ou "sábio" que "dá conselhos", mas antes funciona como um espelho que aniquila com quaisquer disfarces ao devolver de forma impassível e desinteressada o arremesso do pedinte.

 

Quando acusado por um homem de que fez "aquilo que ele pediu", a resposta é: "você não fez por mim, fez por você". E quando a velhota, novamente, o acusa de ser um "monstro", a resposta é: "não sou eu o monstro. No máximo, alimento-os". Por outras palavras, o monstro é você.

 

Fica para a Sessão de Encerramento um dos grandes momentos da Festa do Cinema Italiano. Com esta espécie de "fábula", Paolo Genovese, um dos argumentistas mais geniais do cinema do país (aqui em parceria com Isabella Aguilar), propõe uma reflexão emocional e tão envolvente quanto possível para uma proposta cinematográfica acessível a todos. Não se pode pedir mais.

 

 

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por Roni Nunes às 19:20

Festa do Cinema Italiano 2018: La Guerra dei Cafoni

por Roni Nunes, Quarta-feira, 11.04.18

Artigo originalmente postado no Sapo.

Por Roni Nunes

 

11ª Festa do Cinema Italiano - Filme do dia:
 

Um estado de tragédia permanente muito italiano (ou, pelo menos, do sul da Itália) ganha contornos universais em “La Guerra dei Cafoni”. Os realizadores Davide Barletti e Lorenzo Conte recorrem ao artifício de uma história composta só por crianças para propor um comentário/fábula sobre o mundo adulto.

 

O âmbito temático é o do confronto de classes: todos os anos, no verão, um grupo de crianças e pré-adolescentes entram em “guerra” uns contra os outros. De um lado está uma comunidade bem vestida de “betinhos”, refugiados num “castelo” que culmina no alto de paisagens verdejantes. Na terra seca, amarelada, poeirenta, vivem os “cafoni” do título – essencialmente garotos a viver no meio da miséria e da iliteracia.

 

A hipótese pessimista proposta pelos cineastas de uma redenção da “choldra” vem mais de um protótipo de criminoso ambicioso que rompe na metade da história do que de um idealista “revolucionário”.

 

As mulheres são objetos de diferentes significações: a rica é bonita, sensual e fútil (Alice Azzariti) e serve como símbolo de ostentação; a pobre (Letizia Pia Cartolaro) entra no campo do romance. O que não muda é que ambas são valiosos “bens” a serem disputados.

 

A sequência de abertura (uma criança morta por “nobres” de uma era “ancestral” não especificada quando tentava “roubar” água para beber) é desconectada do enredo: serve para estabelecer o eixo temático do filme. Através de um balança simples de dicotomias (figurinos, paisagens, modos de falar), Barletti e Conte manifestam a eternização da opressão entre os seres humanos.

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por Roni Nunes às 22:58

Festa do Cinema Italiano 2018: "Easy"

por Roni Nunes, Segunda-feira, 09.04.18

Artigo originalmente postado no Sapo.

Por Roni Nunes

 

11ª Festa do Cinema Italiano - Filme do dia:
 

Um totó, um caixão e um mundo de personagens “exóticos” numa terra estranha. São os elementos necessários para se propor uma comédia – embora ainda assim bastante “contemplativa” para certos padrões.

 

Isidoro (o “Easy” do título, interpretado por Nicola Nocella) é um ex-automobilista premiado e agora deprimido a tal ponto que nem na “Playstation” consegue vencer o irmão – por falta de motivação... Este último, pelo contrário, anda nas duras lides não-muito-legais e acaba por ter em mãos um grande imbróglio: um operário ucraniano morto cujo corpo tem de devolver à “proveniência”. Quando um sócio pergunta se “tem certeza que … é a pessoa certa para o trabalho”, ele afirma taxativamente que sim quando qualquer um pode ver que não...

 

Claro que a viagem pela Hungria e a gigantesca e gelada Ucrânia será cheia de efemérides. Ao perfil “low profile” do protagonista soma-se a incomunicabilidade linguística – aos quais somam-se alguns “gags” com o uso da tecnologia e várias situações caricatas.

 

Mas Andrea Magnani, realizador e argumentista, também salienta a generosa tenacidade de um homem viciado em comida e comprimidos. Aquilo que na Itália é apenas um cadáver para se ver livre o mais rápido possível, do outro lado da fronteira ele era um ser humano cuja ausência/presença era sentida - e a quem Easy tenta fazer justiça.

 

Longa-metragem de estreia de Magnani, uma rara coprodução entre Itália e Ucrânia.

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por Roni Nunes às 00:09

Festa do Cinema Italiano 2018: Gatta Cenerentola

por Roni Nunes, Sábado, 07.04.18

Artigo originalmente postado no Sapo. 

Por Roni Nunes

 

11ª Festa do Cinema Italiano - Filme do dia:
 

Se Roberto Saviano transformasse a sua sombria denúncia de “Gomorra” numa animação com números musicais, ambientação futurista, nuanças de cinema “noir” e uma singular revisitação da história da Gata Borralheira, o resultado seria este filme.

 

A protagonista tem três anos quando o pai, um milionário visionário que queria trazer o progresso a Nápoles, é assassinado. Passados 15 anos, ela vive esfarrapada, movendo-se pelos interiores do navio que o progenitor havia construído na altura. Por todo o lado, hologramas – inventados por ele “para que a memória não se perca…”

 

Realizado por quatro cineastas (Ivan Cappiello, Dario Sansone, Marino Guarnieri e Alessandro Rak) num pequeno estúdio de Nápoles, o filme traz uma visão terrivelmente cáustica da sociedade da cidade, ainda que não se possa assumir todos os simbolismos literalmente. Assim, é um local marcado pela corrupção, pelo crime e, segundo uma música do filme, com habitantes ignorantes e a “habituados a viver na m*”. Quanto a Cinderela, o seu “príncipe” salvador é, na verdade, um nada encantado rei – do narcotráfico.

 

Conforme disse Alessandro Rak ao Cineuropa, a ideia foi não só dar um ar contemporâneo ao conto como manter os aspetos mais duros da história original, de Giambattista Basile, frequentemente eliminados nas versões mais açucaradas. O cineasta ajudou a pôr a Itália no universo da animação na Europa, onde França e Bélgica são as referências mais óbvias. Com “L'arte della Felicità”, de 2013, ele foi vencedor do prémio de Melhor Animação dos European Awards.

 

“Gatta Cenerentola” teve estreia na Orizzonti do Festival de Veneza e tem lançamento comercial previsto para Portugal. Recentemente, em Lisboa, foi escolhida pelo júri da Monstra como o Melhor Filme do evento.

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por Roni Nunes às 19:25

Festa do Cinema Italiano 2018: "Cuori Puri"

por Roni Nunes, Sábado, 07.04.18

Artigo originalmente postado no Sapo.

por Roni Nunes

 

11ª Festa do Cinema Italiano - Filme do dia:
 

O amor romântico nunca foi algo desejável no interior de uma comunidade. Com as suas profundas exigências exclusivistas, ele é um elemento desestabilizador do grupo.

 

O padre católico dom Luca (Stefano Fresi), com uma eloquência capaz de catequisar até um espectador desavisado, fala aos seus jovens formandos sobre a importância de casar virgem. Ele então diz que só o “amor eterno” vale a pena, mas temerariamente conclui que este só é possível “dentro do matrimónio”. Por outras palavras, o sentimento é desejável, mas não muito intenso e nunca como fator de alheamento da organização comunitária.

 

A obra de estreia de Roberto de Paolis aborda o tema com sensibilidade e distanciamento. Não é o grupo de Agnes (Selene Caramazza), que faz 18 anos, liderado por um evangelizador idealista e bem-intencionado que está “errado”: eles são amigos afetuosos, fazem festas de aniversário e obras de caridade. O problema é que o comportamento humano raramente se presta (pelo menos de forma natural) a dogmatismos normativos e daí que a questão que se coloca a Agnes passa a ser o do “sacrifício”, palavra cuja origem etimológica é explicada pelo religioso.

 

De Paolis ainda exige mais da sua atriz: ela não é só um espírito delicado, mas um corpo que necessita de momentos explícitos de depilação, de urinar, de deixar marcas de sangue na cama – como a sublinhar novamente, na relação corpo/alma, os limites do discurso idealizado. O protecionismo também não pode dar certo: a relação com a mãe (Barbara Bobulova) bem serve de espelho das relações entre pais e filhos: o que é uma certeza para um, é autoritarismo para outros.

 

Por seu lado, Stefano (Simone Liberati) nada tem a temer do amor romântico – antes pelo contrário. Ele não tem a proteção da família nem de ninguém, o que eventualmente significa estar condenado a planar pela existência com um eterno errante. Perde e arranja empregos, comete pequenos crimes, sobrevive a uma família destruída.

 

O filme balança-se nesta dicotomia simples (por vezes esteticamente simplista) até que resolve pôr mais apetrechos na receita – particularmente quando o tema dos ciganos e da solidariedade social (estatal ou, no caso do grupo de Agnes, fraterna) ganha contornos dúbios. A existência dos ciganos, aqui associados aos “refugiados”, a viver em barracas ao lado do estacionamento onde trabalha Stefano, é precária; os seus jovens adultos, no entanto, fazem negócios “escusos”, cometem atos de vandalismo e, segundo aquelas acusações que por cá se ouvem a toda hora, têm “iphones”.

 

Para terminar, um “twist” construído a quatro mãos pela equipa de argumentistas (além de De Paolis Luca Infascelli, Carlo Salsa e Greta Scicchitano também assinam) baralha tudo e não facilita as conclusões fáceis – exatamente como o mundo cá fora.

 

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por Roni Nunes às 01:41

Festa do Cinema Italiano 2018: "Guarda in Alto"

por Roni Nunes, Sexta-feira, 06.04.18

Artigo originalmente postado no Sapo.

 

Por Roni Nunes

 

11ª Festa do Cinema Italiano - Filme do dia:
 

A câmara do estreante Fulvio Risuleo começa no céu e vai parar na cave – mais precisamente no quotidiano pachorrento de três jovens trabalhadores de uma pastelaria. Mas eles têm direito a um cigarro no telhado. Do tédio para uma conversa pertinente: “Eles não têm exército na Costa Rica?”

 

Diz um deles (Cristian di Sante): “Ora, aí está um lugar que eu gostaria de viver… cheio de gente positiva e sorridente… nada como isto aqui. Nem é preciso trabalhar, pode viver-se da pesca… gastar o tempo na praia a beber água de coco…”. Ainda, segundo ele, "é um lugar tão bom que as florestas estão cheias de animais que podem correr livremente…"

 

Que as coisas sejam assim tão boas na Costa Rica é algo que se pode discutir – facto aqui é que um certo “european way of life” pode ser bem desinteressante e opressor. E como só a curiosidade salva, quando uma estranhíssima gaivota anda a planar por ali, Teco (Giacomo Ferrara) empreende a sua jornada pelos telhados das maravilhas e aceita com naturalidade freiras misteriosas que colecionam pedaços de corpos mumificados, crianças mascaradas a construir um foguete, eremitas debaixo de escadas, praticantes de “nudismo urbano” (!) e até um romance, literalmente, caído “do céu”. Estava tudo ali, nos telhados de Roma – era só uma questão de perspetiva.

 

Com uma declaração de intenções explícita (“há coisas no mundo que não fazem nenhum sentido, precisamos de viajantes”), Fulvio Risuleo investe no “realismo fantástico”, onde uma nova ordem de realidade é criada sem nenhum sobressalto para os envolvidos. Uma proposta muito ao gosto do Festival de Roterdão, onde fez sua estreia na secção Bright Future há dois meses.

 

 

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por Roni Nunes às 00:43

A gloriosa história do cinema italiano: uma conversa com o historiador Oreste Sacchelli

por Roni Nunes, Sexta-feira, 06.04.18

Artigo originalmente postado em C7nema.

 

Por Roni Nunes

 


Oreste Sacchelli |© Roni Nunes 

 

O cinema italiano vive. Em Lisboa a Festa do Cinema Italiano decorre entre 4 e 12 de abril – exibindo mais de 50 filmes. Descontadas as obras que compõem a Retrospetiva dedicada a Marco Ferreri, o restante inclui obras recentes. Sobre estes trabalhos, o peso de uma História enorme.

 

O C7nema teve o privilégio de uma longa conversa, repleta de generosidade e sentido de humor, com o crítico e historiador Oreste Sacchelli. Com várias biografias lançadas e um amplo currículo académico, Sacchelli é o diretor artístico do Festival de Villerupt, que já soma 40 edições e é a maior montra do cinema italiano em França – país onde é considerado uma das maiores autoridades do assunto.

 

O resultado foi um amplo afresco sobre as glórias e tormentas de um país onde sempre se esbanjou talento, seja em cinema de género ou de arte, seja nos sucessos de público ou nos achados de vanguarda.

 

Todavia, a ideia aqui foi recuperar memórias de épocas pouco óbvias. Os trechos da entrevista selecionados para a edição final focaram-se, principalmente, naquilo que é menos conhecido. Se o neorrealismo acabou por ser incontornável (a menção, mesmo assim, é breve), o período extraordinário dos anos 60 e 70, responsável por muitos dos mais belos filmes já feitos, ficou de fora. Para efeitos de fidelidade temática, mantiveram-se os títulos originais dos filmes citados.

 

Antes dos americanos: o grande épico italiano

 


Cabíria (1914), um dos primeiros grandes espetáculos italianos

 

Tudo começou por uma vocação para o monumental. David W. Griffith esteve entre as primeiras almas a ficarem fascinadas com espetáculos como Ultimi Giorgi di Pompei (1908), Inferno (1911), ouQuo Vadis? (1913), entre outros – obras monumentais que chegavam a levar três anos para serem finalizadas. Nestes tempos, os italianos circulavam livremente no mercado americano. Foi uma época feliz para a sua indústria, que seria destruída a partir de 1915 durante a 1ª Guerra Mundial antes de culminar com um grande clássico, Cabíria(na imagem acima).

 

Diz Sacchelli: "'Cabíria' é importantíssimo e foi escrito por um dos grandes poetas da época, Gabriele d'Annunzio. Havia essa capacidade enorme de montar um espetáculo com coisas incríveis, como elefantes". Nesta altura vários centros de produção competiam em toda a Itália. "Quando a indústria entra em crise e tudo conflui para Roma, toda esse profissionalismo, esse modo de fazer cinema se fragmenta. Nos anos 20 perdem-se os mercados e pouco ou quase nada sobra".

 

O italiano que canta e o "telefone branco"

 


Sipione o Africano (1936), os italianos aperfeiçoam o espetáculo

 

A indústria entra num estado vegetativo e a chegada do cinema sonoro não ajuda. No entanto, um persistente empresário, Stefano Pittaluga, que havia açambarcado os restos de tudo o que havia soçobrado nos anos 20, logrou convencer o governo fascista a apoiar o cinema no início dos anos 30 – processo atrapalhado com a sua morte prematura. "Basicamente quando os italianos assistiram 'O Cantor de Jazz' lembraram-se logo das possibilidades que poderiam vir de um 'italiano que canta'", brinca Sacchelli.

 

Assim, Mussolini apoiou na construção de estúdios e até enviou o seu genro negociar na América restrições ao número de filmes exportados para a Itália, tal como o reinvestimento destes filmes em produção local. As boas relações acabaria, no entanto, com a Guerra da Etiópia(1936). Mas, como lembra o historiador, não vinha do governo do Il Duce um cheque em branco. "Eles propuseram-se a ajudar, mas a intenção era produzir filmes para distrair as massas, não para educá-las".

 

Um dos produtos marcantes desta política seriam os filmes do chamado "telefoni bianchi" (telefone branco) – alcunha pejorativa criada mais tarde para designar um tipo de comédia ligeira que grassou ao longo da década.

 

De volta ao espetáculo

 


Un Pilota Ritorna (1942): aventuras bélicas

 

Duas décadas de autoritarismo fascista, com as suas guerras, assassinatos, intolerância e torturas, deixaram marcas suficientes para que fossem odiados quando tudo acaba sob as ruínas dramáticas da 2ª Guerra Mundial. No campo cinematográfico, no entanto, as bases do neorrealismo e da indústria dos anos 50 vem desta era negra.

 

O Festival de Veneza surgiu em 1932 e a mítica Cinecittá começa a operar em 1937. O próprio filho de Mussolini, Vittorio, andou metido em novos empreendimentos, como o desenvolvimento do Centro Sperimental di Cinematografia e de revistas de crítica importantes, como a Bianco i Neri, para a qual futuros mestres como Luchino Visconti escreviam. "Foi uma política inteligente", analisa o historiador. "Criaram uma escola onde se pudesse aprender a fazer cinema e, do outro lado da rua, podiam pôr aquilo tudo em prática".

 

Numa altura em que Hollywood aperfeiçoava-se como máquina de propaganda, aplicar este termo pejorativo para nivelar por baixo a produção italiana do período não faz muito sentido. "Claro que uma obra como 'A Pilota Ritorna' (1942), de Rossellini, é um filme de propaganda. Aliás, força aérea, marinha e exército tiveram as suas aventuras heroicas", ironiza. "Mas o importante é o aprendizado que estes e outros filmes trouxeram aos jovens".

 

Scipione Africano (1936), por exemplo, "é um filme terrivelmente racista, que defendia que os etíopes deviam ser submetidos porque faziam parte de uma civilização inferior. Mas importa referir a enorme importância dada ao estilo por estes projetos, para além de todo o desenvolvimento técnico que implicava criar um grande espetáculo. Os mais diversos ramos profissionais de uma produção puderam aperfeiçoar-se".

 

Assim, "... já não são apenas as comédias do 'telefone branco' feitas em linha de produção – em vez disto têm de se criar novos enquadramentos, fazer-se novas experiências, ter mais atenção aos pormenores da espetacularidade".

 

Essa capacidade permite um dos fenómenos artísticos e económicos cruciais dos anos 50 – o "Hollywood sobre o Tibre". "Há essa deslocação da Hollywood para Roma – até porque o 'templo romano' é mais barato", brinca. Essa será a base do luxuriante cinema de género italiano que eclode no final desta década. "Vários nomes importantes, como Sergio Leone, começam aí".

 

O realismo: do "branco-e-negro" para o cor-de-rosa

 


Roma Cidade Aberta (1943): a clássica cena da morta de Pina

 

Sacchelli sintetiza: "O neorrealismo é um fenómeno muito breve e surge no contexto de esperança do fim da guerra. Um jornalista francês escreveu que ele começou com um filme (Roma, Cidade Aberta) e terminou com um discurso" (* Referência ao pronunciamento do primeiro-ministro, Alcide De Gasperi, em 1952, um violento ataque a Umberto D, de Vittorio de Sica, que desestimulou esse tipo de produção a partir daí).

 

Ao mesmo tempo foi um cinema que teve grande apelo temático após o fim da guerra – mesmo em países como os Estados Unidos que, apesar não terem sido teatro dos eventos, tinha os seus próprios mortos e mutilados para contar.

 

Apesar de ter alimentado uma estética nova com a influência mundial que sabe, no começo dos anos 50 o público já passava a ter outras demandas. "Com filmes como 'Due Soldi di Esperanza', em 1951, o cinema italiano toma outro rumo. Neste caso aproveitam-se certos ambientes neorrealistas, as filmagens externas, as paisagens e os dialetos e adapta-se às velhas fórmulas do 'telefone branco'".

 


Due Soldi di Speranza (1951): rumo ao "pink" neorrealismo

 

A fórmula, sarcasticamente designada em italiano como "escrita 'tabolino'", consistia, segundo Sacchelli, nisto: "Bom, temos um homem, uma mulher e 100 minutos de filmes para preencher. Como fazemos?" (risos). Aí apareciam as traições e os ciúmes que iam dar a obras populares como "Pane, Amore e Fantasia" ou, espécie de sequela, "Pane, Amore e Gelosia". "Se fosse a história de uma rapariga que só fazia sexo depois do casamento era uma comédia; se fizesse antes virava um drama de Matarazzo!" (risos).

 

No final da década, mestres como Dino Risi dariam ao "pink neorrealismo", designação que se atribui à tendência, uma acutilância especial ao usar dos seus artifícios para dissecar a sociedade pequeno-burguesa em ascensão. Antes dele, no entanto, o grande ideólogo do neorrealismo, Cesare Zavattini, testava outras formas, como na obra coletiva 'L'Amore in Cittá', por exemplo (realizações de Antonioni, Fellini, Risi, Alberto Lattuada, Carlo Lizzani e o próprio Zavatini). "No filme narravam-se histórias de amor no pós-guerra, onde dava-se grande importância aos espaços, aos locais onde tudo acontecia e o ambiente realista circundante".

 


L'Amore in Cittá (1953): experiências neorrealistas

 

Os anos 80 e a travessia no deserto: crise da indústria, crise de ideias

 

Poucos países podem rivalizar com o que se produziu em Itália a partir da segunda metade dos anos 50 e nos 20 anos subsequentes. "Esse é o período dos grandes mestres, onde o cinema experimental era popular (La Dolce Vita) teve a maior bilheteira de Itália de 1960",produzia-se uma variedade impressionante no cinema de género e a produção italiana corria o mundo. Tal como aconteceu um pouco por todo o lado, em termos económicos aprofunda-se a partir de Star Wars a retomada do mercado pelos americanos, com a infantilização temática do cinema e um retrocesso dramático da diversidade e da experiência que dura até hoje.

 

Segundo Sacchelli, no entanto, não foi só uma crise mercadológica, mas de ideias. "Um dos problemas foi que a geração dos mestres não deixou descendentes. A partir de certa altura os talentos jovens constam-se nos dedos das mãos. Assim houve uma fratura ao longo dos anos 80 e 90 e uma nova geração teve muita dificuldade em impor-se".

 

Ponto de chegada: a vida mexe-se sob o microscópio

 


A Grande Beleza (2013): o novo cinema italiano

 

O festival de Villerupt decorre em outubro/novembro nesta pequena localidade francesa. Mas o evento é grande – o maior de cinema italiano em território francófono. A proximidade com a antiga região do aço (Noroeste da Alemanha) justifica um enorme contingente de descentes de nativos da península mediterrânica. Por lá passa boa parte da produção do país no ano anterior.

 

"Há jovens a fazer belíssimos filmes", diz Sacchelli. "Infelizmente, o cinema italiano já não é distribuído como antes e, mesmo dentro de Itália, os únicos filmes que conseguem números relevantes no 'box office' são as comédias. Para encontrarmos um drama temos que ir ao 40º posto da tabela – e estamos a falar de um filme oscarizado – como, por exemplo, 'A Grande Beleza'".

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por Roni Nunes às 00:16


Comentários recentes

  • Cleber Nunes

    Sem dúvida é um filme que me despertou interesse ...