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“Exploitation” à brasileira: ascensão e queda da Boca do Lixo

por Roni Nunes, Domingo, 09.09.18

Artigo originalmente postado em C7nema.

Roni Nunes & Hugo Gomes

 

Tiago Monteiro l Foto.: Sabrina D. Marques

 

O MOTELx decorre em Lisboa e o cinema brasileiro volta a estar em pauta: neste sábado Morto não Fala, destacado pelo festival como um dos grandes do evento, traz a estreia na direção de Dennison Ramalho, antigo colaborador do mítico Zé do Caixão.

 

O C7nema aproveita a ocasião para uma belíssima conversa com Tiago Monteiro, professor do curso de Produção Cultural do Instituto Federal do Rio de Janeiro, que esteve no festival no ano passado para uma “masterclass” que falava, justamente sobre a preservação da cultura popular e onde se sobressaía a história muito particular da “exploitation” à brasileira.

 

Esta manifestou-se através de uma indústria comercialmente bem-sucedida entre os anos 70 e o início da década de 80, que ficou associada à uma zona degradada do centro de São Paulo, onde circulavam pequenos criminosos e prostitutas, designada por Boca do Lixo. Essa produção, que atingia milhares de espectadores, foi sempre muito mal tratada pela intelectualidade brasileira e só nos últimos anos têm merecido uma reavaliação académica.

 

Em primeiro lugar, porque lhe interessou essa investigação sobre a Boca do Lixo?

 

É uma pergunta curiosa: a minha supervisora no pós-doutoramento, momento onde surgiu essa investigação a partir de uma tese sobre o horror no cinema brasileiro, dizia que se ela estivesse investigando ‘comédia romântica argentina’, por exemplo, ninguém faria a pergunta. As pessoas questionam que tipo de curiosidade leva a alguém a interessar-se por esse tipo de cinema.

 

A Mulher que Inventou o Amor (Jean Garret, 1979)

 

Eu nasci em 1982, numa época na qual o cinema brasileiro começava a atravessar período de crise, que o afasta do seu público e que lega para posteridade o estigma de cinema ruim, de baixa qualidade, que só tem sexo e calão. Tirando os filmes dos Trapalhões, ele não tinha circulação expressiva. Ao mesmo tempo esses filmes da Boca do Lixo, que eu não sabia o que era, passavam na televisão, mas sempre de madrugada, tinham uma aura clandestina. Eles tinham um apelo erótico e eram uma espécie de rito de passagem por serem proibidos pelos pais, eram filmes que eu não podia ver.

 

Depois, quando se estuda mais, uma pessoa começa a separar mais o discurso entre aquilo que o senso comum classifica como ruim e de baixa qualidade e aquilo que tem, logo à partida, um valor histórico apenas por ter sido feito e dizer algum coisa sobre o período no qual isso aconteceu. Aí eu comecei a desenvolver um interesse por esses temas que a historiografia tradicional queria varrer para debaixo do tapete.

 

Esse processo de silenciamento vai por vários lados, ou seja, não só as pessoas não têm conhecimento desse tipo de produção como não existem lançamentos em DVD ou qualquer tentativa de preservação da memória audiovisual dessa produção.

 

Mas não existe, em geral, preservação do cinema brasileiro dos anos 70 e 80 – mesmo no caso das produções da Embrafilme, por exemplo…

 

Sim, mas os da Embrafilme de alguma forma acabam sobreviver um pouco mais ao tempo e alguns chegam ao DVD por força de terem sido produzidos e distribuídos por uma entidade oficial. Era um órgão do governo forte no tempo da ditadura nos anos 70 que não só produzia como também distribuía filmes e supervisionava a exibição … São mais fáceis de se encontrar, não significando que estejam legitimados. O problema é que os produtores da Boca não faziam parte desse grupo da Embrafilme, antes pelo contrário.

 

A imprensa então nem sequer referia esses filmes?

 

A imprensa referia, mas era para falar mal, o que ainda piorava a situação. Havia uma espécie de preconceito. Alguns filmes são tecnicamente muito precários, eu não estou entrando no mérito da qualidade dos filmes. Mas havia um certo discurso, um senso comum, que deslegitimava esses filmes em função da origem e do público para os quais eram destinados.

 

Ou seja, os realizadores eram populares, não tinham formação intelectual, académica, começavam como técnicos e depois iam aprendendo até tornarem-se realizadores. Eles queriam fazer um cinema voltado para um público que vinha do mesmo lugar que eles: as classes populares.

 

Amor, Palavra Prostituta (Carlos Reichenbach, 1982)

 

Então, cada vez que saía um filme da Boca, a imprensa ‘caía em cima’, dizendo que eram grosseiros, mal acabados e atribuindo-lhes o rótulo de pornochanchada – que não se justificava. Tecnicamente, esse é um formato que era inspirado nas comédias eróticas italianas dos anos 60 e não eram “porno”, no máximo “softcore”. Muitos também não eram comédias e havia muitas propostas completamente diferenciadas, mas a repetição deste discurso terminou por levar que fossem invariavelmente rotulados de apelativos e de querer ganhar dinheiro a qualquer custo.

 

Essa é uma ideia bizarra, porque todas as indústrias, como a de Hollywood ou a italiana dos anos 60, querem “ganhar dinheiro a qualquer custo”…

 

Mas acho que em países que como o Brasil a nossa identidade audiovisual para o mundo se fundamentou no conceito de “cinema de autor”. Eu não gosto deste rótulo e desta separação por duas razões: em primeiro lugar fica parecendo que não é possível a perspetiva autoral na indústria e em segundo que cinema de autor ou de arte não tem pretensões comerciais, que não está inserido numa lógica de mercado. O que se tenta fazer hoje em dia é identificar na trajetória de alguns autores da Boca um olhar que pode ser chamado de autoral e que articula outras preocupações que vão além da mera pretensão comercial.

 

Esse rótulo de “pornochanchada” destruiu a ideia de se levar a sério a história do cinema brasileiro…

 

O nome pornochanchada surgiu num momento muito específico para nomear um tipo de comédia urbana erótica calcada na Itália. Eram filmes em episódios com histórias picantes, mas não eram pornográficos. Aliás, o primeiro filme de sexo explícito no Brasil só surge em 1983. Já o termo ‘chanchada’ vinha das comédias produzidas nos anos 40 pela Atlântida. A imprensa começa a recorrer a este termo para nomear todo e qualquer tipo de filme que tinha esse apelo mais popular, independente de ser cómico, o que frequentemente não eram.

O Escorpião Escarlate (Ivan Cardoso, 1990)

 

Há uma declaração do Cláudio Cunha, um realizador da Boca, muito ilustrativa a esse respeito. Ele contava que cada vez que ‘lançava um filme que era um drama vinha a crítica e chamava de ´pornodrama´. Aí eu fazia um filme que se passava no ambiente da ‘disco’ e chamavam de pornodiscoteca. Eu estava tão farto disto que decidi fazer mesmo um filme pornográfico’. Então ele fez Oh! Rebuceteio!(risos). Que, aliás, é ótimo, um filme muito engraçado, muito bem acabado, feito numa época em que as pessoas pensavam que o sexo explícito pudesse render algo mais em termos de arte. É o último filme dele, de 1984.

 

No final dos anos 70 os filmes ficam mais gráficos. No início dos anos 80 começam a aparecer filmes como Império dos Sentidos (Império da Paixão no Brasil) e Calígula e a censura estava no fim. Então o que estava reprimido começa a circular. Eles estreavam no Brasil quando medidas judiciais, quando um advogado dizia que aquilo era ‘arte’ e não se poderia proibir. Então quando se abriu a porta para o primeiro muitos vieram a seguir.

 

Mas aí os exibidores perceberam que estava dando dinheiro e já não queriam apenas “sugestão”, mas sexo explícito mesmo. Entre 1983 e 1984 há uma enxurrada deles. Mas assim como surge também rapidamente se esgota: passada a demanda reprimida, perde-se o interesse. E aí a Boca começa a entrar em crise, pois fica sem ter para onde ir uma vez que, depois de passar cinema pornográfico, você já não consegue voltar a exibir outro tipo de cinema.

 

Quando os “blockbusters” começam a tomar conta do mercado há produtores de baixo orçamento, como Roger Corman, que usaram outras alternativas, como o VHS. Na Boca não se pensou nisto?

 

Não, mas aí eu acho que isso tem a ver com o défice tecnológico do Brasil na época. O VHS entra no país alguns anos depois dos Estados Unidos. De qualquer foi uma série de fatores que dita o fim da Boca – entre as quais o facto do consumo de filmes pornográficos que persistiu ser de filmes americanos. Os exibidores concluíram que era mais barato comprar produtos prontos dos Estados Unidos.

 

Além disto a própria Embrafilme entra em crise – muito também em função de má gestão, de falta de cobrança de resultados aos produtores que recebiam dinheiro

 

Mais tarde os cinemas do centro das grandes cidades começam a fechar, surgem as ’salas multiplex’ e, no início dos anos 90, o presidente Fernando Collor de Mello põe a ‘pá de cal’ na produção audiovisual brasileira – que ficou sem existir durante alguns anos.

Material promocional de Excitação (Jean Garrett, 1976)

 

Esse processo nos anos 80 é mundial, todos os centros de produção entram em crise e Hollywood toma conta de tudo.

 

Carlos Reichenbach (*importante cineasta brasileiro), que também produziu na Boca, tinha uma perspetiva mais alargada sobre isso: ele defendia que o fim da Boca era uma estratégia das ‘majors’, porque os filmes brasileiros, por mais precários que eles fossem, atraíam o público. E muitas vezes ganhavam dos filmes americanos em termos de bilheteira.

 

Entre 1975 e 1982, por exemplo, é comum encontrar obras que levavam entre 3 e 5 milhões de espectadores às salas. Hoje em dia é muito raro um filme nacional atingir esses valores – a maioria dos bem-sucedidos fica em torno de 100 mil. Era uma quantidade de público muito expressiva.

 

Há um movimento académico, mais crítico, tentando resgatar essa produção no Brasil?

 

Acho que sim, está em sintonia com o que tem acontecido por aí. A própria questão de haver uma produção académica sobre terror já é relevante. Há pessoas que cresceram vendo esse tipo de filme que eventualmente chegaram à Academia, que é um lugar legitimado, e começam a olhar e a dizer: ‘mas por que eu tenho que só discutir o Glauber Rocha e o Manoel de Oliveira’? Esses filmes também existiram, eles têm sentido histórico – independente da questão da qualidade. Existe um esforço das novas gerações de investigadores de legitimar teoricamente essa produção.

 

O que eu acho que falta mais nesse momento é uma preocupação não só com o armazenar o espólio, como com investimento na restauração, possibilitando que ele circule e seja preservado. Os negativos vão se perder e se não houver um pensamento no sentido de digitalizar, produzir versões melhoradas, tudo o que vai restar são as cópias em muito mau estado que por vezes se encontram por aí. Não sou contra que se ganha dinheiro com isso, mas que se ganha corretamente e não simplesmente comercializando produtos sem qualidade alguma.

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por Roni Nunes às 19:00

Motelx 2017: rescaldo final e "It"

por Roni Nunes, Terça-feira, 26.09.17

Artigo originalmente postado em C7nema (http://www.c7nema.net/festival/item/47087-motelx-2017,-a-machadada-final-o-melhor,-o-pior-e-o-filme-do-palhaco.html)

 

Motelx 2017, a machadada final: o melhor, o pior e o filme do palhaço

  • Publicado por  Roni Nunes

 

Terminou ontem (10/09) mais uma edição do Motelx. O C7nema propôs ao longo da última semana uma série de artigos sobre filmes de terror e conclui com um rescaldo do que por lá se passou.

 

Do Melhor: Machadadas no pescoço

 

A rica história do cinema de terror e a parceria ibero-americana através de “O Estranho Mundo do Terror Latino” trouxe: “El Vampiro”, bela fantasia mexicana no ocaso da tradição gótica; “À Meia-Noite Levarei a sua Alma”, o cartão de visitas do satanismo sádico de Zé do Caixão; “Quien Puede Matar a un Niño”? – um passo adiante na vilania infantil com terror atmosférico e um incrível final à “catanada”.

 

Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964)

 

Dois nonagenários certamente abrilhantaram a edição. Um causou o furacão Jodorowsky (entrevista brevemente): filas pela Avenida da Liberdade para a sessão de autógrafos do mestre chileno – enquanto o surrealismo sangrento de filmes tantas vezes copiado, como “Santa Sangre” e “El Topo”, passaram pelos ecrãs.

 

Roger Corman também andou pelo São Jorge, no dia 6. O homem em si é um património do cinema americano; pelos ecrãs passaram o estupendo “The Masque of the Red Death” e o singular “X: The Man with the X-Rays Eyes”.

 

Por Lisboa andaram autores de trabalhos inestimáveis de recuperação da memória cinematográfica: Daniel Bird acompanhou o processo de restauração das obras do grande Walerian Borowczyk e escreveu um livro onde recupera até o vasto trabalho de pintor e ilustrador do artista; Tiago Monteiro investiu na “Boca do Lixo”, produção exploitation dos anos 70 de São Paulo (Brasil), acompanhado da exibição do icónico “Excitação”, de Jean Garrett; Kim Newman trouxe o seu estatuto e o facto de ter sido, nos 80, um dos principais nomes a tornar o terror um objeto académico em livros como “Midnight Movies”.

 

O que todos eles têm comum é o facto de terem sido entrevistados pelo C7nema: brevemente num ecrã perto de si.

 

X: The Man with the X-Ray Eyes (1963)

 

66 Machadadas

 

66 filmes e cem sessões tornam dura a vida do comum dos mortais num festival de cinema. Entre o melhor do que por lá passou do cinema recente: a poesia do claustro de Cate Shortland (“Berlin Syndrome”), o humor com comentário social de Alex de la Iglesia (“El Bar”), o terror com ação frenética e muuuitos zombies em “Train to Busan”; um palmo abaixo houve a nostalgia de “Boys in the Trees”, a trip distópica de “The Bad Batch”, o gore oitocentista de “The Void”, a visão feminina da era vitoriana de “The Limehouse Golem”, as narrativas paralelas de “Killing Ground”, a monstruosidade como um facto do quotidiano em “The Hounds of Love”, as sutilezas do ocultismo de “A Dark Song”.

 

Golpe de canivete: a curta-metragem vencedora

 

Os cuidados superiores de produção renderam a “Thursday Night”, de Gonçalo Almeida, o prémio de Melhor Curta-Metragem portuguesa. Com muita música ambiente (o filme é inspirado em Brian Eno; o realizador é coautor da banda sonora) e jogos de luzes, constrói-se uma recriação de algumas convenções do cinema de terror com um protagonista canino; peca por ser tão fantasmagórico que até a sua história (que era…?) se desvanece no etéreo.

 

Cold Hell (2017)

 

Faca na árvore: o “melhor” europeu

Mas se no caso acima fica a promessa, mais questionável é o prémio de Melhor Filme Europeu concedido a “Cold Hell”, do austríaco Stefan Ruzowitzky. Há atrocidades em escala suficiente, ainda que nem sempre credíveis, para (tentar) individualiza-lo na massa de filmes americanos com crimes ritualizados, vinganças à cacetada e perseguições de carros (ainda que particularmente aparatosas).

 

Mas o seu traço mais original está no enquadramento temático – e aqui entra-se numa galáxia nebulosa: o assassino em série é um fanático muçulmano; a heroína é uma turca abusada pelo pai (muçulmano); a mãe é omissa e ela busca refúgio na casa de um policia alemão racista. Para “compensar” essas demonstrações de um tradicionalismo espúrio, a prima da protagonista é promíscua, uma maneira tosca de insinuar que ela era “liberal” à maneira do Ocidente – seja o que isso for. Enfim, o que toda essa dubiedade traz, independente de como se queira ler o filme, é uma certa leviandade.

 

Super Dark Times (2017)

 

Faca na água: o filme de abertura

 

A sessão de abertura é uma experiência particularmente coletiva e não combina com a escolha um filme intimista que, eventualmente, poderia ser melhor apreciado em circunstâncias favoráveis. Como foi, a visualização de “Super Dark Times” transformou-se num exercício algo penoso na medida que todo o esforço do realizador Kevin Phillips consistiu em eliminar qualquer clímax. Quando muda de ideias, no final, muita gente (incluindo aquele que escreve) já deixou de se importar.

 

Episódio final: palhaçadas

 

E já que se está no terreno das lâminas é preciso abrir a golpes potentes o caminho até “It”, o objeto fílmico; toneladas de dólares/euros já foram gastos, aliados a todas as macaquices engendradas pelos departamentos de marketing, para o torna-lo uma sensação. Começando pelo pior: os clichés da banda sonora e os “jump-scares” são os signos universais com os quais Hollywood comunica com as massas de espectadores casuais a quem destina as suas produções terroríficas. Estão lá – mas nada a ver com os abusos de “Annabelle 2”, seu imediato antecessor.

 

It (2017)

 

Mais nada a apontar. A tecnologia confere amplos poderes aos “designers” informáticos do palhaço Pennywise; há “zombies”; Andy Muschietti abandonou Modigiliani (“Mamã”) e foi para Munch (a semelhança de “O Grito” com a mulher que sai do quadro); há um assombroso momento splatter a abrir: o palhaço dançarino não veio para fazer sorrir. Mas dá para rir: mais que comic reliefs de ocasião, os momentos cómicos são de uma graça orgânica.

 

Os “losers”, grupo de seis crianças, estão cercados: a cidade está “amaldiçoada”, os meninos mais velhos são os mais completos escroques, os adultos são ausentes ou pouco recomendáveis; há bullying, abusos sexuais, chantagem emocional, a dor da perda e a culpa. Mais que um filme para as pipocas, proposta e execução concretizam um belo e aterrorizante conto sobre a incomunicabilidade da infância – a qual só a “irmandade” dos “losers” pode atenuar.

 

Aproveitem o verão, miúdos...

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por Roni Nunes às 23:51

Motelx 2017: os 10 melhores filmes de Roger Corman

por Roni Nunes, Terça-feira, 26.09.17

Galeria disponível em SAPO MAG - http://mag.sapo.pt/cinema/atualidade-cinema/fotos/motelx-os-10-melhores-filmes-de-terror-do-mestre-roger-corman

 

OS DEZ MELHORES FILMES DE TERROR DE ROGER CORMAN

 

O produtor/realizador estará no Motelx – que decorre entre 5 e 10 de setembro. O SAPO MAG foi revisitar as obras do artista, famoso pelos seus milagres artísticos a partir de orçamentos insignificantes e prazos reduzidos e apostar num Top que ainda deixa de fora trabalhos como “The Premature Burial” e “The Tomb of Ligeia”. Corman trabalhou a maior parte do tempo com a American International Pictures (AIP) e, para além dos inúmeros talentos que depois brilharam na Nova Hollywood, teve uma grande equipa de argumentistas (Richard Matheson, Charles Griffith, Charles Beaumont), diretores de arte (Daniel Haller) e de fotografia (Floyd Crosby, Nicolas Roeg). Também profícua foi a colaboração com Vincent Price, que entrou nos oito filmes do ciclo inspirado em Edgar Allan Poe.

 

 

10 THE RAVEN (1963)

 

O famoso “nevermore” do poema de Poe serve para inspirar a última piada do filme; cansados de terror, Richard Matheson e Corman valeram-se do sucesso dos momentos de comédia de “Tales of Terror” para fugir dos modelos macabros. Mais que comédia negra, aposta francamente no absurdo até chegar, claro, ao “duelo” entre os dois grandes mágicos – Vincent Price e Boris Karloff. Peter Lorre (no papel-título!) completa este Grande Triunvirato da História do Terror.

 

 

9 THE UNDEAD (1957)

 

Um dos melhores esforços de Corman no terreno do “extreme low-budget” com que trabalhava em início de carreira. A AIP atirava para todos os lados e alvo aqui é a “febre” da reencarnação despoletada por caso mediático da altura. Sem se levar muito sério, Corman e seu colaborador mais dado ao humor, Charles Griffith, investem numa movimentada história de “regresso ao passado” que inclui Mefistófeles, feiticeiras, enterramentos vivos, cadáveres para todos os gostos, anedotas diversas e até uma literal “dança macabra”…

 

 

8 THE MAN WITH THE X-RAY EYES (1963)

 

Uma pausa no ciclo poeniano para o dia-a-dia das ruas da metrópole. Um médico (Ray Milland) desenvolve um produto que o faz ver “além” das aparências iniciais. A era dos “cientistas loucos” caminha para a extinção; se o começo parece igual a dezenas de filmes feitos nos 30, 40 e 50 o resto estabelece o projeto mais singular do cineasta. Da ciência para o campo místico – não religioso nem moral, “X” atravessa por circos, mercadores e curandeiros. Corman teve dúvidas ao embarcar para esta viagem: se os recursos técnicos falhassem, o espectador seria enganado. O “Spectorama” (conjunto de recursos óticos) deu à volta a situação, enquanto o final, diferente de outros tempos, demonstra uma visão social muito mais “dark”. Ao que parece os anos 60 não foram “tão dourados” quanto isso…

 

 

7 THE LITTLE SHOP OF HORRORS (1960)

 

Quem esquecerá uma devoradora planta falante desesperada por sangue – especialmente quando as suas palavras geralmente se resumem a um sonoro e ardiloso “feeeed meeee!!!”? “Cult classic” absoluto – com a dupla Griffith/Corman repetindo algumas das ideias de “A Bucket of Blood” (o inadaptado que vira assassino por acaso, o ganancioso que o encobre por dinheiro, ainda que apavorado, o amor platónico do protagonista etc.) para tornar um rumo quase delirante e a beirar o burlesco “chapliniano”.

 

 

6 THE TALES OF TERROR (1962)

 

O original de “The Black Cat” incluía alcoolismo, assassinatos, ocultação de cadáver; inspira (com uma engenhosa inclusão de “The Cask of Amontillado”) o maior dos três episódios de “The Tales of Terror”. No meio desta macabra história há uma impagável cena de humor: Vincent Price, pomposo e efeminado, faz um duelo de degustação de vinho com Peter Lorre – que, apesar de ingerir como um alarve qualquer bebida que se lhe pusessem à frente, sabia diferenciar alhos de bugalhos. Há ainda a mais solene abordagem de “Morella”, abusando da “teia de aranha” para simbolizar o ostracismo do protagonista, ou da degradação cadavérica de “The Strange Case of Mr. Waldemar”.

 

 

5 A BUCKET OF BLOOD (1959)

 

Era fácil ser cínico com a pseudociência (“The Undead”) – mais temerário era ironizar os costumes da prestigiosa geração “beat” na aurora da contracultura. Dick Miller vive um empregado de balcão ingénuo e burro que, ao matar um gato por acidente e cobri-lo com argila, é “descoberto” como um grande artista. Para manter o estatuto, no entanto, precisa arranjar mais “matéria-prima”… Uma cruel demolição da vida dos artistas (a pomposidade, as vaidades, as contradições) misturado com assassinatos em série. Ou, como diz o poeta, que “as suas mesquinhas mortes sejam argila para as suas mãos!”. A salientar apenas que, ao contrário do que diz Corman na sua autobiografia, ele NÃO inventou com esse filme as “comedy horrors” – que já existiam desde os anos 20.

 

 

4 THE HAUNTED PALACE (1963)

 

O mercantilismo da AIP inseriu o filme no ciclo Poe, mas a origem é outra – H.P. Lovecraft. Certamente tem Price assolado por uma maldição (com abertura semelhante a de “La Maschera del Demónio”, clássico de três anos antes de Mario Bava); ela foi lançada pelo seu próprio antepassado, dado a feitiçarias, Joseph Curwen (também Price, obviamente). Este último não tenta apenas apossar-se do corpo do seu inocente herdeiro que observa o seu quadro na sala; antes de morrer um século antes lançou votos de infelicidade eterna sobre todo o vilarejo que o condenou. Entre “fogs” e ruas pouco distinguíveis, aterradores mutantes dão ao filme um tom distinto dos outros projetos do ciclo.

 

 

3 THE PIT AND THE PENDULUM (1961)

 

Uma cópia não tem de ter caráter pejorativo; “House of Usher” definiu os parâmetros, “The Pit and the Pendulum” expandiu-os. Até a mobília do primeiro transitou para recriação no segunda. A ideia inicial é a mesma: um cenário requintado esconde caves (e instrumentos de tortura, neste caso) com raros vislumbres externos. Isso significa novamente os ricos interiores de Haller e os temas pertencentes ao coquetel “poeniano” habitual – com seu protagonista (Price novamente) torturado pela culpa e à beira da desintegração, mais enterramentos vivos e sequências oníricas. Trás ainda um apelo extra – uma pequena participação da musa terrorífica dos 60s, Barbara Steele. O “twist” final é uma pérola de perversidade mórbida.

 

 

 

2 HOUSE OF USHER (1960)

 

Corman percebeu que o mercado de “drive-ins” dos 50s caminhava para o ocaso; com o estatuto em alta, recusou-se a outro dos seus “cheapies” para propor novos horizontes. O resultado foi uma cuidadosa adaptação do conto de Edgar Allan Poe. O filme relacionava a construção visual a um princípio contido no original – a associação entre degradação moral e ruína física. Para contar esta história sem vilões mascarados (“a casa é o monstro”, dizia a Corman para convencer a AIP), reuniu-se o grande naipe de talentos e colaborações que mantiveram-se ao longo dos quatro anos do ciclo que o sucesso do filme originou. Este incluía Haller, Crosby e Matheson – combinados com a música particularmente eficaz de Les Baxter e o uso de quadros impressionistas para reforçar nos retratos a perfídias dos ancestrais de Roderick Usher – uma das melhores composições de Vincent Price.

 

 

1 THE MASQUE OF THE RED DEATH (1964)

 

Da feliz união mercadológica da AIP com a Amalgamated, uma das melhores produtoras de terror britânicas (“The Horrors of Black Museum”, “Peeping Tom”) saiu o maior orçamento de Corman. Melhor uso impossível – nesta obra magistral. Em tempos de Peste (a Morte Vermelha do título), o castelo é o refúgio dos aristocratas pouco recomendáveis, liderados para um incrivelmente pérfido Prospero (Price) em busca de um voluptuoso festim satânico. Mas a “Morte não tem mestre”, diz a própria ao incauto príncipe. Cenários, cores, personagens, história (escrito principalmente por Beaumont, que adoeceu antes de terminar), câmara/luzes (a cargo do genial Nicolas Roeg) – tudo funciona neste pesadelo barroco, amargamente existencial e repleto de poesia.

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por Roni Nunes às 23:38

Motelx 2017: "Boys in the Trees"

por Roni Nunes, Terça-feira, 26.09.17

Artigo originalmente postado em C7nema (http://www.c7nema.net/festival/item/47070-seis-noites-de-terror-docura-ou-travessura-na-terra-do-nunca.html)

 

Seis Noites de Terror: doçura ou travessura na terra-do-nunca

  • Publicado por  Roni Nunes

 

O homem das fabulosas imagens de “Santa Sangre” (exibido sábado) e “El Topo” (domingo), Alejandro Jodorowsky, estará no São Jorge para uma conversa – mediada pelo historiador, crítico e escritor Kim Newman.

Nem só de sessões de filmes vive o Motelx: outros brilhantes aventureiros dos anos 70 (Walerian Borowczyk e Jean Rollin) são temas de conversas com os autores de uma biografia do primeiro (Daniel Bird) e de um conjunto de ensaios sobre o segundo (Kier-La Janisse). Ambos conversam com o público.

Voltando às imagens em movimento, a noite de Halloween vira um rito de passagem para jovens de uma pequena cidade australiana em “Boys in the Trees”.

BOYS IN THE TREES

Richard Linklater encontra o Capucinho Vermelho; não é o último dia de aula (“Dazed and Confused”), mas é Halloween. Numa cidade pachorrenta do sul da Austrália adolescentes fazem diabruras; muitos lutam para não crescer, outros o fazem contra a vontade. Existem aqueles para os quais os caminhos poderão estar fechados; um homem de branco espera na entrada para o portal.

Repleto de anos 90, um coming-of-age devidamente nostálgico, onde as florestas coloridas, as ruas iluminadas e o argumento aproveitam todas as imagens do Halloween para um jornada pelo fantástico. Neste dia a infância acaba; um miúdo (Gully McGrath) que sofre de bullying conta histórias onde mistura fantasia com a realidade; outro (Tobi Wallace) ouve: não é completamente adulto, mas já não é criança. Para ambos a fantasia é a suprema forma de lidar com o inconfessável.

Longa-metragem de estreia do realizador Nicholas Verso. Deu trabalho juntar a ostensiva banda sonora: toda a ação fica mais fácil ao sabor de “Beautiful People” (Marylin Manson) ou “Engel” (Rammstein); no caso de Yoko Ono e Manson os pedidos foram feitos pessoalmente; a conterrânea de Verso, a cantora Wendy Rule, por seu lado, protagoniza aqueles momentos destinados a ficar na memória – o momento fúnebre surrealista onde canta com um gótico figurino a rigor.

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por Roni Nunes às 23:27

Motelx 2017: "Train to Busan", "Berlin Syndrome", "A Dark Song"

por Roni Nunes, Terça-feira, 26.09.17

Artigo originalmente postado em C7nema (http://www.c7nema.net/festival/item/47063-seis-noites-de-terror-comboio-para-a-diversao.html)

 

Seis Noites de Terror: Comboio para a diversão

  • Publicado por  Roni Nunes

 

O yin e o yang no quarto dia do Motelx. Em “Berlin Syndrome” a protagonista fascina-se com tapetes na janela, em “A Dark Song” o contato com o “lado de lá” não inclui telecinese histérica; no extremo oposto não há tempo para olhar pela janela em “Train to Busan”: um suspiro em falso significa uma dentada fatal.



TRAIN TO BUSAN

Clichés de filme-catástrofe, dramas sentimentais colados com cuspo. Críticos americanos referiram o “conteúdo social” do filme; estão habituados à anemia dos seus blockbusters. O que existe aqui é uma “réstia” de ideia, que pode ser resumida assim: os culpados dos males são os especuladores da Bolsa de Valores. Over. Mas nada disto importa. Em “Train to Busan” só os zombies interessam. E a ação – para uma diversão que sabe menos a plástico que “World War Z”.

A Coreia do Sul é um país com uma área pouco maior que a de Portugal com 50 milhões de habitantes: quando uma praga de origem não identificada (o artifício lançado por Romero continua a valer) se abate, até há mortos-vivos a caírem do céu e a infestarem todos os espaços passíveis de serem preenchidos; ultraviolentos, andar requebrado, velocíssimos, mais loucos e ferozes do que nunca.

Fora dos ecrãs mais de dez milhões sul-coreanos saíram de casa para embarcar na viagem: foi o único filme a conseguir a façanha por lá. O responsável já andou pelo Motelx com algo mais sombrio em 2013: Yeon sang-ho fez “King of Pigs”. Também foi sucesso em França e a Gaumont quer fazer um remake. A única coisa a lamentar é que este filme, ideal para uma experiência coletiva de sustos e gargalhadas (dependendo do sentido de humor), não tenha aberto o Motelx 2017.

 



BERLIN SYNDROME

No extremo oposto Cate Shortland propõe uma história de sequestro com a beleza sutil da arthouse: delicados movimentos de câmara, pormenores nas passagens, nuanças nos personagens. Todas as possibilidades a Teresa Palmer mostrar o que vale. Ela é uma turista australiana que anda a fotografar detalhes de uma Berlim desconhecida. Viagem, descoberta, risco, romance. Não será bem assim, mas é o que ela pensa – especialmente conhece um nativo (Max Riemelt), o bom liberal alemão de dia, um fetichista sem humanidade à noite.

Shortland gosta de pôr as suas protagonistas em processos forçados de autodescoberta; mas enquanto em “Lore” Saskia Rosenthal vagueava pela terra arrasada com a ressaca do sonho nazi-nacionalista como pano de fundo, aqui o único movimento é para dentro. Sem hipóteses de saída: ao contrário das aparências, não existem as soluções de thriller (confrontos físicos apenas esporádicos, nenhuma autoridade policial, sem salvadores de para-quedas). O tempo flui à frente das janelas que Palmer olha como uma condenação irremediável. Mas muita coisa está a acontecer.

 



A DARK SONG

Em “A Dark Song” o cenário também único e a quantidade de protagonistas também se resume a uma dupla, mas a jornada de descoberta é bastante menos inocente. Uma mulher (Catherine Walker) aluga uma casa na zona rural de Gales para ter sossego. Alia-se a um rude praticante das artes da cabala (Steve Oran) para adentrar pelo além; quer encontrar seu anjo da guarda (e outras coisinhas mais).

Comparado à vasta tradição de casas a lidar com fenómenos paranormais, “A Dark Song” parece uma meditação. Em termos de cinema não há objetos a voar nem um desespero histérico em provocar sustos (filmes como “Annabelle 2”); “A Dark Song” é contruído num cuidadoso limbo entre a farsa, a crença e o real, onde Gavin conecta-se cinematograficamente com os terrores invisíveis de velhos mestres como Jacques Tourneur.

A Irlanda, país do estreante Liam Gavin, em outros tempos foi terra de mosteiros e sacrifícios ascéticos, das guerras de religião e de um catolicismo arraigado. Talvez isso explique que uma aventura pelas artes mágicas se revele misturada com a mitologia cristã e os seus fundamentos morais, como o perdão – com uma representação visual surpreendente. Conclusão: deste filme anti-sustos não se espera cinismo: na mente do argumentista/realizador o bom e o mau existem e duelam algures no intangível.

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por Roni Nunes às 23:08

Motelx 2017: "The Masque of the Red Death", "The Bad Batch", "The Hounds of Love"

por Roni Nunes, Terça-feira, 26.09.17

Artigo originalmente postado em C7nema (http://www.c7nema.net/festival/item/47058-seis-noites-de-terror-pausa-para-falar-com-a-morte.html)

 

Seis Noites de Terror: pausa para falar com a Morte

  • Publicado por  Roni Nunes

 

No terceiro dia do Motelx: a magia de “The Masque of the Red Death”, o delírio distópico “The Bad Batch” (estreia comercialmente em Portugal com o título “Terra sem Lei”) e a violência sexual de “The Hounds of Love”.

 

THE MASQUE OF THE RED DEATH

 

O príncipe Próspero é o mais perfeito vilão de Vincent Price ao lado do caçador de bruxas de “Witchfinder General”; quando não está a extorquir campónios e a condenar inocentes à morte, salva da peste (a Morte Vermelha) uma turba de aristocratas escroques. Praticante de todas as vilanias possíveis, apenas aguarda o momento do grande festim em honra de Satanás.

 

 

Muita acima do poder dos homens e dos deuses, no entanto, está a Morte; a exibir um variado número de faces e um colorido figurino, ”Ela” explica a Próspero que “não tem chefe”. Na parábola de Corman o bom e o mau surgem sob uma interpretação quase herética: satã não reina, mas o deus cristão (os “bons” do filme parecem saídos de um filme bíblico) também não.

 

Mais não vale dizer: a poesia que emana do filme é para degustação in loco. Há um sumptuoso banquete oferecido pela qualidade habitual de Daniel Haller (diretor de arte), aqui apoiado por ninguém menos que um Nicolas Roeg (fotografia) em início de carreira (havia sido assistente em “Lawrence da Arábia”) e maiores ofertas de capitais provenientes pela associação da AIP com uma das mais interessantes produtoras dos anos 60, a britânica Anglo-Amalgamated. A mudança faz-se notar: a companhia do produtor Nat Cohen vinha desde o final dos anos 50 a oferecer alternativas marcadas de sadismo às convenções sobrenaturais da Hammer – produzindo filmes brutais como “Horror of Black Museum” (1958) e “Peeping tom” (1960).

 

 

O filme é o ponto alto de um ciclo. Aquilo que começou para ser um projeto único baseado em Edgar Allan Poe (“House of Usher”, de 1960) passou a seguir a lógica do que deu lucro: “The Pit and the Pendulum” (1961) foi uma réplica, “The Premature Burial” (1962) um claro sinal de desgaste. Se Corman tivesse um lema havia de ser “quem fica parado é poste”: assim “Tales of Terror” (1962) trazia uma narrativa em episódios e, com o sucesso dos momentos de humor, veio uma comédia explícita – “The Raven” (1963). “The Haunted Palace” (1963) mudou de fonte e foi para H.P. Lovecraft, mas foi vendido como vindo de Poe por razões de marketing. A estas alturas, no entanto, não se imaginava o passo de gigante do penúltimo filme da série – completada com “Tomb of Ligeia” (1964) – obra novamente com belos ambientes, mas que acabou por se ressentir do argumento confuso de, quem diria, Robert Towne, Óscar na categoria em 1975 com “Chinatown”.

 

 

THE BAD BATCH

 

Sob a sombra do serrote de “Mad Max” há uma nova distopia a céu aberto; o título refere-se aos excluídos por decreto (óbvia referência aos refugiados) e tem a fórmula infalível para agradar: canibalismo, amputações, assassinatos gratuitos e “trips” no deserto (a sequência da pastilha é sensacional e a viagem é a borla). Já quem reconhecer Jim Carrey ganha uma entrada para Comfort (onde vivem os privilegiados) e Keanu Reeves está um verdadeiro filósofo enquanto narcotraficante e líder da comunidade.

 

 

Enquanto no interior a bizarrice estilizada corre solta e a luta pela sobrevivência termina frequentemente em churrasco, do lado de fora outras batalhas decorreram. “The Bad Batch” ganhou o prémio do júri no Festival de Veneza do ano passado; mas muitos críticos não gostaram da ementa. A acusação mais justa dos detratores será a de pastiche; certamente muita coisa parece ter saído de algum lugar. No mais pode-se acrescentar que atriz principal (Suki Waterhouse) é ruim e o argumento (da própria realizadora) se perde no deserto a partir de certo ponto.

 

Os filmes de Ana Lily Amirpour, independente dos méritos ou deméritos, inspiram descrições inventivas. Quando deu nas vistas em Sundance em 2014 com “A Girl Walks Home Alone at Night”, foi a própria a inaugurar a série: “o primeiro filme iraniano que mistura vampiros com western spaghetti”. A sensação foi muita e o resultado foi a esta sua estreia em língua inglesa.

 

 

THE HOUNDS OF LOVE

 

Dos espaços abertos para a clausura: no terceiro filme australiano com mulheres amarradas do Motelx (“Killing Ground”, “Berlin Syndrome”) um casal de psicopatas, sequestra, tortura, viola e mata adolescentes e continua a sua vida como se nada fosse. Até que a nova vítima afeta o “equilíbrio” da relação. Livremente inspirado num caso real.

 

Vendido como thriller, mas sem polícias (retratados de forma patética) e com a maior parte da violência fora de campo; a ênfase é no drama. Se Stephen Curry (o sequestrador) é um monstro tranquilo e à vítima (Ashleig Cummings) resta chorar e esperar (ganhou um prémio em Veneza, onde o filme estreou em 2016), cabe a Emma Booth (vítima, sádica, frágil, implacável) assegurar as contradições e o desenlace.

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por Roni Nunes às 22:55

Motelx 2017: "El Bar", "Killing Ground", "Kuso", "X-The Man with the X-Ray Eyes"

por Roni Nunes, Terça-feira, 26.09.17

Artigo originalmente postado em C7nema (http://www.c7nema.net/festival/item/47050-seis-noites-de-terror-quantas-piadas-apocaliticas-cabem-num-bar.html)

 

Seis Noites de Terror: quantas piadas apocalíticas cabem num bar

  • Publicado por  Roni Nunes

 

O segundo dia do Motelx (06/09) traz Álex de la Iglesia e a sua montagem epilética a confabular sobre medos reais e imaginários (“El Bar”), uma história de “salve-se quem puder” florestal (“Killing Ground”) e o campeão da nojeira – o americano “Kuso”. Já Roger Corman tem sessão de autógrafos prevista; posteriormente passa o seu filme mais estranho – “X: The Man with the X-Ray Eyes”.

 

EL BAR

O cinema de terror será dos mais prolíficos a contar histórias em espaços fechados. Coube a um outro espanhol o recorde da aventura: Rodrigo Cortéz construiu um enredo inteiro dentro de um caixão (“Buried”).

Álex de la Iglesia, por seu lado, descobriu que ligar a montagem à corrente produz faísca (“Las Brujas de Zugarramurdi”) e a intensidade do acontecimento ficará completa com piadas em catapulta, beldades banhadas em azeite e um ácido comentário social que trai a aparente brincadeira.

Em causa está o medo – e uma sociedade dominada por ele; a grande ameaça é o Outro – que pode ser um terrorista, um sem-abrigo, ou uma simples “barbie” que não parece ter nada na cabeça. E mais: o pavor facilmente baralha o real com o imaginário.

 

El Bar

 

Segundo o filme, na luta mais terra-a-terra pela sobrevivência o vizinho do lado torna-se rapidamente um alvo a abater; a televisão conspira sempre (tema de “La Chispa de la Vida”) contra todos e os poderosos vão-se ocultar através das suas fogueiras e falsas imagens; só um louco apocalíptico poderá chegar perto da verdade e apenas a descoberta do amor romântico trará alguma redenção no labiríntico esgoto por onde escoa a fealdade humana.

 

Mais prosaicamente, de la Iglesia quis criar personagens a partir de frequentadores de um café próximo à sua casa. É fácil de imaginar que, a partir daí, a ideia tenha evoluído para o seguinte: sob o medo e o horror, as máscaras sociais caem e o ser humano revela-se em toda a pureza do seu objetivo primordial – que consiste essencialmente em tentar não morrer. Tema certamente já explorado – mas o que importa é a forma.

 

KILLING GROUND

O mesmo princípio vale para o australiano “Killing Ground”: aqui a auto preservação põe em causa as juras de amor eterno. Há pinceladas de realismo na ação dos protagonistas face a situações de perigo: assim, eles se contrapõe duramente a jornada do grande super-herói hollywoodiano.

 



Killing Ground

 

De resto, basta um casal apaixonado, uma família com um bebé e dois delinquentes tarados para meter fogo na floresta. O argumentista/realizador australiano Damien Power decidiu, no entanto, evitar a qualquer custo levar o passageiro pela trilha do óbvio. Duas narrativas paralelas servem para deixar o espetador perdido – até porque só mesmo com uma história não-linear para percorrer este caminho gasto.

 

Em algum lugar dos anos 70 jazem atrocidades semelhantes cometidas no bosque (“I Spit on your Grave”), numa vizinhança perto de si (“The Last House on the Left”) ou no matadouro de nenhures (“The Texas Chainsaw Massacre”) – e que levaram os vilões humanos a horizontes além da imaginação. “Killing Ground” é uma proposta eficiente de méritos não aparatosos.

 

KUSO

Quanto ao americano “Kuso”, é preciso dar algum crédito a um filme que chega com o selo Variety de “filme mais nojento já exibido em Sundance” (pôs gente a fugir da sessão). Pode não ser relevante: espíritos sensíveis em festivais de arte andaram a desmaiar no muito mais palatável “Grave” (Raw). Mas “Kuso” é, efetivamente, repelente – embora esse venha a ser o menor problema dos aventureiros da sessão da meia-noite no cinema São Jorge: uma colagem surrealista de momentos grotescos que podem lembrar uma bizarra alegoria distópica – ou, na pior das hipóteses, não remeter a coisa alguma. Um rapper/DJ/produtor musical, Flying Lotus, está por trás da doença.

 

Kuso

 

E por que o nome do filme significa m* em japonês? E por que todos os personagens têm feridas asquerosas (algumas até falam)? A razão mais simples é que Lotus queria homenagear o grande Takashi Miike. “Eu gostaria de fazer um filme que o fizesse sorrir”, disse ao britânico Independent. Mas houve outros objetivos: para Lotus (o nome dele é Steve Ellison) o que é entendido como “cinema negro” é muito pouco visceral. “Eu quis trazer novos elementos para a discussão, fazer um verdadeiro filme de terror”.

A proposta não deixa de ser curiosa para alguém que escondeu-se atrás de um pseudónimo para lançar um álbum de rap. Aconteceu em 2012 e codinome era Captain Murphy. ”Eu sou tímido e achei que todo mundo ia odiar”, justificou-se. Bom, pelo menos agora corre um sério risco…

 

 



X: THE MAN WITH THE X-RAY EYES

Ray Milland consumiu parte considerável dos magros orçamentos de Roger Corman para dar vida ao cientista que inventa um soro para ver além da superfície. À boa moda dos filmes de monstros que infestaram as três décadas anteriores, ele quer provar algo temerário e que, certamente, vai dar errado. Mas curiosamente os efeitos não são o caos social, mas uma singular jornada para dentro.

Roger Corman andava muito ocupado por esta altura com o seu ciclo baseado em Edgar Allan Poe; mas enquanto estes são belos poemas góticos visualmente rebuscados, “X: the Man with the X-Ray Eyes” leva o espectador à uma viagem por um urbano cinzento e à uma travessia que ruma da ciência para o místico, onde não há lugar para o moralizante deus gótico/vitoriano.

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por Roni Nunes às 22:44

Seis Noites de Terror: excessos barrocos e (muito) sangue nas paredes: "The Limehouse Golem"

por Roni Nunes, Segunda-feira, 04.09.17

por Roni Nunes

Artigo originalmente postado em C7nema (http://www.c7nema.net/festival/item/47042-seis-noites-de-terror-excessos-barrocos-e-muito-sangue-nas-paredes.html)

 

O Motelx abre nesta terça-feira (05/09); entre as produções, o britânico “The Limehouse Golem” (em Portugal estreia quinta-feira com o título de “Os Crimes de Limehouse”) e o canadiano “The Void”. O que ambos partilham em comum são os (eventuais) excessos de ideias e (muito) sangue pelas paredes.

 

A  triste figura feminina no tempo da rainha Vitória

 

A argumentista Jane Goldman (que já coescreveu blockbusters como “X-Men First Class”) há de ter gasto longas horas e farturas de neurónios para equilibrar a multidão de meta-referências e reconstruções históricas de “The Limehouse Golem”.

 

The Limehouse Golem

 

O imaginário vitoriano continua a fascinar mais de cem anos depois; Goldman apoiou-se num livro dos anos 90 (do século XX) para dar uma leitura feminina à época. O tempo lembrado pelo puritanismo na superfície e pela selvageria fora da vista (a era de “Dr. Jekyll” e “Mr. Hyde”) é reconstruído com valores de produção alargados e um ator do primeiro escalão (Bill Nighy).

 

Tem mais: há um Sherlock Holmes mais ambíguo e mais no limite vivido por Nighy – um fleumático inspetor da Scotland Yard suspeito do “crime” de homossexualidade e uma história rocambolesca que envolve serial killers, bibliotecas e o mundo do teatro – palco para as referências metalinguísticas (o gosto do público por sangue, o ritual homicida enquanto espetáculo) e assassinatos violentos e explícitos o suficiente para o tirar da trilha de um whodunit (o que é) de telefilme (o que não é).

 

The Limehouse Golem

 

Nas voltas e reviravoltas, tudo se desenvolve sob o ritmo algo pesado da realização do espanhol Juan Carlos Medina (do paquidérmico “Insensibles”, de 2012), que até deixa  escapar sem a devida leveza a anedota vinda do facto do grande e notório “rato de biblioteca” Karl Marx ser suspeito de crimes em série (!).

 

Prevalece a visão brutal da triste figura da mulher num mundo de abusos, violência e, na melhor das hipóteses, de paternalismo oportunista com vista a favores sexuais.

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por Roni Nunes às 21:50

Seis Noites de Terror: excessos barrocos e (muito) sangue nas paredes - "The Void"

por Roni Nunes, Segunda-feira, 04.09.17

por Roni Nunes

artigo originalmente postado em C7nema (http://www.c7nema.net/festival/item/47042-seis-noites-de-terror-excessos-barrocos-e-muito-sangue-nas-paredes.html)

 

 

O Motelx abre nesta terça-feira (05/09); entre as produções, o britânico “The Limehouse Golem” (em Portugal estreia quinta-feira com o título de “Os Crimes de Limehouse”) e o canadiano “The Void”. O que ambos partilham em comum são os (eventuais) excessos de ideias e (muito) sangue pelas paredes.

 

The Void

 

Pavor cósmico

 

Em “The Void" os argumentistas/realizadores Jeremy Gillespie e Steven Kostanski convidam ao mistério com uma abertura violenta, para adentrar pelo ritmo langoroso de uma terrinha algures. Mas lá há um hospital solitário na madrugada, recheado por uns poucos inocentes, outros nem por isso, cercados por encapuzados que sugerem um culto (satânico? alienígena?); quanto ao resto, basta dizer que ninguém se poderá queixar deste terror de criaturas de linhagem eighties, violento, repulsivo, sangrento e sem CGI.

 

Enquanto a vida se recria a partir da matéria morta, o filme adentra por caminhos complexos, tentando casar um pano de fundo místico, loucos experimentos e explicações cosmogónicas (no que o que os realizadores chamaram de “cosmic dread” – com Lovecraft na base). Vale o passeio no labirinto povoado; o “vazio” até está bem preenchido... 

 

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por Roni Nunes às 21:42

Terrores Tropicais - Parte 2: O Sádico Mundo do Zé do Caixão

por Roni Nunes, Domingo, 03.09.17

 

O festival de cinema Motelx e a Cinemateca Portuguesa recuperam dois clássicos absolutos do terror latino-americano – ambos a serem exibidos no dia 1 de setembro. Um deles é o mexicano “El Vampiro” (1957), realizado por Fernando Méndez, o outro traz o satânico Zé do Caixão no primeiro filme com o ícone criado por José Mojica Marins, “À Meia-Noite Levarei sua Alma”.

Anedotas contemporâneas

 

Um facto anedótico ocorrido no início deste ano demonstra por si o quanto José Mojica Marins, criador do mítico Zé do Caixão, transcendeu a um início de extrema miséria e insegurança para inscrever o seu nome na história. Com 81 anos, experienciou o facto de tornar-se viral na internet. O motivo: uma foto onde, ao que tudo indicava, Zé do Caixão tinha-se convertido... à religião evangélica!

 

Seria possível? O homem que inventou o satanismo no cinema brasileiro? Bom, ao que parece nada disto aconteceu: quem foi "batizada" na referida igreja foi a esposa do ator/realizador; conforme desmentido da própria instituição...

 



Sórdido, imundo e satânico

 

Os baixíssimos orçamentos com os quais Marins tentava dar vida ao seu alter-ego nunca permitiram grandes voos visuais - mas em termos de vilania moral o personagem foi longe.

 

"À Meia-Noite Levarei sua Alma", lançado em 1963, trazia a história de um coveiro capaz de atos de uma infâmia inacreditável. Ele vivia numa pequena localidade não identificada do interior do Brasil, onde conseguia a façanha de ser temido e odiado por todas as razões e mais algumas: ultraviolência, assassinatos, violações, pactos demoníacos e crueldade generalizada. A sua autoconfiança só começa a ser abalada, no entanto, quando "forças do além" parecem conspirar contra ele...

 



Epopeias e telenovelas

 

Tudo chegou num sonho - num período complicado da sua vida: depois de um fracasso retumbante com a sua segunda longa-metragem ("Meu Destino em tuas Mãos"), ele tentava arranjar recursos para produzir um filme policial. Numa noite sonhou que uma imagem diabólica dele próprio vinha buscá-lo da cama e arrastá-lo através das campas de um cemitério até o local da sua própria cova. Acordou assustado, não conseguiu mais dormir; interpretou como um aviso e abandonou o filme que incluía criminosos e perseguições.


A realização do projeto foi, por si só, uma epopeia. Conforme contam os seus biógrafos em “Zé do Caixão – Maldito, a Biografia”, André Barcinski e Ivan Finotti, o cineasta abriu mão de tudo o que tinha; num gesto de drama de telenovela, disse à esposa que pensava em matar-se se não conseguisse concretizar o projeto! Resultado: eles ficaram sem casa e a mulher foi viver com os pais; a seguir ele vende toda a mobília - incluindo a própria roupa. Ficou com duas peças.

 

O lançamento do filme proporcionou a Marins alguns dos momentos mais felizes neste período de angústias: num belo dia, deu com filas enormes para ver o seu filme! Infelizmente não ganhou muito dinheiro, pois a penúria era tal que vendeu os direitos antes do projeto estrear. Mas esse foi apenas o primeiro capítulo da história do homem que atingiria os mercados internacionais, onde se tornaria o Coffin Joe…

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por Roni Nunes às 00:24


Comentários recentes

  • Cleber Nunes

    Sem dúvida é um filme que me despertou interesse ...